13 de janeiro de 2018

Silvestrov: Hieroglyphen Der Nacht (ECM, 2017)


Em “Meet Me at Jim & Andy’s”, um extraordinário livro de ensaios, Gene Lees recorda um paradoxo de Bill Evans e conta como, certa vez, sentado ao lado do pianista, a vê-lo tocar, reparou no modo em que Bill, numa frase que terminava numa breve ou numa semibreve, deixou o dedo colado à tecla, trémulo, como que a pousá-lo numa almofada de carimbo antes de lhe tirarem a impressão digital: “O martelo já tinha batido na corda – ou seja, naquele momento já não podia haver qualquer contacto físico com o som. Por isso meti-me com ele: ‘Não sabes que o piano não tem vibrato?’, perguntei. ‘Sei, mas [pensar que o posso produzir na última nota] afeta tudo o que vem antes na frase’, respondeu o Bill.” Em “Elegia”, para violoncelo e dois tantãs, lê-se a seguinte indicação de Valentin Silvestrov quanto à forma de se dar início à interpretação da sua peça: “Passar a mão pelo tantã sem fazer um único som.” 

Embora se trate de um livro que raramente acerta na muche, há qualquer coisa de “Zen e a Arte do Tiro com Arco”, de Eugen Herrigel, na maneira como Evans e Silvestrov colocam a ênfase na língua gestual: ao estilo do arqueiro que não se entrega à sua arte com o “mero intuito de acertar no alvo”, como se a realidade última da música, como exercício de consciência, não fosse o som e sim o silêncio. Silvestrov, um dia, disse ter sentido uma “fome de silêncio” naquele instante em que deixou a sua obra derrapar para os abismos metafóricos que desde meados de 70 a caracterizam. Aliás, há 25 anos, mais coisa, menos coisa, em resposta a uma carta, o seu editor enviou-me a partitura de “Música Kitsch”, para piano, acompanhada de uma nota escrita por Silvestrov: “Estas peças devem ser executadas suavemente, com muita ternura, como que à distância, num tom afundado dentro de si, estimulando a memória do ouvinte ao ponto de se assemelharem a uma tomada de consciência ou, melhor, como se estivessem a ser cantadas pela própria memória de quem as escuta.” Nenhuma frase descreve tão bem a sua música de câmara para violoncelo, feita com a intenção dos epitáfios: espalhar luz num mundo de sombras.

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