29 de setembro de 2018

Shostakovich: Symphonies Nos. 4 & 11 (Deutsche Grammophon, 2018)

Em depoimento, Andris Nelsons sugere ter prestado especial atenção à caracterização fisionómica de Shostakovich: “Era uma pessoa nervosa. Quando vemos o seu aspecto, em fotografias, e, depois, o confrontamos com a música que escreveu, há ali qualquer coisa que não bate certo, que não se equivale.” Muito pelo contrário – e nem será preciso citar o Aristóteles de “Analíticos Anteriores”, por exemplo. Aliás, a má catadura de Shostakovich em tempo algum disfarçava o profundo desconforto que sentia, com aquele jeito tímido e tenso constantemente traído por movimentos involuntários – as mãos que não paravam quietas, o corpo que parecia encolher-se para caber dentro do fato, óculos que de tão graduados dificultavam o contacto visual, remoinhos que desalinhavam um penteado em tudo o resto convencional. Além daquela expressão que tinha colada ao rosto: algo como raiva, receio e ressentimento misturados. Nessa perspetiva, por sinal, dir-se-ia que nenhuma sinfonia quanto a quarta será tão fiel reflexo de si: ou melhor, se quisermos ser rigorosos, do Mahler que há em si, pois, aqui, embora o regurgite de modo particularmente bilioso e violento, Shostakovich deixa vir ao de cima o que havia assimilado do alemão. 

Disso não terá Nelsons dúvidas: raramente se gravou uma ‘quarta’ tão marcada pela atribulação e pela agrura e, também, pelo rancor e pela repulsa face ao que, então, passava por solidariedade de interesses. Um mundo – o da política – em que Shostakovich nunca devia ter entrado e do qual jamais saiu: em consequência de um depreciativo editorial no “Pravda” de janeiro de 1936 não teve outro remédio senão cancelar a estreia da sinfonia e ir para casa aguardar que a NKVD lhe fosse bater à porta naquele padrão “bem marcado, insuportavelmente explícito”, Nadezhda Mandelstam dixit. Como complemento Nelsons propõe a “Sinfonia Nº 11”, inspirada pelos eventos de 1905 junto ao Palácio de Inverno de Nicolau II – ou pelos da Revolução Húngara de 1956? Não se sabe. No Palácio de Inverno da mente estava já Shostakovich exilado. Pior: Nelsons dirige-a como se o seu autor viesse da Península de Shostakovich, na Antártica, onde ninguém vive e nada mais se sente que uma calma de morte.

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