5 de janeiro de 2019

Rachmaninov: Piano Concertos 2 & 4 (Deutsche Grammophon, 2018)

Manuel António Pina é que sabia: “As palavras não chegam// E, no entanto, é à sua volta/ que se articula, balbuciante/ o enigma do mundo// Não temos mais nada, e com tão pouco / havemos de amar e ser amados.” Podia estar a descrever o diálogo decisivo em “Natureza Morta”, uma peça de Noël Coward. Ele: “Sabe que aconteceu, não sabe?” Ela: “Sim, sei.” Ele: “Apaixonei-me por si.” Ela: “Eu sei.” Ele: “Diga-me honestamente se é verdade o que creio ser.” Ela: “E o que crê?” Ele: “Que também se apaixonou por mim.” Ela: “Que tolice.” Ele: “Porquê?” Ela: “Porque mal o conheço.” Ele: “Mas é verdade, não é?” Ela: “Sim, é. Mas não podemos ter bom senso e esquecer?” Ele: “É tarde demais.” Enfim: absolutamente excruciante. Talvez por isso, quando adaptou a peça ao cinema, em 1945, tenha David Lean acrescentado um elemento capaz de domiciliar tudo aquilo que parecia escapar à capacidade de compreensão das próprias personagens: o “Concerto para Piano e Orquestra Nº 2”, de Rachmaninoff. 

Aí, em “Breve Encontro”, a música serve para ilustrar um lugar alheio à vontade de Alec e Laura, pessoas casadas que se cruzam numa estação de comboios, se vêem meia dúzia de vezes e se apaixonam para logo renunciar a esse amor, um lugar distante do das plataformas, cafetarias e salas de espera, com os seus conformistas símbolos de pontualidade e patriarquia: horários, anúncios, apitos, sirenes e, claro, sinos. Vem isto à memória mal se vê Trifonov nestas fotografias, como que saído de um filme de época, embora a metáfora ferroviária derive do seu entendimento do “Concerto para Piano e Orquestra Nº 4”, cujo “primeiro andamento é como uma locomotiva a acelerar pelos carris”, diz. Rachmaninoff deu-lhe os últimos retoques na altura da Segunda Guerra Mundial, tinham os comboios fins bem mais funestos. Em algumas das suas últimas entrevistas, também Pina falava de um “comboio eterno, sempre a passar,” que, em miúdo, lhe atrasava o regresso a casa. Assim foi com Rachmaninoff, que morreria no exílio, e assim é com Trifonov, que embaça estas obras com a nostalgia. Não há melhor forma de lhes fazer justiça.

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