25 de junho de 2011

Orlando Julius “Orlando Julius and the Afro Sounders” (Voodoo Funk, 2011)

Quando em 2000 a Strut reeditou “Super Afro Soul”, revelou, mais do que um modesto modernizador do highlife, alguém capaz de disputar com James Brown o vaidoso apadrinhamento do funk. E não houve na altura quem resistisse a comparar temas como ‘Ise Owo’ ou ‘Ijo Soul’ com ‘I Got You (I Feel Good)’ sabendo que mais cedo ou mais tarde teria de, como Aristóteles, reflectir sobre a antiga proposição de causalidade entre o ovo e a galinha. E o mesmo, agora incidindo sobre Fela Kuti e o afrobeat, se passou quando a Vampisoul adicionou à equação temas mais tardios gravados com os Afro Sounders (originalmente reunidos na antologia “Orlando’s Afro Ideas 1969-1972”). Na Nigéria, no entanto, não restam dúvidas: Orlando Julius Ekemode está na origem de ambos os géneros e, lembrando que ‘Going Back to My Roots’, de Lamont Dozier, se baseia no seu ‘Ashiko’, pode-se-lhes somar o disco sound. E desde que em 1998 regressou ao seu país natal não conta ele outra coisa, referindo ainda os anos em que, radicado nos Estados-Unidos e dando aulas em Berkeley, tocou com os Umoja ao lado de Isaac Hayes, Curtis Mayfield, Hugh Masekela e Gil Scott-Heron ou recordando a sua participação na série televisiva “Raízes”. E continuou a produzir – pensem no fundo sonoro do “Na Roça com os Tachos” – num estilo contrário ao de tamanha presunção e que pode muito bem ser aquilo que, depreciativamente, Fela Kuti apelidava de “música negra vitoriana”. Porque a verdade é que lhe foi faltando obra que sustentasse mais que a condição de aspirante. Até agora. É que estes temas gravados entre 1970 e 1973, em Lagos, no estúdio de Ginger Baker, há muito tido como perdidos e com mais testosterona que o Fela das 27 esposas e maior rigor espacial que o Sun Ra de “We Travel the Space Ways”, são uma inequívoca prova da sua grandeza.

18 de junho de 2011

Western Jazz Band “Songs of Happiness, Poison & Ululation 1973-1975” (Sterns, 2011)

No ato de tradução das letras destas canções concluiu Douglas Paterson que “a música tanzaniana dos anos 70 é como a country nos EUA”, identificando-lhes um território comum feito de corações partidos, relações falhadas e uma dimensão alegórica capaz de sustentar abrangentes comentários sociais sobre amor, fidelidade, pobreza ou esperança. Claro que nem pelos bares das estradas secundárias de Salt Lake City se deverá encontrar quem declare, como em ‘Kubadili Dini’, que “Essa regra é demais para mim, meu amor/ Pedires que me converta para que nos casemos/ Essa ideia perturba-me, irmã/ É melhor que te perca, pois sobreviverei// Eu sei o teu plano/ Conseguires que mude de religião e abandonares-me e rires-te/ Mas isso não é amor, é uma catástrofe”. E, no entanto, faz bem em referi-lo o organizador desta retrospectiva pois cantou frequentemente a Western Jazz Band um dos temas recorrentes da poética da country moderna: o mais obstinado individualismo. De outra coisa não tratam ‘Helena Nº1’ (“A grande questão que temos a colocar é/ Deveremos planear uma reconciliação?/ Mas se te perguntar antes o porquê de nos termos separado, cometerei com outra os mesmos erros?/ Porque é essa a minha conclusão/ e o nosso fim, minha Helena”) ou ‘Mary’ (“Apesar de ainda te amar, pode ser que tal me passe/ Pois não estou habituado a discutir, nem a insultar ninguém/ Não por tua causa// Muda, querida Mary, para que possamos viver bem”). Mas onde na música norte-americana se cola cada nota à letra como uma segunda pele, tudo aqui é mais esquivo, promovendo elípticos ensaios rítmicos sobre matrizes rumberas que raramente seguem o guião e, alinhando-se com o melhor dos conterrâneos DDC Mlimani Park, Maquis Original, Vijana Jazz ou Mbaraka Mwinshehe, só ganham verdadeiramente vida quando saltam da página.

9 de junho de 2011

“Gózalo! Bugalú Tropical Vol. 4” (Vampisoul, 2011) & “Cartagena! Curro Fuentes & the Big Band Cumbia and Descarga Sound of Colombia 1962-1972” (Soundway, 2011)

“Gózalo” não poderia arrancar de forma mais inspirada, com um ‘Saludo Maracaibo’, de Pedro Miguel, a passar em revista glórias do panteão afro-cubano como quem degusta pratos de uma conhecida ementa, sabendo que só uma nova receita – no caso, o boogaloo – lhe saciará o apetite. Em ‘Psicosis’, a Sonora de Lucho Macedo ensaia um conto de terror, com passos a ecoar por um casarão vazio, silêncio rasgado por uma gargalhada de fazer gelar o sangue e uma súbita explosão rítmica a lembrar a conga line da família Adams. Depois, percussionistas imunes à tendinite martirizam badalos, jorra champanhe de secções de metais, dá-se um tornado de reco-recos e passa um vendaval de trompetes soprado pelo ar pedido emprestado às bochechas de Dizzy Gillespie. O retrato é excêntrico mas não trai o essencial de um impulso extensível a Coco Lagos, Alfredo Linares ou Ñico Estrada, que se livravam do folclore peruano como se tirassem uma espinha da garganta, abrindo alas à chicha e aproximando-se à música anglo-saxónica e à cumbia colombiana. Dessa, trata “Cartagena!”, acompanhando o percurso de José Maria ‘Curro’ Fuentes – na Discos Curro e enquanto director artístico da Philips – e a acção de Lucho Bermudez, Lalo Orozco ou Pacho Galán, que sugerem andar de olhos vendados por um labirinto onde dorme uma besta: a salsa, que tudo cobriria com fama, fortuna e o manto branco da cocaína.

4 de junho de 2011

“Afro-Beat Airways: West African Shock Waves, Ghana & Togo 1972-1978” (Analog Africa, 2010)

“É peculiar, esta consciência dupla”, escrevia W. E. B. Du Bois na alvorada do século XX, “a sensação de olharmos para nós próprios através do olhar dos outros, de medirmos a nossa alma pela fita métrica de um mundo que nos observa com desdém e piedade”. Reflectia sobre a experiência negra na sociedade norte-americana, mas, com o passar dos anos, encontraram as suas preocupações eco em nações africanas em luta pela independência – talvez em nenhuma mais do que no Gana, onde, em voluntário desterro, viria a falecer. Mas não só o seu exemplo orientou Kwame Nkrumah, o primeiro presidente ganês: Malcolm X visitou Acra e Maya Angelou aí residiu um par de anos. Terá, aliás, sido da escritora a ideia de promover um concerto que levasse ao país grandes nomes de expressão afro-americana. Quando, em 1971, por fim se realizou o Soul to Soul – com Wilson Picket, Ike & Tina Turner, Roberta Flack ou Santana – já Nkrumah havia sido expulso da pátria e só ao abrigo do chapéu-de-chuva roto do pan-africanismo passava o acto por outra coisa que não imperialismo cultural. Mas um resiliente espírito que deveria ser promovido a monumento histórico – o dos músicos locais – prosperava perante a adversidade, e, ainda que fosse impossível restaurar a liberdade que os visitantes davam como adquirida, ficaria provado que olharia para lá de onde a vista alcançava. Esta compilação – a referência ao Togo, representado por duas bandas, cumpre um ritual obscurantista – captura-lhe o gesto. A Apagya Show Band cria um enxame de grunhidos em torno de uma batida onanista, K. Frimpong contrapõe uma melodia vaporosa a um ritmo capaz de levantar um morto, Marijata autopsia o funk com precisão cirúrgica e Ebo Taylor derrama poesia sobre o vulto de Fela. Tudo de acordo com a única condição que lhes estava tatuada na pele: a do exílio.