29 de março de 2013

Pro Pacem: Textes, Art & Musiques Pour La Paix (Alia Vox, 2012)


Fatema Mernissi, Edgar Morin, Raimon Panikkar, Antoni Tàpies, Hespèrion XXI, La Capella Reial de Catalunya, Jordi Savall (d)

Remonta à fundação da Alia Vox, há 15 anos, o arranque de um processo que reformulou o papel desempenhado pelo catalão Jordi Savall no panorama artístico internacional. Paralelamente à prossecução de um interesse espeleológico pelos abismos do repertório das eras medieval, renascentista e barroca, o gambista, nas funções de investigador, intérprete, diretor e editor, reinventou-se enquanto astuto poeta da hermenêutica e instigante agente do multiculturalismo, para o qual não há manuscrito demasiadamente hermético ou tradição excessivamente remota. Não admira, portanto, que ao coligir os materiais de “Pro Pacem” – soberano e testamental enunciado – tenha aberto a arca familiar e recuperado exemplares parcelas de um maná retalhado pelo seu catálogo em títulos como “Diáspora Sefardí”, “Orient-Occident”, “La Route de l'Orient”, “Jérusalem” ou “Istanbul”. E será um testemunho às suas criteriosas capacidades que, aqui – numa milenar navegação que aporta por longínquas orações corânicas, lamentos sefarditas, cantos gregoriano, bizantino e hebraico ou um vilancete luso-goês dedicado à Nossa Senhora do Mundo, a par da polifonia de Lassus e Prés ou de peças espirituais de Tye, Purcell e, já em 2004, Pärt –, promova um extático manifesto que ilude a anestesia litúrgica e promulga a música como uma propedêutica da paz. Mais do que desbravar fronteiras territoriais e temporais ou categorias estéticas e técnicas, Savall restabelece o primado da emoção e torna tangível a utopia.

A acompanhar tão edificante ação vem um livro de proporções bíblicas e intenções pedagógicas, com 1191 páginas essencialmente consagradas a quatro ensaios, uma introdução do próprio Savall, um alerta de António Guterres face ao drama da migração forçada e dados estatísticos sobre despesa militar, armamento nuclear e guerra – reproduzidos em oito línguas. Savall fala-nos de “ignorância, ódio e egoísmo”, cita a iniquidade pressagiada por Stiglitz e o “medo como legitimação do poder” identificado por Judt. Recolhidos nas “Memórias”, seguem-se depoimentos de Antoni Tàpies sobre arte e sociedade. Do filósofo Edgar Morin inclui-se a reflexão “A Educação do Futuro”, publicada em 1999 pela UNESCO, incisiva na análise da natureza humana, na criação de encadeados epistemológicos – “cérebro/mente/cultura” ou “razão/emoção/impulso” – e no diagnóstico de uma “regressão democrática que, sob tecnocráticos pretextos, afasta os cidadãos de cruciais decisões políticas”. De Raimon Pannikar surge, num escrito de 2006, um holístico apelo ao diálogo inter-religioso. Por fim, expande-se a alocução realizada pela académica marroquina Fatema Mernissi na cerimónia de entrega do Prémio Príncipe das Astúrias de 2003, uma alegórica meditação acerca do modelo de globalização árabe. Pairando, a mesma sombra elementar: “como desarmar as nossas culturas?”.

23 de março de 2013

Entrevista a Jon Hassell



[Jon Hassell em concerto em Lisboa, no Teatro Maria Matos, terça-feira, 26 de março]
Ao longo de um ano e meio, em sessões realizadas entre 1949 e 1950, Gil Evans, confirmando uma disposição coralista e colorista nos seus arranjos, agremiou, em redor de Miles Davis, polifónicos e matizados octetos que incluíam catedráticos da banda de Claude Thornhill – como Lee Konitz, Gerry Mulligan ou Bill Barber – e primorosos artífices da tridimensionalidade – John Lewis, Gunther Schuller, J. J. Johnson – para, e assim consagrou a narrativa desse tempo, duchar com água fria o ebuliente bebop e abrilhantar as qualidades harmónicas e tonais da portátil formação de jazz. Em 1957, após inócuas emissões em diversos registos, e no instante em que Evans e Miles se reencontravam no cromático e sinfónico “Miles Ahead”, organizou-se por fim, e de forma francamente memorável, tão elegantes e furtivos ensaios na compilação “Birth of the Cool” para, então, nos cinco anos que se seguiram à momentosa edição, em virtude da enxurrada de títulos que Prestige e Columbia lançavam no mercado – de “Workin’” a “Milestones” ou de “Steamin’” a “Kind of Blue” –, orquestrador e solista, em concomitante perfilhação das mais variadas tendências, aprofundarem em “Porgy and Bess”, “Sketches of Spain” e “Quiet Nights” o que, hoje, evocando um escrito de Paul Klee dos anos vinte, Jon Hassell define como “equilíbrio assimétrico”, ou seja, o ato de “achar o balanço certo entre uma vasta área de tons pálidos e uma pequena célula de cor forte”, no qual, prossegue, “imediatamente pensei quando, em agosto do ano passado, o festival de jazz de Roccella, na Calábria, me sugeriu homenagear Evans”.
Claro que, para quem soube “regressar ciclicamente à pivotante interrogação: mas do que é que eu efetivamente gosto?”, esse tributo, apresentado há seis meses enquanto “Sketches of the Mediterranean: Celebrating Gil Evans”, com a sua especificidade temática, geográfica e honorífica, aproximava-se já de “uma tirania autoimposta de que tinha de me libertar”. Hassell, como Evans – que logo entre 1960 e 1961 confundiu expectativas de coesão com o díptico “Out of the Cool” e “Into the Hot” – sempre reiterou a híbrida e luxuriantemente expressiva dimensão de um idioma que Miles Davis havia conduzido até esotéricas e sensuais tangentes e, no seu críptico retiro em meados dos anos 70, deixado às portas do paraíso… ou, conforme a perspetiva, do inferno. “Nunca olhei para isso nesses termos”, diz-nos, “no facto de estar a expandir o vocabulário do trompete quando Miles se recluiu; mas é verdade que tudo começa pela imitação e, com sorte, ouvindo o que dizem os sentidos, daí se poderá formar a individualidade”. De outra coisa, aliás, não tratou um percurso, de cerca de 35 anos (contando discos em nome próprio), frequentemente resumido a uma colusão, isto é, a uma dicotómica exposição de conceitos que em qualquer instância passaria por retórica mas que, no seu caso, lhe garantiu proveito epocal: primitivo e futurista, norte e sul, ocidente e oriente, físico e espiritual, global e local, sintético e orgânico, analítico e erótico, real e ficcional, originam um bipolar circuito de princípios a que aderiu, incontroversamente, na célebre tese holística de “Fourth World Vol. 1: Possible Musics”, o álbum de 1980 através do qual, depois de John Cage ou João Gilberto, do silêncio forjou um novo molde para a refundação do mundo.
Desde então”, reflete, “tem sido problemático navegar entre categorias que a internet tornou ainda mais inflexíveis. Odeio fixar as coisas, de colocar abstrações antes da realidade de cada um”, conclui, revelando algum desconforto com a ilusão de simultaneidade e acessibilidade instantânea que a era digital concede a um exército de arquivistas autodidatas. Noção que apenas na superfície contraria o que há três décadas escreveu no encarte de “Aka-Darbari-Java”: “a possibilidade de enquadrarmos numa mesma obra os sons concretos de músicas [sic] de vários períodos e proveniências marca um momento único na história”. Porque a questão é distinta, esclarece: “nem tudo é positivo neste enorme bem coletivo de que somos depositários. A minha ideia de prazer” – e redigiu-a num texto a que chamou “Acerca de Lisboa” – “implica a submissão a um universo sonoro metalinguístico que, de maneira caleidoscópica e prismática, refrate o que nos entusiasme, trate-se de Scriabin ou Marvin Gaye, Ravel ou Gil Evans, Couperin ou João Gilberto, polifonias de pigmeus ou gamelão indonésio. Se a experiência individual estiver sujeita às necessidades de rentabilização do Grande Complexo Industrial da Música, permanecerá monocromática e fundamentalista”. Esta visão – inextricável, inquisitiva e intoxicante – em que envolveu sensorialmente um número incomum de símbolos, ficará, no seu modo mais estilizado, evasivo e anacrónico, como uma fabulosa e ritualizada construção cultural, de transversal influência e significado, embora aparentando uma eremítica conceção. “A solidão não foi uma escolha, acredite. Ter-me-ia vendido com todo o gosto, se a ocasião se proporcionasse. Mas possuo a vantagem de poder ser descoberto aos poucos… e de nada me prender” – modalidade que, no fundo, não surpreende vinda daquele que, na formulação de Dali, por mais de uma vez relembrou a importância da “independência da imaginação”.

Wayne Shorter Quartet “Without a Net” (Blue Note, 2013)



Começa a navegar por mares conhecidos – num férreo ostinato conduzido pela mão esquerda do pianista Danilo Pérez que, para ouvintes cúmplices, espelha o exercício exclusivamente dextro de Herbie Hancock na precedente gravação deste ‘Orbits’, em 1967 incluída em “Miles Smiles” – mas nem por isso ilude os interesses da aguda inteligência que lhe guia o caminho. De facto, Shorter – esteio do ‘segundo grande quinteto’ de Miles Davis e paradigmático ideólogo da função multiculturalista do jazz desde a fundação dos Weather Report em 1971 – opera num raro quadro cognitivo que, combinando distinta intelectualidade com um atraente abstracionismo, coloca, com frequência, ao serviço de uma caprichosa imaginação. E “Without a Net”, o seu primeiro álbum em oito anos, novamente ao vivo, e no qual reincidem intérpretes que até a sonhar devem realizar as fantasias uns dos outros – Pérez, John Patitucci e Brian Blade –, só podia resultar da ação daquele que, cruzando a ductilidade própria da memória com ágeis raciocínios e os mais espirituosos juízos, jamais teve de desperdiçar energias a disfarçar falta de originalidade. Quase octogenário, decano do hard bop, experto fusionista, titular de uma espantosa inconguência – a do grífico improvisador – e de regresso à casa, a Blue Note, em que – não se fazendo por menos – gravou duas mãos cheias de obras-primas, Shorter permanece no topo das suas divinatórias faculdades, e o seu oblongado, adunco e declamativo saxofone soprano insiste em cartografar os mais sinuosos e inóspitos terrenos. E nunca como em ‘Pegasus’, tema de cerca de vinte minutos em que se acopla ao grupo o quinteto de sopros Imani Winds, capaz de inaugurar um abismal conceito: a peça de câmara, de fluxos minimalistas, que se supõe conseguir exaltar mesmo as mais tumultuosas liturgias das denominações cristãs afro-americanas.

16 de março de 2013

Mahler: 9 (Deutsche Grammophon, 2013)



Los Angeles Philharmonic Orchestra, Dudamel, G. (d)

Como se a sua ação pudesse ficar mais mitificada, aí está Gustavo Dudamel a comandar com telúrica dignidade a Orquestra Sinfónica Simón Bolívar no funeral de Hugo Chávez no instante em que chega ao mercado esta gravação, cerca de doze meses após a conclusão do catártico “Projeto Mahler” e pouco mais de dois anos depois de, no centenário da morte do compositor, ter precisamente apresentado em Lisboa a lutuosa “Nona” à frente da Filarmónica de Los Angeles. E o mínimo que se pode dizer é que, nesta transposição do último sopro de Mahler – ou melhor, do seu derradeiro batimento cardíaco, numa altura em que estava já o austríaco consciente da endocardite infeciosa que o consumia –, também ao maestro venezuelano vão faltando as forças à medida que da pauta se extingue a música. Ou isso, ou, o que não surpreende, optou por retirar qualquer deliberação mais definitiva do ‘Adagio’, sublinhando-lhe apenas as ambiguidades – aquele lacrimoso e acrimonioso contraponto entre a pungente redenção e a mais apática resignação, por exemplo – e cristalizando-lhe a perplexidade que ainda inspira. Comparando com os três andamentos prévios, suspeita-se que Dudamel não se interesse por espectros, reservando a energia para ‘Andante’, ‘Ländlers’ e ‘Rondo-Burleske’, nos quais expõe com impecável sentido de oportunidade um caráter dual, tenso, sardónico, que entrincheira dramaticamente numa orquestra tornada campo de batalha entre dois mundos – o velho, provinciano e mesquinho, que escorraçou Mahler, e o novo, vibrante e confuso, que o acolheu – recorrendo a dispositivos praticamente banalizados por décadas de acompanhamento no grande ecrã de cenas de beligerância militar, sentimental e metafísica. Conforme Walter, Bernstein, Maderna ou Rattle, aqui regressará quando decidir lembrar que a terra não é só para os vivos.