24 de novembro de 2012

Natal 2012



 Cesária Évora “Miss Perfumado” (Lusáfrica/Sony, 2012)
Guiadas por elegantes arranjos nas inquietas mãos de Paulino e Toy Vieira, chegavam em 1992 as mornas e coladeiras de “Miss Perfumado” e foi como se finalmente arribassem tesouros transatlânticos há muito perdidos no mar. A voz de Cesária expiava, excarcerava e a cada golfada desfazia grilhões. Às treze canções originais soma esta edição comemorativa outras dezassete, extraídas de álbuns predecessores.
Djavan “Rua dos Amores” (Luanda/Emarcy/Universal, 2012)
Djavan corre por fora na pista da fusão e, 30 anos depois de “Luz”, já deu mais do que uma volta de avanço a Al Jarreau. E embora se ouça como sucessor natural de “Matizes” (2007), tudo aqui, numa assinatura única, está simultaneamente mais artesanal e industrial, sob a perspetiva por si sintetizada numa entrevista ao jornal Globo: “prefiro ouvir que [a] minha música é diferente [do] que linda”.

“The Rough Guide to the Music of Ethiopia” (Rough Guide/World Music Network)
Foi editada uma primeira versão desta antologia em 2004, tratando-se então de sintetizar para neófitos a produção reunida na vintena de títulos inicial da série Éthiopiques. Oito anos depois, é da influência dessa mesma coleção na diáspora etíope que não se consegue deixar de falar, coligindo-se Bole 2 Harlem, Dub Colossus, Samuel Yrga, Krar Collective ou Invisible System, estes antologiados no segundo CD.

17 de novembro de 2012

Krar Collective “Ethiopia Super Krar” (Tugboat, 2012)



O título era medonho, mas com a compilação “Noise & Chill Out – Ethiopian Groove Worldwide” pretendia-se já veicular a ideia de que, conforme o glossário gastronómico sugere, também na produção musical à escala global se traduz ‘redução’ por intensificação. E, de facto, como em tempos se passava com modas e ritmos das tradições celta, judaica ou eslava, é mesmo naquele tipo de enlaces particularmente exogâmicos que mais depressa se identificam demarcadas características que, muito por culpa da mais rasteirinha antropologia, se julgavam obrigatoriamente endógenas. Por isso, depois das exumadoras pazadas com origem na colecção Éthiopiques, é inevitável concluir que, com os mais improváveis remetentes e com maior ou menor ligação à diáspora, se identificará com frequência descendentes mais ou menos legítimos da sua estirpe. Basta ouvir a Debo Band em Boston, a Imperial Tiger Orchestra em Geneva, os Pyramid Blue em Madrid, a Souljazz Orchestra em Ottawa, a Budos Band em Nova Iorque ou Nicolas Jaar um pouco por toda a parte para se perceber que o interesse por certa escala pentatónica ou por determinado modalismo vindos da Etiópia está a alargar o livro de estilo de importantes tangentes da música popular de forma mais substantiva do que, dado o maná extraído e logo deglutido por Kanye West, Jay-Z, Madlib ou Nas em discos de Mulatu Astatke, por exemplo, à primeira vista poderia parecer. É nessa perspectiva – embora com estreitas ligações à comunidade emigrante – que se deve compreender a vibrante estreia do londrino trio Krar Collective, liderado por Temesgen Zeleke nas lira, rabeca e flauta etíopes, e com o percussionista Robel Taye e a cantora Genet Assefa, numa expansão praticamente psicadélica do depurado legado de Asnakech Worku, acessível, contagiante e, como não poderia deixar de ser, já nem daqui nem de acolá.

10 de novembro de 2012

Elis Regina “Samba – Eu Canto Assim” & “Elis Regina in London” (Soul Jazz, 2012)

Ao fim de tantos anos, persiste no discurso crítico que acompanha a biografia de Elis Regina uma falácia que desclassifica os seus quatro primeiros discos (“Viva a Brotolândia”, “Poema de Amor”, “Ellis Regina” e “O Bem do Amor”), identificando-se nesse material gravado entre 61 e 63 uma prevalência de interesses editoriais de mercado face à expressão criativa da intérprete. Já em 2012, quando se cumprem os 30 anos sobre a sua morte, por entre uma série de iniciativas de restauração e reavaliação do seu catálogo – do espectáculo “Redescobrir”, em sua homenagem organizado por Maria Rita, sua filha, ao encaixotamento de 24 CDs em “Elis Anos 60” e “Elis Anos 70” – persiste-se em ignorar essa sua crucial produção. No fundo, mais do que ao anacrónico posicionamento do conservador quarteto de LPs no dealbar de uma era de tanto optimismo, talvez tal se deva à sua inconsequência artística e ao falhanço comercial – a juvenil Elis, embora com invulgar sofisticação e temperança, cantava no tempo da bossa nova como uma menina perdida em terra de ninguém, entre o dengoso romantismo de Ângela Maria e atrevidas adaptações do rock’n’roll ao jeito de Celly Campello. Por isso se impunha uma mudança de ares: partindo de Porto Alegre com o pai, Elis, com 19 anos acabados de fazer, chegou ao Rio de Janeiro em março de 64 e foi bater à porta da Philips.  

Em poucos meses, graças a uma sucessão de factos que só o seu imenso magnetismo justifica, passa da condição de anónima à de vedeta. Impactantes aparições em concertos preparados para transmissão televisiva culminam, em 65, no seu triunfo (com ‘Arrastão’, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes) no inaugural “Festival Nacional de Música Popular Brasileira”, da TV Excelsior, e no convite para encabeçar o cartaz do Teatro Paramount, em São Paulo, ao lado de Jair Rodrigues; o disco daí resultante, “Dois na Bossa”, vende um milhão de exemplares e é transposto pela TV Record para a sua grelha no semanal “O Fino da Bossa”. No meio de tudo isto era inevitável que “Samba – Eu Canto Assim” saísse afectado por aquilo que o poeta Augusto de Campos qualificava como “estardalhaço patológico”. De facto, longe da delicadeza dos registos precedentes, este primeiro LP adulto da cantora testemunha o frenesi com que se empacotou a bossa para a sociedade de consumo numa participativa orgia alimentada a vocalizações expressionistas, coreografias aparatosas (Elis ganhou no período as alcunhas de ‘Pimentinha’, pelo temperamento, e de ‘Hélice’ Regina, pelas braçadas em palco) e demagógicos dispositivos carnavalescos. Mesmo marcando o encontro da sua voz com as canções de Edu Lobo, Francis Hime, Carlos Lyra ou Marcos Valle, moderação e subtileza, aqui, só no acompanhamento do Rio 65 Trio, de Dom Salvador.

Com a fama cimentou-se um posicionamento fracturante: Elis era contra Nara Leão, contra a bossa, a Jovem Guarda, o tropicalismo, e depois tudo abraçava. “Elis”, de 66, com o Bossa Jazz Trio, revela-a mais madura, cantando Caetano, Chico, Milton ou Gil, e “Elis Especial”, de 68, mais sofrida, ainda que dedicada a Jobim pela primeira vez. Sucedem-se digressões pelas capitais europeias e programas para as televisões francesa, inglesa, belga, alemã, holandesa. Em 69, passando pela Suécia, grava “Aquarela do Brasil”, uma anémica reunião com Toots Thielemans, e em Londres os executivos da sua editora acham boa ideia juntar o seu grupo (liderado por Roberto Menescal) às orquestrações de Peter Knight (compositor com créditos secundários em discos de Moody Blues ou Scott Walker). O repertório deste “… In London”, interpretado de forma algo histriónica, repete o de “Aquarela…” e o que, com outra desenvoltura e maior domínio da distinta síncope afrobrasileira nos arranjos de Erlon Chaves, lançaria em “Elis, Como & Porquê”. Mas todos os registos do ano revelam as debilidades de uma fórmula novamente em nenhures, seduzida pelos apelos da juventude mas simultaneamente saudosista, agora incapaz de representar um país calado pelos militares. Seria necessário mais um par de álbuns e uma descida aos infernos para que, com as suas obras-primas da década de 70, encontrasse finalmente o Brasil a sua cantora maior, que logo tanta falta lhe faria.

3 de novembro de 2012

Tunji Oyelana “A Nigerian Retrospective: 1966-79” (Soundway, 2012)



Adscrito à causa afrobeat em compilações como “Nigeria 70” (Strut, 2001), “Afro Baby” (Soundway, 2004) ou “World Psychedelic Classics 3” (Luaka Bop, 2005), de Uncle Tunji Oyelana (ator, associado de Wole Soyinka, cantor, poeta, dramaturgo, professor e, aos setenta e poucos anos, animador no Emukay, o seu restaurante londrino) guardaram os arquivos europeus pouco mais que o apodo. Mas, no que concerne aos predicados ostentados por procedimentos editoriais originários da Nigéria, o mundo mudou em meia dúzia de anos. E, conquistando um enfoque especializado, frustram-se agora os grandes arcos narrativos mas pelo menos surpreende-se a cada furtivo ensaio. Até ao ponto de, paradoxalmente, a acumulação de títulos sugerir uma incredível e absurda insularidade: pois nada de particularmente concêntrico se encontra no comunicado da restauração integral da discografia de Fela Kuti, Blo, Ofege, Joni Haastrup, Tirogo e Lijadu Sisters ou nas extravagantes antologias consagradas a Victor Olaiya, Funkees, Segun Bucknor, Bola Johnson, Victor Uwaifo e Orlando Julius, publicadas para desacreditar a meditação de que homem algum é uma ilha. Aliás, só um par de seleções – compreendido por “Lagos Disco Inferno” e “Brand New Wayo” – surgiu nos últimos tempos subjacente ao segundo princípio crucial (o primeiro era o da competitividade) na produção nigeriana da década de 70: o da elasticidade. De outra coisa não tratava a banda de Oyelana (os Benders) quando, a cada novo disco, centrifugava calipso, reggae, highlife, funk, juju e afro rock psicadélico num afável cadinho cujo único ressaibo derivava da política e ao qual aplicava, com determinação quase varonil, modelos rítmicos autóctones de inspiração ioruba sem iludir um fascínio praticamente instintivo pela possibilidade de cada canção. Uma lição.