30 de março de 2018

Bartók: Violin Concertos Nos. 1 & 2 (Erato, 2018)


Terá sido Hesíodo, um contemporâneo de Homero, o primeiro poeta europeu a ver-se como um sujeito ativo em situações dramáticas por si criadas. E, como não poderia deixar de ser, julgava-se uma vítima. Principalmente dessa “fatal calamidade para os homens”, “esse flagelo”, que “mais não faz que dano”, que no mundo “lança horríveis misérias”, essa “exploradora”, “preguiçosa, fraca e inútil”, a Mulher. Milénios depois, há quem não resista a colocar sob o prisma desta antiga misoginia ocidental este “Concerto para Violino Nº 1”, de um Béla Bartók incapaz de se libertar da dependência do sexo feminino. Mas não se fala tanto daquele odium mulieris que Cícero mais tarde diagnosticou quanto do rancor secreto e profundo que pode advir de um amor não correspondido. Bartók estava apaixonado pela violinista Stefi Geyer quando compôs os dois primeiros andamentos da obra, entre 1907 e 1908, e foi a ela que os dedicou. Mas o sentimento não era recíproco, crê-se, e Geyer empurrou-os literalmente para o fundo de uma gaveta. Desanimado, Bartók não os complementou com o canónico andamento final, ficando o Concerto, tal como a relação, por consumar. Só após a morte de dedicador e dedicatário tornou a ver a luz do dia, tendo sido estreado em 1958. 

Caso tivesse vindo a refletir sobre o assunto, na ocasião, Hesíodo teria certamente arranjado forma de falar na Caixa de Pandora, outra entre os “zângãos predatórios que atormentam o laborioso e sofredor abelha-homem”. E, nos últimos anos, há duas interpretações da obra que se diriam ampliar este conjunto de contradições: as de Isabelle Faust, com a Swedish Radio Symphony Orchestra dirigida por Daniel Harding (Harmonia Mundi, 2013), e de Janine Jansen, com a London Symphony Orchestra sob o comando de Antonio Pappano (Decca, 2016). Pois, que diferença ouvir a mesma LSO guiada por Roth e sujeita à influência de um solista que nem em sessões de terapia com um freudiano rigoroso seria capaz de conjugar amor e ódio na mesma frase, quanto mais ao longo de um só concerto. Mas se Renaud Capuçon devolve este Bartók à esfera privada do desejo e do ardor, já no “Concerto para Violino Nº 2” se prova capaz de situar a ação noutro campo de batalha: Bartók entrincheirado numa ideia de Hungria que a História se preparava para desfazer.

Brad Mehldau "After Bach" (Nonesuch, 2018)


Em “A Escada de Caracol”, o filme de Robert Siodmak, há um momento em que Helen, a protagonista, no patamar, suspende o passo entre lanços e se põe a ver no espelho o seu reflexo. Compõe-se, dando um jeito no cabelo, alisando a saia, e a seguir, de modo algo imprevisto, leva as mãos lentamente à garganta. Havia perdido a fala e sabe-se que anda à solta um assassino em série que ataca mulheres indefesas. Depois, quando se abre o plano e se percebe que ela está a ser observada pelo presumível homicida, já não é bem a sua imagem que está frente a si, mas, sim, décor, uma tela pintada na forma de um espelho. Obtida por constrangimentos técnicos, e quase impercetível, trata-se de uma cena de enorme importância, pois sugere uma distorção do mundo tal como o conhecemos ou, pelo menos, tal como o estamos habituados a ver. É o que vem à memória mal se vê a capa deste “After Bach” (que reproduz uma fotografia tirada por Peter Marlow), em que se diria que Brad Mehldau e J. S. Bach são apanhados algures num vão de escada a meio caminho um do outro. 

Aliás, a premissa do norte-americano é tão convincente (interpretar prelúdios e fugas de “O Cravo Bem Temperado” de permeio com originais seus inspirados na obra do alemão) que, a certa altura, não se sabe bem o que é reflexo do quê. Até porque, lá está, mesmo à distância destes duzentos e tal anos, Mehldau especula sobre essa fascinante, indefetível e facínora questão que amiúde se coloca: quantos achados na obra de Bach terão vindo a reboque da improvisação? E chega a sugerir-se o impensável: que, de repente, até Bach terá andado pela vida às apalpadelas, não sabendo de onde vinha e menos ainda para onde ia, conhecendo pouco dos outros e menos ainda de si. O que, praticamente ipsis verbis, se trata de uma frase de Goethe. Vem a propósito. Há uns meses, depois dos acontecimentos de meados de agosto em Charlottesville, numa carta aberta, Mehldau recusava-se a aceitar o “relativismo moral” da Presidência do seu país e citava o filósofo: “Escolham bem. O momento da escolha é breve, as consequências da escolha são para sempre”, lembrava. Agora, nada resume tão bem o que faz aqui: uma evocação de Bach sem uma nota a mais, lançada na espiral da eternidade.

24 de março de 2018

Debussy: Estampes; Préludes I & Debussy: Préludes II; En Blanc Et Noir (Deutsche Grammophon, 2018)


Falecia há 100 anos Claude Debussy, na madrugada de 24 para 25, consumido por um cancro no cólon e sem saber já se o que ouvia vinha dele ou dos céus, com o Canhão de Paris a lançar projéteis de hora a hora sobre a cidade a partir de posições alemãs à distância de 100 km, cada granada aí com uns 100 kg. Enquanto ia enterrar, a 29, um obus bombardeou parte da Igreja de São Gervásio e São Protásio, levando consigo quase 100 dos fiéis que na paróquia se reuniam para o serviço litúrgico da Sexta-Feira Santa mas, por mero acaso, poupando à destruição o órgão em que a dinastia Couperin tocou durante dois séculos, o que, claro está, tivesse ele sobrevivido à Grande Guerra, é perfeitamente possível que Debussy visse como um sinal. Incapaz de participar no conflito, havia no verão de 1915 composto “En blanc et noir”, para dois pianos, onde incluía a seguinte dedicatória: “Au Lieutenant Jacques Charlot tué à l’ennemi en 1915, le 3 mars.” Um por um, a certa altura, a peça desarranja os constituintes de um famoso hino luterano e cita a “Marselhesa”, reencontrando-se assim aquele que, em 1914, numa carta a Robert Godet, um amigo de longa data, dizia: “Sinto-me tão diminuído! Ah, aquele mágico, que tanto admiravas em mim, onde está ele agora?”

Pois, 100 anos após a sua morte, está, por exemplo, nas mãos da indústria fonográfica, que permanece sob o seu feitiço e aproveita a efeméride para colocar no mercado títulos como “Complete Works: The Centenary Edition” (33 CD, Warner), “Complete Works” (22 CD + 2 DVD, Deutsche Grammophon), “Édition Centenaire” (4 CD, Sony, que traz de volta ao mundo dos vivos a gravação de Catherine Collard de “Prelúdios”), “Complete Piano Works” (5 CD, Harmonia Mundi, que reedita a integral de Alain Planès) e LP de Krystian Zimerman, Arturo Benedetti Michelangeli e da Cleveland Orchestra dirigida por Pierre Boulez a si dedicados. As maiores revelações guardam-se para 27 de abril, quando a Erato lançar “Centenary Discoveries”, e, até agora, também na Erato, nenhum título se aproxima do postulado por “Sonates & Trios”, com Emmanuel Pahud (flauta), Renaud Capuçon (violino), Bertrand Chamayou (piano), Edgar Moreau (violoncelo), Gérard Caussé (violeta) e Marie-Pierre Langlamet (harpa) consagrados aos seus derradeiros opúsculos sem cair na tentação de transformar qualquer investida na sua obra numa espécie de parque temático devotado ao insólito, numa área em estado de exceção em que se sujeita Debussy a um tipo de solidão que não se deseja a ninguém.

“Creio que Debussy era um solitário”, dizia Daniel Barenboim em “Entre quatre-z-yeux”, um documentário de Paul Smaczny, de 1999, agora reposto nos escaparates em DVD e Blu-Ray como “Daniel Barenboim plays and explains Les Préludes” (EuroArts). “Estava sozinho naquilo que trouxe para a música. Isto é, sabemos que teve muitos contactos com os seus contemporâneos – com pessoas como Satie ou Stravinsky – mas acho que ele era diferente. Parece-me que foi alguém que permaneceu muito reservado, muito sigiloso. E parte da ideia de criar uma ilusão tem a ver com isso, com secretismo.” Ao que tudo indica, o filme deixava-se inspirar por uma frase de Louisa Liebich saída de um texto seu publicado em 1918, em “The Musical Times”: designava-se “An Englishwoman’s Memories of Debussy” e nele lia-se que, num recital à porta fechada, Debussy tinha dito que os prelúdios só deveriam ser tocados na intimidade – entre quatro paredes, frente a frente, olhos nos olhos (“entre quatre yeux”, em francês). “Isto é a arte da sugestão. A arte da ilusão”, explica Barenboim para a câmara. “Toda a música o é, de certa forma, mas mais ainda a de Debussy. A ilusão de que há um caminho… Não necessariamente a seguir. Como uma paisagem vista ao longe de uma janela.”

Não admira que a sua visão do primeiro livro de “Prelúdios” esteja tão embaciada. Aliás, até a imagem do filme, rodado em Reus, na Catalunha, em espaços como Institut Pere Mata e Casa Navas, se diria deslustrada pela luz bruxuleante do ‘foco suave’. Esta aversão ao naturalismo, que se diria conforme à índole do compositor, tem como consequência a promoção da cultura do medo. E, na estética de Debussy, como Gieseking tornou claro, esse receio por tudo o que é banal pode em si mesmo causar distorções tão grandes quanto o ato de sucumbir à banalidade. Ou seja, arrisca-se a tornar submisso o que era insubordinado. Em boa hora, então, decidiu Barenboim complementar estes “Prelúdios” (gravados em 1998 para o filme e agora licenciados à DG) com uma recém-captada “Estampes” repleta de tridimensionalidade. É algo em que se pensa ao escutar Pollini no segundo livro de “Prelúdios”, quando lhes atribui a transparência e a exactidão necessárias para que se compreendam pelo salto no escuro que foram. Frente a frente, dois modelos de interpretação muito diferentes, quase antagónicos. Mas, no seu melhor, capazes de fazer jus à frase que Mário de Sá-Carneiro deixou num poema, em Paris, estava Debussy moribundo: “Quando chego, o piano estala agoiro.”

17 de março de 2018

Bach/Busoni/Beethoven (ECM, 2017)

Noutros tempos, em recitais de piano, como nos de Arturo Benedetti Michelangeli, por exemplo, apresentavam-se com frequência programas com equações deste género: Bach/Busoni e Beethoven. Ou seja, creditava-se mais depressa o Busoni transcritor do que o compositor. Não é o caso, com o casal Shiokawa-Schiff, que estará segunda-feira à noite em Lisboa a tocar Bach a bordo da formação Cappella Andrea Barca (que tem concerto marcado para o Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian), a incluir nesta sua gravação a “Sonata para Violino e Piano Nº 2”, em Mi menor, Op. 36, do italiano. Percebe-se: a obra pode ser entendida como uma prótese contra o anacronismo, ligando Bach, de quem Busoni foi um incansável paladino, a Beethoven, cuja célebre formulação do opúsculo 27, o par de sonatas Quasi una fantasia, se repete aqui. Mas, na realidade, trata-se de um incentivo à desconcentração. Escutar este Busoni entre os transcendentes Bach, de “Sonata para Violino e Cravo Nº 3”, em Mi maior, BWV 1016, e Beethoven, de “Sonata para Violino e Piano Nº 10”, em Sol maior, Op. 96, será um pouco como regressar a uma casa de família após uma daquelas improváveis tempestades dos filmes-catástrofe, em que se dão em simultâneo inundações e incêndios, tufões e tremores de terra, e do céu caem tubarões, e respirar de alívio ao verificar que está tudo no sítio e que as coisas vão ficar como antes. Só no cinema. 

Isto é, mesmo em estruturas que se supõe durarem para sempre, será, antes, uma forma de relembrar que, na vida, se sucedem muitas vezes – para não dizer que amiúde coexistem – ciclos de criação e destruição, o que Busoni testemunhou em primeira mão, no virar do século passado, quando o assalto à tonalidade da Segunda Escola de Viena, que encorajou, reduziu muitas dessas estruturas a escombros. (Mais tarde, Kurt Weill, um dos seus alunos, afirmou: “Tínhamo-nos libertado de amarras, mas não sabíamos o que fazer com a liberdade. Tínhamos os olhos postos no horizonte, mas não soubemos ver de onde vínhamos. Até que Busoni chegou a Berlim.”) Dir-se-iam preocupações que têm andado na cabeça de Schiff, em virtude do que tem escrito acerca do regime de Viktor Orbán, na sua Hungria natal. Talvez por isso tanto toque Bach, ato que disse um dia ser como tomar um duche quando se sente sujo.

Keith Jarrett/Gary Peacock/Jack DeJohnette "After the Fall" (ECM, 2018)

Em “A Multitude of Angels” (a caixa que reunia concertos seus de outubro de 1996, a solo, em Módena, Ferrara, Turim e Génova) praticamente ensaiava um dueto com Annie Lennox: “O que me levou a seguir por diante e completar o meu destino? Os anjos, que incluíam tudo à minha volta: as plateias, os pianos, a doença, o DAT, o meu manager, a minha mulher”, explicava, enquanto em seu redor se parecia ouvir os Eurythmics e “It’s an orchestra of angels/ And they’re playing with my heart”. Agora, presta-se atenção a este “After the Fall” e o que vem à memória é a canção homónima dos Journey a servir de banda sonora às desilusões de Tom Cruise em “Negócio Arriscado” quando, afinal, a vida dá mostras de não lhe vir a correr como o esperado e, numa retórica descida aos infernos, ele se refugia na cave de sua casa e se põe a brincar tristemente com o modelito ferroviário de quando era pequeno – claro está, imediatamente antes de Rebecca De Mornay o conduzir ao paraíso a bordo de um comboio a sério. Keith Jarrett não gera mais empatia do que isto. 

Conta, agora, em notas de apresentação: “Durante dois anos (do outono [Fall, em inglês] de 1996 ao de 1998) padeci da Síndrome da Fadiga Crónica e não pude tocar piano em público. ‘A Multitude of Angels’ contém a última música que fiz antes de bater no fundo.” Pois então “After the Fall” regista a primeira que fez quando se começou a sentir capaz de sair do buraco. Gravada ao vivo a 14 de novembro de 1998, trata-se de uma sessão de fisioterapia num Reality show dedicado à crónica da vida privada de um pianista de jazz. Dias antes, ao “The New York Times” de 8 de novembro, dizia: “Estou numa fase algo imprevisível da minha recuperação. E esta data em Newark vai ser a experiência mais arriscada de sempre [deste trio]”. Mas Jarrett faz com os standards o que Escher fazia com as figuras de “Relatividade”: coloca-os num espaço em que as leis naturais não se aplicam, que é para que nem os que ficam de cabeça para baixo se sujeitem a cair.