24 de novembro de 2018

Brown Sugar “I’m in Love With a Dreadlocks: 1977-1980” (Soul Jazz, 2018)

Parecia a celebração de uma vitória civilizacional, uma antecipação mais elegante daquela rave, em Zion, com que o “Matrix Reloaded” viria a terminar: Caron Wheeler, com uma espantosa trena no cabelo, e restante trupe Soul II Soul, a cantar e dançar frente a um cenário composto por baixos-relevos egípcios. “Keep on moving/ Don’t stop like the hands of time/ Click clock, find your own way to stay/ The time will come one day”, dizia a canção, e, de facto, Wheeler, em 1989, estava há uma boa década à espera. Senão de uma emancipação qualquer às mãos de uma figura messiânica, quanto mais não seja, de respeito – pelo menos desde que com Pauline Catlin e Carol Simms, no trio Brown Sugar, deu expressão no início da era Thatcher a algo tão problemático quanto “Black is the colour of my skin/ Black is the life that I live/ And I’m so proud to be the colour that God made me/ And I just got to say/ Black is my colour”, altura, convém não esquecer, em que neonazis marchavam orgulhosamente pelas ruas de Londres. E é nesse contexto que se compreende que elas cantassem coisas como ‘Dreaming of Zion’. 

Aliás, no período, as forças políticas mais radicalmente reacionárias estrangulavam de tal forma a sociedade britânica que Dennis Bovell lançou um single chamado ‘Don’t Call Us Immigrants’. Não admira que produzindo temas das Brown Sugar tivesse gerado um tipo de lovers rock de intervenção – um que, antes de mais, pudesse intervir na própria música do seu tempo. Dito e feito: “You must treat your lover girl right/ If you wanna make lover’s rock”, ouviu-se no “London Calling”, dos Clash. Isto, porque atualizando uma mensagem feminista que, como na época das Crystals, Shirelles e Ronettes, não dispensava inocentes “shoo-bop/ shoo-bap”, Wheeler, Catlin e Simms não hesitavam igualmente em mostrar-se convictamente independentes: “You never seem to understand me/ Well, not the way I want you to/ And if you’ve thought of leaving me/ I suppose that’s the best thing you could do.” Não foram ‘Typical Girls’ (Slits), mas quase ninguém deu por isso. Afinal, talvez seja hoje o tal dia prometido.

Andrew Cyrille, Wadada Leo Smith, Bill Frisell “Lebroba” (ECM, 2018)

O título parece vir celebrar e subverter aquele velho ideal subjacente à linguagem: de que lidamos com um código transparente, comum, prático, funcional, sem grandes angus dialetais. Nessa medida, servirá para recordar que nestas andanças, como acerca da poesia disse um dia Charles Simic, ainda se tenta “fazer a ponte sobre o abismo que se estende entre o nome e a coisa”. Seja como for, parafraseando Aleksei Kruchenykh, por trás disso terá de haver um “transentido” qualquer. Agora, conforme adianta Kevin Whitehead, em notas de apresentação, o neologismo recorre às primeiras sílabas de três palavras que Andrew Cyrille desejou abreviar: Leland (no Mississípi), Brooklyn (em Nova Iorque) e Baltimore (em Maryland), respetivamente as cidades onde Smith, ele próprio e Frisell nasceram. Portanto, nada tão inescrutavelmente novel quanto Sydmeladperbrisho (proposto para designar a futura sede de governo australiana, atual Camberra, com base nas primeiras letras das capitais estaduais do país), nem tão banalmente encriptado quanto ‘Airegin’, de Sonny Rollins (Nigéria, escrito de trás para a frente). 

Miles Davis, por exemplo, foi outro, desses, que andou para aí a ler nomes ao espelho: Selim, no caso. E é dele – ou melhor, do seu segundo grande quinteto – um conceito que esta música traz à memória quando dá mostras de desviar a ênfase da harmonia para o ritmo; isto é, quando usa “time, no changes”. É um pouco como a descoberta da abstração – como o instante em que uma criança pega num caderno de colorir e toma consciência de que pode haver um mundo para lá das margens previamente estabelecidas. Ou seja, trata-se de uma prática que ignora aquilo que por norma se caracteriza como ‘padrão de fábrica’. Nada que, cada um à sua maneira, Cyrille, Smith e Frisell não ensaiem há anos, mas também algo que há muito não faziam com a capacidade de espanto tão intacta quanto aqui, tão cientes da importância de ser de um lugar e tão dispostos a criá-lo do zero, como quem inventa uma palavra.

17 de novembro de 2018

“Venezuela 70, Volume 2: Cosmic Visions of a Latin American Earth – Venezuelan Experimental Rock in the 1970s and Beyond” (Soul Jazz, 2018)

Pois, então, cá está o Volume 2. Se fosse na época dir-se-ia “Tá barato! Dame dos!”, que era o que efetivamente saía da boca de venezuelanos com carteiras recheadas de petrodólares quando confrontados com o preço dos bens e serviços em Miami. Grosso modo, tão indecente liquidez era uma consequência direta da crise petrolífera de 1973, em que a Venezuela soube ativar reservas e beneficiar do embargo decretado aos aliados de Israel pela OPAEP: da noite para o dia, o investimento público praticamente quadruplicou no país, o seu rendimento per capita tornou-se no mais elevado da América Latina e a onda de crude conduziu Carlos Andrés Pérez ao poder. 

Foram anos de ‘Caracas para Locos’, como dizia a canção dos Ofrenda, a banda de Vytas Brenner, em que os jovens tomaram a noite da cidade de assalto, de cinema em cinema, de discoteca em discoteca. Aos países do lado de cá que tinham família no lado de lá iam chegando borrifadelas de tamanha luxúria, em 1975 perfeitamente personificada pela Edwige Fenech de “Obrigado Avó” ("Grazie... Nonna", no original), uma commedia erotica all’italiana, como então se dizia, em que dava corpo a uma personagem (chamada Maria Juana, como não poderia deixar de ser) que parecia vir da capital venezuelana com o motivo expresso de virar a cabeça aos membros masculinos da sua família europeia – da autoria de Enrico Simonetti, a música do filme, embalada pela bossa, não destoaria nesta compilação. 

Mas não é só de estética que aqui se trata. Este “Venezuela 70” procura, antes, documentar o instante em que a produção musical de Caracas se quis ocupar de outras coisas: de dar expressão em sons ao que significava, em 1974, a inauguração do Poliedro, por exemplo, inspirado pelos domos geodésicos de Fuller. Ou, como no caso de Daniel Grau, de se mostrar à altura do que se fazia a norte: “Dejando Volar el Pensamiento”, o seu extraordinário álbum desse ano, tem na capa uma foto de um quarto em cuja parede se vê pendurado um poster alusivo a “Fulfillingness' First Finale”, de Stevie Wonder, e outro a “200 Motels”, de Frank Zappa. E, acima de tudo, de lembrar que a utopia vale mais que a usura: “Agua clara, sin petroleo y con sal/ Te destruyen/ Te construyen un hotel”, cantava Brenner [na foto]. Mas não havia nada a fazer, como alertou Joni Mitchell: “They paved paradise/ And put up a parking lot.”

Anne-Sophie Mutter: “Hommage à Penderecki” + “The Early Years” (Deutsche Grammophon, 2018)

Há coisa de 20 anos, num livro em que aproveitava para pôr as ideias em ordem, Krzysztof Penderecki sugeria que o ato de compor se iniciava de modo fenomenologicamente heurístico e que, no fundo, só poderia evoluir quando se questionassem os princípios subjacentes ao processo criativo sujeitando hipóteses ao maior número possível de tentativas de refutação, “sabendo dar com a esperança nos paradoxos do labirinto” – só lhe faltava ter “A Lógica da Pesquisa Científica” debaixo do braço (Popper). 

Em 2014, no documentário “Paths Through the Labyrinth”, de Anna Schmidt, regressava a esse símbolo: “Para mim, o labirinto representa essa forma que o artista possui (…) de chegar indiretamente ao que procura.” E dava corpo à metáfora vagueando solitariamente pelo prodigioso labirinto de sebes que plantou na parte inferior de uma arborizada alameda da sua vasta propriedade em Luslawice, uma aldeia no sul da Polónia. “É tão grande que às vezes até eu me perco nele”, disse, em entrevista a Oswald Beaujean. “Sempre que escrevo uma peça maior sinto-me às voltas num labirinto. Sigo em frente, depois para um lado ou para o outro e muitas vezes tenho de retroceder, em busca de uma saída qualquer.” 

Escuta-se a sua música – mais concretamente, no caso, a “Sonata Nº 2 para Violino e Piano” ou “Metamorfoses – Concerto para Violino Nº 2” – e, de facto, nenhuma outra imagem tão bem a ilustra. Noutro domínio, o que logo vem à memória é o que em “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam” escreveu Borges: “Ts’ui Pên diria uma vez: Retiro-me para escrever um livro. E outra: Retiro-me para construir um labirinto. Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram um único objeto.” Aqui, claro, a protagonista é Anne-Sophie Mutter, em que Penderecki soube despertar aquele misterioso, abrangente e ferino instinto que parece ter apenas a ver com a real capacidade de gerar descendência. Nela, precisamente do período deste “The Early Years”, quando aos 15, 16, 17 anos tocava concertos de Mozart, Beethoven, Mendelssohn e Bruch como ninguém, reacende-se aquilo pelo qual deu precocemente Karajan: “Há pessoas assim. A meio metro delas sente-se já o fogo que têm a arder dentro de si.”

10 de novembro de 2018

Kamal Keila “Muslims And Christians” (Habibi Funk, 2018)

Certa vez, em Marrocos, um motorista berbere que discursava sobre o assunto como se as religiões monoteístas fossem um fenómeno recente contou-me a história de uma tribo nómada que vivia espalhada pelo deserto na altura em que surgiram os primeiros colonatos muçulmanos e cristãos. Daí em diante, dizia, sempre que os seus líderes previam algum tipo de ameaça – em tempos de fome, seca ou epidemias – faziam um dos seus observar secretamente os movimentos e conversações dos forasteiros mais próximos de modo a indicar com precisão de que tipo de povoado se tratava: se muçulmano ou cristão. Devidamente informados, os líderes da tribo tomavam a sua decisão e anunciavam em voz alta o que nestas ocasiões sempre se imagina alguém a dizer desde que Abraão foi impelido a deixar Ur: “Embora, pessoal! Vocês sabem o que fazer!” E todos se puseram a tirar o mais depressa possível das cestas e alforges os acessórios necessários para se fazer passar por correligionários dessa estranha gente que se fixava no meio do nada a lavrar a terra e a adorar um só deus. Foram sempre recebidos de braços abertos.

Não tendo que o tornar partícipe da moral da história, é óbvio que quando Kamal Keila compôs uma canção como ‘Muslims and Christians’ (“Não discutam/ O Sudão é a nossa pátria/ De norte a sul/ Muçulmanos e cristãos/ Cristãos e muçulmanos/ Cantem pela paz”) desejava um desfecho deste género. Não estava escrito – e a cidade em que ainda vive, Cartum, edificada que está naquele ponto onde o Nilo Branco e o Nilo Azul se juntam num rio só, não soube aproveitar a metáfora que tinha mesmo debaixo do nariz. Aliás, Kamal terá desconfiado que iria ser assim quando em 2005, em Nairobi, por ocasião do Tratado de Naivasha e depois de muito apropriadamente ter cantado ‘Muslims and Christians’ nas cerimónias oficiais que davam por encerrado o conflito entre muçulmanos e cristãos no seu país, ouviu isto da boca de um emissário de Omar al-Bashir: “Que raio estás para aí a dizer? O Sudão é uma nação árabe!” Ficou de coração partido, tal como o Sudão está hoje dividido em dois. Nessa medida, o maior mérito deste conjunto de gravações inéditas (de 1992) é tornar a juntar as peças que entretanto se soltaram. Sem nunca ter um disco editado antes, é como ele canta desde os anos 70: “Sudão/ No coração de África”.