15 de junho de 2013

“Mirror To the Soul: Music, Culture and Identity in the Caribbean 1920-72” (Soul Jazz, 2013)



O documentário arranca no Haiti, em 62, numa cerimónia vodu junto à catarata Le Saut. O locutor, com solene sobranceria, relata estarmos a “testemunhar manifestações com origem na mais negra África”, mas as câmaras, ao contrário dos espíritos, são incapazes de possuir os “nativos” que se banham nas águas da Montagne Terrible. Sem demora – e ao jeito do “Jornal Português”, de António Lopes Ribeiro – surge nova curta-metragem de atualidades filmadas numa parada militar na Havana do ‘Coronel Batista’, em vésperas da sua factual ascensão à presidência de Cuba; o apresentador, primeiro circunspetamente mas logo com desembaraço, insinua que por essas instáveis paragens só com mão-de-ferro se põe cobro à balbúrdia política. Um salto no tempo de duas décadas e, num mercado de Brixton, eis a prova de que “as donas-de-casa são todas iguais”, com a reportagem escoltando caribenhas de banca em banca, servindo de virtuoso exemplo de integração ao adquirir produtos tão frescos quão recentes na memória estavam os motins raciais de 58, em Notting Hill. Depois visita-se a lenitiva Nassau em 37: um idílio estival para os “súbditos da Coroa”, “porto de abrigo” retratado como uma utopia turística alicerçada no colonialismo. E assim sucessivamente, em meia centena de pequenos filmes extraídos às bobines da British Pathé. Os exóticos destinos – da Jamaica às Ilhas Virgens, de Bermuda a Barbados – aparecem febrilmente sequenciados, num processo que transfere para objetos cinematográficos a prática normalmente aplicada pela Soul Jazz a registos fonográficos. O resultado é continuamente intrigante, ocasionalmente perverso e ilustra desacreditadas teses em questões de género, classe ou carácter biológico, levando ainda a refletir sobre modelos de comunicação, medidas de controlo social ou sistemas de organização governativa e a interrogar noções de identidade, cidadania e representação. É também, no contexto do desenvolvimento ao longo dos anos de uma peculiar perceção da realidade antilhana no Reino Unido, uma meditação acerca do valor contemporâneo dos arquivos audiovisuais – nomeadamente dos pré-televisivos – e da sua validade documental e pertinência historiográfica.
A narrativa principal de “Mirror to the Soul” oculta fascinantes temáticas secundárias: uma dirá respeito à própria Pathé e ao seu coerente ‘sentido de Estado’, seja na condescendência com que mostra o quotidiano das colónias, seja a acompanhar a jubilante receção a membros da Família Real ou na maneira em que promove o imperativo moral de se acolherem emigrantes na sociedade londrina; outra terá que ver, precisamente, com a experiência dos caribenhos na capital inglesa, informando quanto à sua participação na Segunda Guerra Mundial, divulgando a ação de trupes de dança e agrupamentos musicais, noticiando a chegada do navio Empire Windrush, em 48 expedido de Kinsgton com 500 passageiros “em busca de uma vida melhor”, ou denunciando a violência de quem via na miscigenação um prenúncio para a derrocada civilizacional; depois, vários segmentos consagrados à exploração da matéria-prima das ilhas – sal, açúcar, rum, café, banana, ananás – através de multinacionais sublinham a ilusão da independência sempre que a soberania económica é elusiva; outros, capturando em película as tropas de Fidel Castro e depoimentos de Kennedy por alturas da invasão da Baía dos Porcos ou da crise dos mísseis, permitem observar as relações entre Cuba e os EUA durante a Guerra Fria; mas a mais sedutora será, porventura, a mais propagandística, que é a que promulga uma ideia de paraíso tropical que dura até hoje, em trechos excursionistas enodoados pelo racismo. Em complemento, compilam-se num livreto elucidativos textos do organizador, Stuart Baker, e uma apócrifa – e, dada a sua sincronização com as imagens no DVD, controversa – banda-sonora colige raridades (André Toussaint, Lord Brynner, Irakere, El Gran Combo) e grupos afro-caribenhos familiares à editora (Black Caribs of Belize, Oba-Ilu, Tumba Francesa). No fundo, é apenas apropriado que tal prolixidade não afaste em definitivo os fantasmas do imperialismo cultural.

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