4 de março de 2017

Mozart/Schumann: Fantaisies (Warner, 2017)


Piotr Anderszewski passeia pela sua Varsóvia natal de câmara na mão, mas não produz uma versão pessoal do Kino-Pravda, longe disso. Sem que interfira especialmente em cada espaço, é certo, regista cenas do quotidiano, blocos de apartamentos soviéticos ou o renovado centro histórico, mas, acima de tudo, o seu olhar vai-se deixando atrair por cemitérios, prédios devolutos, ruínas. Passa grande parte do tempo captando imagens de paredes – umas com marcas de incêndio, outras cobertas de graffiti – e muros de tinta descascada com coroas de arame farpado (o seu avô morreu em Auschwitz). Mais do que da perspetiva do arqueólogo, observa a cidade do mesmo modo que um geólogo examina conjuntos de rochas sedimentares. E numa simbologia algo heraclítica sucedem-se na montagem planos obtidos nas margens do Vistula, com o ruído leve da água corrente a misturar-se com o contínuo rumor da circulação automóvel. A este seu documentário, de forma vagamente antitética, chamou “Je m’appelle Varsovie”. Em nota introdutória enumera os eventos cataclísmicos que constituem parte significativa da história da capital polaca ao longo do século XX e termina assim: “Como em qualquer outro lugar, a vida continua, ainda que tenhamos cadáveres sob os pés. E há momentos em que os seus fantasmas se levantam.”

Não admira, portanto, que há coisa de um mês dizesse ao “The New York Times” que tinha “um trauma no que diz respeito a Varsóvia”, que trocou por Paris e Lisboa. Trata-se, então, de catarse. Ou, quiçá, de aceitar o facto de que exílio e alienação andam muitas vezes de mãos dadas. Daí que neste CD de um lirismo tão magoado, a acompanhar o lançamento em DVD do seu filme, Anderszewski inclua a “Fantasia em Dó maior” (cujo esmagador primeiro andamento chegou a ter o título de “Ruínas”) e “Tema e Variações em Mi bemol maior” (vulgo, ‘Variações Fantasma’), de Schumann, e as cirscunspetas “Fantasia” e “Sonata para Piano Nº 14”, ambas naquela tonalidade (o Dó menor) que, a escrever para piano, Mozart tinha reservado unicamente para a “Sonata Nº 8”, composta por alturas da morte da mãe. Mais fantasmas.

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