11 de janeiro de 2014

Bach: Matthäus-Passion (Harmonia Mundi, 2013)



Im, Fink, Güra, Lehtipuu, Weisser, Wolff, RIAS Kammerchor, Staats- und Domchor Berlin, Akademie für Alte Musik Berlin, René Jacobs (d)

Num depoimento informalmente tomado entre sessões de gravação pela documentarista Sarah Blum, e agora reproduzido em DVD, tentando descrever o significado exato de cantar árias da ‘Paixão’ espremida entre coros colocados um frente ao outro, a meio-soprano argentina Bernarda Fink hesita e gesticula com diligência, até que, num repente, traduz em palavras o movimento que desenham no ar as suas mãos: “É como estar entre dois sóis”, por fim exclama, denunciando com os olhos, mais do que com os lábios, um sorriso beato. Há na sua resposta algo daquilo que lhe permite entregar-se com obstinação carpideira a ‘Buss und Reu’ (“Penitência e remorso”) ou ‘Erbarme dich’ (“Tem piedade de mim”), num efeito fiel à visão de René Jacobs, que, conforme formulação sua no inteligente ensaio que redigiu para o livreto que acompanha esta edição, e não sem redundância, labora aqui “por amor a Bach e pela glória de Deus”. Curiosamente – como, aliás, não poderia deixar de ser, embora seja importante ressalvar –, professar práticas piedosas não compromete uma investigação quase anatómica das condições em que a obra, na sua expandida versão, foi na Sexta-Feira Santa de 1736 apresentada. De facto, de acordo com uma tese de Konrad Küster publicada em 1999, a execução da “Paixão Segundo São Mateus” nesse 30 de março obedeceu a um radical impulso, assente na assimétrica divisão do ensemble pelos extremos opostos da nave central da Igreja de São Tomás, em Leipzig. Em termos simbólicos – e pode falar-se de uma dramaturgia teológica nesta conceção –, a principal consequência de tal arranjo espacial (igualmente em disco, de trás para a frente e não, como estamos habituados, da esquerda para a direita) observa-se na relação que o auditório estabelece com o segundo coro, mais remoto, distante dos protagonistas, em que se verifica a desorientação, impotência e frustrações bem patentes, por exemplo, em ‘Sind Blitze, sind Donner in Wolken verschwunden?’ (“Estão os raios, estão os trovões nas nuvens desaparecidos?”). Trata-se de uma forma literalmente profunda de gerar compaixão pelo martírio de Jesus que Jacobs recriou em estúdio, recorrendo a solistas (Werner Güra enquanto Mateus, Johannes Weisser no papel de Cristo, e, além de Fink, também Sunhae Im, Topi Lehtipuu, Konstantin Wolff ou Artuu Kataja) que, segundo prescrição do maestro, sintetizam impecavelmente o misticismo dos oratórios, a dedicação ao texto do lied, e a sensualidade da ópera. Porventura a mais espiritual interpretação da ‘Paixão’ de tempos recentes.

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