5 de novembro de 2016

Adams: Scheherazade.2 (Nonesuch, 2016)



Em 1888, na introdução de “Scheherazade”, Rimsky-Korsakov escrevia assim: “Convencido da falsidade e falta de fidelidade da mulher, o sultão Shariar fez a solene promessa de que mandaria executar cada uma das suas futuras esposas após a respetiva noite de núpcias. Mas Sherazade conseguiu salvar-se contando-lhe histórias durante mil e uma noites. Movido pela curiosidade, o sultão foi diferindo a ordem de cumprimento da sentença até que, por fim, abandonou em definitivo a sangrenta jura.” Daqui, como se sabe, deixou-se o russo guiar pelo mundo de Aladino, Simbad, Ali Babá, et al., do qual regressaria com uma das grandes suítes sinfónicas do seu tempo em mãos.

Já o norte-americano John Adams, que em fevereiro fará 70 anos, vive na era do politicamente correto e, antes que desse por si invadido pela ambiguidade, ao deixar-se inspirar pelas mesmíssimas “Mil e Uma Noites” não passou do preâmbulo. Como o próprio explica: “Pôr-me a pensar no que seria uma Sherazade dos dias de hoje trouxe-me à memória exemplos famosos de mulheres com as vidas em risco, como a ‘rapariga do sutiã azul’, na praça Tahrir, espancada, humilhada, arrastada pelas ruas.” Foi então que decidiu compor uma “sinfonia dramática”, para recorrer à designação de Berlioz, na qual “o papel principal é interpretado pelo violino”. Nem sempre atraente ou estruturalmente bem resolvida, a peça não deixa de ser a sua melhor na última década. Há momentos em que tudo é impasse, indefinição, intriga, e nem por isso se dispersa a atenção. Noutros, a massa orquestral é insidiosa, insistente, inclemente e dela tenta soltar-se Leila Josefowicz, a heroína, ora desafiante, ora dominada, nunca menos que determinada. Sente-se a sombra do Bartók do “Concerto para Violino Nº2” aqui, a do Sibelius do Op. 47, acolá. No final do terceiro andamento dão-se uns tutti que são como uma condenação à morte. O violino reage com uma frase curta, arrastada, ferida, os sinais de vida reduzidos a raiva, rancor e repulsa pelo mundo dos homens.

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