26 de novembro de 2016

Keith Jarrett “A Multitude Of Angels: Modena, Ferrara, Torino, Genova” (ECM, 2016)



Módena, Ferrara, Turim, Génova, outubro de 1996. Nas manchetes dos jornais sentiam-se as ondas de choque desencadeadas pela última provocação da Liga Norte mas também chegavam novas da campanha para as presidenciais norte-americanas, em que se discutia mais o financiamento dos partidos do que o mérito dos candidatos. Na rádio e televisão rodavam as canzoni de Lucio Dalla e nas salas de cinema estreava “Trainspotting”. Deitado num quarto de hotel ou debruçado da janela de um avião sobre o rio Pó imagina-se Keith Jarrett a interrogar-se: mas que faço eu aqui? Estava à beira da exaustão física e mental, consumido pela síndrome de fadiga crónica, aquilo a que se vai chamando doença sistémica de intolerância ao esforço. Em notas de apresentação brutalmente honestas, admite agora que se sentia entre a vida e a morte, a lutar com todas as forças para não sucumbir à enfermidade e a tentar reunir diariamente a coragem necessária para subir ao palco. Logo após estas quatro datas seria engolido pela depressão e pela debilidade, numa profunda agonia de que se soltaria aos poucos até à edição do fisioterapêutico “The Melody at Night With You”.

Curiosamente, ou, quiçá, em vista disto, considera estas gravações como o cume da sua carreira. Diz: “Estes foram os últimos concertos que dei sem intervalos entre sets. [i.e., com aqueles extensos e excêntricos arcos narrativos a rondar a meia hora cada um, mais imponentes que a pala do Siza]. Ontem, ao acabar de escutá-los, lembrei-me da razão de ser disto tudo: a capacidade de captar conscientemente cada momento.” Na realidade, estes 280 minutos são uma espécie de compêndio de um executante já de si enciclopédico. Ou melhor, são como um “Borda d’Água” do pianismo contemporâneo, ecumenicamente permeáveis ao conhecimento técnico mas também ao esotérico, abertos a todo o tipo de curiosidades. Do telúrico (Ferrara, “Part I”) ao celífluo (Turim, “Part I) será apenas incoerente para uns, indulgente para outros, indispensável para os demais.

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