30 de maio de 2009

Edu Lobo e Chico Buarque "O Grande Circo Místico"

Não terá sido a primeira nem a última vez que uma tenda de circo se armou em torno de um poema. Mas foi das poucas em que, a pretexto de olhar nos olhos o Criador, o Homem não se ajoelhou. É que – há na vida que aceitá-lo – nem sempre o degredo se pinta com a cor do pecado. Por isso, para que subam ao palco, que se expulsem do paraíso os actores – é o melhor destino dos que desejam em segredo. “O Grande Circo Místico”, pela mão de Naum Alves de Souza e do coreógrafo português Carlos Trincheiras, ergueu-se em 1982. A sua banda-sonora garantiu-lhe a eternidade. Esta terceira versão em CD difere da de 1993 (Velas) mas é idêntica à de 2002 (Dubas): cá estão as canções feitas de luz e sombra, as vagas valsas, maltrapilhas marchas, ornatos oratórios. E a bela leveza das bailarinas, o pranto dos palhaços, o indecoro das coristas. Com Milton, Gal, Gil ou Simone nas vozes dos anjos, e uma barca de insuperáveis instrumentistas (António Adolfo, Nelson Ângelo, Dorothy Ashby) empurrada pelo sopro de uma big band e embalada por uma ondulante orquestra de cordas. Na plateia sorriem Weill, Richard Strauss, Bernstein, Sondheim, Rota, Jobim e Miles. No momento em que explodiu o BRock, não houve melhor túmulo para a MPB. Obrigatório.

23 de maio de 2009

Levitts "We Are the Levitts"

Chamam-lhe o ‘ano que nunca acabou’ – talvez porque não se possa matar de vez a esperança. Pois com a chegada da Primavera, de Praga a Lisboa, renovou-se então a fé no Homem sem garantias sobre a justiça do gesto. E, da Cidade do México a My Lai, e de Martin Luther King Jr. a Robert Kennedy, só o sangue fez a crónica definitiva desse tempo. Por isso – como relembrou há pouco “Hear, O Israel” – muito dirá da força da utopia que artefactos de 68 regressem ainda capazes de animar espíritos a uma realidade em que não se impôs a ‘nova era’. Não terá sido outra a razão que levou Al, Stella Levitt e os seus sete filhos a cantar mensagens de paz para o futuro. E unindo – antes de Steve Kuhn e Karin Krog – o que raramente se juntou: jazz e sunshine pop. Situando-se – graças à presença de Pete Yellin, Ronnie Cuber e Chick Corea – entre as “directions in music” apontadas por Miles Davis em “Filles de Kilimanjaro” e Roger Nichols, Free Design ou Sérgio Mendes (há uma versão, em português, de Jobim). Uma pérola.

16 de maio de 2009

Mariana Aydar "Peixes Pássaros Pessoas"

Há quem lhe chame ainda “o país das cantoras”. E um tempo houve em que memória e desejo se confundiam como se toda a música chegada do Brasil apontasse para um regresso à natureza. Isso, e encontrar na “verdade da voz” (feminina) remédio para males de que não há cura. O postulado chamou-se Elis, Bethânia, Gal ou, até, Simone. Mas logo apareceu quem na crença visse a suspensão da realidade. Por isso, e porque uma agenda mais dependente do marketing do que do talento impôs um tumulto que nem sempre interessou ouvir, só no encontro com Adriana Calcanhotto, Marisa Monte ou Zélia Duncan viu a luz aquele que, neste contexto, faz da cultura popular uma profissão de fé. Mas entretanto voaram 20 anos. E um novo dia exige uma nova canção. Disso saberá Tom Zé, que em “Estudando a Bossa” evoca o passado para falar do futuro em duetos com Mariana Aydar, Tita Lima, Andréia Dias, Márcia Castro, Marina de la Riva ou Anelis Assumpção – essas sim, “novas vozes”. Aydar, precisamente, apresenta em Portugal (nos dias que correm, quase uma excepção) o sucessor de “Kavita 1” e distingue-se pela tomada de responsabilidade que a crise exige. Isto quer dizer que à toada rare groove da estreia (por cortesia do produtor, BiD) se sobrepôs a necessidade de aclarar águas e anunciar a razão única de se estar aqui e agora. Kassin e Duani combinam estilo e substância nos arranjos e fazem-no com uma noção de tempo histórico que cruza ecos de afoxê, forró e samba com os mesmos vestígios do rock que enreda Caetano Veloso ou Marcelo Camelo. E quando se define um espaço próprio – convidados como Zeca Pagodinho e Mayra Andrade só o confirmam – fica na mente gravada a ideia de que os ventos de mudança derivam hoje de discretos exercícios pessoais. Lição que Verônica Ferriani e Ana Costa precisarão de aprender, mais valia face ao que em 2008 fizeram Daniela Procópio, Beatriz Azevedo, Aline de Lima ou Cris Aflalo, e uma importante aproximação a Roberta Sá e Fabiana Cozza. E se a próxima curva na estrada confirmar Mallu Magalhães, Dani Gurgel, Fernanda Dias ou Tatiana Parra, tropeçará de vez na esperança o que parecia destinado a errar no escuro.

9 de maio de 2009

Marisa Monte "Infinito ao meu Redor"

A agenda assinala duas décadas de carreira. Para trás estão oito CD (incluindo “Os Tribalistas”) e, agora, seis DVD. Não é muito, mas é demais. “Infinito ao Meu Redor”, subtraído aos 18 meses da digressão “Universo Particular”, não é um concerto – contém, isso sim, nove canções em meia hora de excertos, com um inédito (‘Não é Proibido’, original da pior extracção axé-mix já adoptado por Ivete Sangalo), e um documentário de filiação “60 Minutes”/“Toda a Verdade”. Narrado por Marisa, começa discutindo “meios de produção” e “ética de trabalho”, fala da imprensa enquanto “negócio de vender notícias”, mas não vai além do registo ‘“Carrie Bradshaw lê “O Capital”’, ainda que pelos vistos não tenha chegado à definição de “fetichismo da mercadoria”. Mas cedo, e previsivelmente, tudo reverte ao tom MTV-“Diary”, diluindo melancolia de tour bus e olheiras de jet lag pelas infinitas e indistintas plateias, cidades e suites de hotel do mundo inteiro. O trunfo é a mão perdedora: a cantora olha para lá do espelho e encontra o umbigo. 1º de Maio em Lisboa: nos Restauradores, um revolução-som-sistema toca a versão de Roberta Miranda de ‘Cabecinha no Ombro’. O Marxismo é um lugar estranho.
 

3 de maio de 2009

Susana Baca "Seis Poemas"


Em Maio de 1963, no Peru, 29 balas encontraram o corpo do poeta e revolucionário Javier Heraud. Chabuca Granda, primeira-dama da trova peruana, emudeceu e, consigo, calou-se a Primavera. Anuviada por uma mágoa que parecia indizível, nada gravou ou – supõe-se – compôs no lutuoso par de anos que se seguiu. Até que um dia voltou com dez novas canções assombradas pela morte, suspensas em misteriosas melodias e com cada nota bem colada à letra. Vinham manchadas de sangue, secretas como um tiro ouvido numa floresta anoitecida e, ouve-se em “Un Cuento Silencioso”, de um tempo em que se dizia que o mundo iria morrer de frio. No final da década, até ao cantar clássicos (de “La Flor de la Canela” a “Fina Estampa”) se adivinhava pesar. Susana Baca, sua herdeira e protegida, escolheu agora três canções desse ciclo e revoltou-lhes entranhas. Daí partiu para uma consonância temática que se alastra ao folclore e inclui Lorca, outro poeta assassinado. Pela mão de Sergio Valdeos, guitarrista e director musical, a luz é aqui mais luz e a sombra mais sombra. Porque, lê-se em “El Fusil del Poeta”, evoca o dia em que “era el sol más sol al río / más río el río, y más la guerra era / y más la muerte desde la ribera”.

1 de maio de 2009

Caetano Veloso "Zii e Zie"

O zimbro na capa diz muito. E a foto traz à memória a interrogação de Jobim em “Inútil Paisagem”: “de que serve esta onda que quebra?”. Fala-se portanto de vida e morte. Também por ali, à esquerda, paira a palavra transambas. Na nebulosa contracapa enunciam-se canções, postula-se a insigne bandaCê e, da bruma, surge: transrock. Caetano foi sempre palavroso mas raramente tão explícito. Em “Zii e Zie” quase não canta – zizia, como as cigarras, e está lutuoso. No melhor, sintoniza-se com o fuzz da guitarra de Pedro Sá, aqui protagonista de voz clara. No pior, torna espástico até ‘Incompatibilidade de Génios’, o desembaraçado samba de João Bosco e Aldir Blanc. 
Mas Caetano costuma zombar com a ideia do envelhecimento. Se “Cê” foi a retracção na ferida aberta, o sanhoso nervo lesado e uma zangada e reaccionária neurose, “Zii e Zie”, embora não pareça, de tão lasso aqui ou flébil acolá, é a metástase, o músculo recuperado – é o que corrige e esclarece as imensas falhas do outro. Talvez o seu maior mérito seja sugerir que toda a obra é corruptível. E é novamente um disco a transir Caetano: ‘Perdeu’ liga-se ao ‘Herói’ de “Cê”, a voz de ‘Por Quem?’ zanza ululante num incerto impulso sexual que lembra o ‘Etc’, de “Estrangeiro”, ‘A Cor Amarela’ evoca os anos com Carlinhos Brown (o verso “uma menina preta de biquíni amarelo na frente da onda” recorda a capa do álbum que gravaram em 87), a melopeia de ‘A Base de Guantánamo’ alinha-se com ‘Haiti’, de “Tropicália 2”, e a sumptuária exaltação de ‘Lapa’ aproxima-se da ‘Itapuã’ de “Circuladô”. Há ainda umas tristes súplicas, sociologia critiqueira, uns galanteios prometidos no blog “Obra em Progresso” e a resposta ao desafio de Lobão (“Amado Caetano, chega de verdade. Viva alguns enganos, viva o samba meio troncho”). Mas nada ilumina as trevas. O disco público revelou-se um acto de marginalização. Siga.