25 de abril de 2014

Entrevista a Caetano Veloso



Com o álbum “Cê”, em 2006, Caetano Veloso deu início a uma colaboração com Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado, que, cimentada por mais duas gravações de estúdio e em inúmeros concertos, inaugurou, na sua obra, um novo capítulo de criatividade a todos os níveis notável. Desde então, também, a edição de discos ao vivo e de DVD – entre os quais o recente “Multishow Ao Vivo – Abraçaço” – permitiu acompanhar, em movimento, a manifestação coletiva de aspetos de transformação cultural intrínsecos à especificidade artística do seu agente fundamental. Por Caetano, esse grupo é grafado bandaCê, como se fosse impossível dissociá-lo de sua órbita. Tudo isso – estando iminente o primeiro de quatro espetáculos agendados para Portugal no espaço de mês e meio – serviu de mote a uma conversa por email.

Optou nos últimos anos por uma ação pública mais inclusiva, com consequências diretas nos discos que gravou com a bandaCê. Todos esses diálogos aumentaram o grau de transparência do trabalho que ia desenvolvendo. Era um objetivo importante para si?
Mantive um blogue para acompanhar a feitura do álbum “Zii e Zie”. Hoje em dia meu escritório mantém uma conta no Facebook e outra no Twitter, mas eu não participo diretamente. Às vezes escrevo posts curtos que eles põem lá – me dizem que toda essa coisa de redes sociais do meu escritório é muito bem feita. Quando eu estava gravando o “Zii e Zie” a participação dos que acompanhavam o blogue foi direta e teve alguns resultados práticos na definição de pelo menos o arranjo de uma das canções. Mas sempre fui muito falastrão: as pessoas sempre souberam, através de entrevistas ou de textos escritos para jornal (ou livro) muita coisa sobre os movimentos íntimos ligados à criação de canções, discos e shows

Por outro lado, contrariou aquela romântica conceção de que, para criar, se tem o artista de alhear do mundo. Era indispensável para a integridade deste trabalho mostrá-lo sensível às tensões e torções do quotidiano?
Sob alguns aspetos, sou muito romântico, mas esse sonho de alheamento do mundo não é muito meu. As marcas do dia-a-dia contemporâneo sempre estiveram à mostra em minha música. Ritmos, gírias, dicções, tudo sempre datou nitidamente minha criação.

Será legítimo afirmar que desde “Cê”, no entanto, mais claramente se tornaram a unir os fóruns artísticos e políticos na sua expressão?
Acho difícil dizer que em “Cê” haja mais política explícita do que nas [canções] tropicalistas ‘Enquanto Seu Lobo Não Vem’ e ‘Divino, Maravilhoso’, ou em “Velô”, disco do começo dos anos 1980. [Em “Abraçaço”] as canções ‘Um Comunista’ e ‘O Império da Lei’ tratam de assuntos da política, mas não creio que sejam elas mesmas canções propriamente políticas. 

Mas quão integrante dos processos artístico e intelectual de “Abraçaço”, por exemplo, foi esta espécie de compreensão da ‘dimensão coletiva de Caetano Veloso’, isto é, que sentido de propriedade se transfere do artista para o coletivo, e vice-versa? 
Não posso mensurar isso. Música e política são coisas que se relacionam de modo oblíquo, quanto muito. Minhas oscilantes observações sobre a vida coletiva se tornam escolhas de gêneros para parodiar, comentar, homenagear. A música axé do carnaval baiano ou o baile funk carioca terão aparecido aí por essa razão. São aspectos da criatividade artística brasileira que tenho a ambição de pôr em nova perspectiva. Na verdade, é assim desde o tropicalismo. Hoje, a própria formação da bandaCê é já um comentário histórico e estético. Ali se pode ver que, entre outras coisas, algo é dito sobre o mito do indie rock.

Por outro lado, talvez tenham sido necessários três discos para que Pedro, Ricardo e Marcelo se dissociassem um pouco dessa ‘dimensão coletiva’. Como integrou os estímulos concretos de trabalhar com estes três músicos e, presumo, de compor também com eles em mente? 
Fiz as canções de “Cê” antes de a banda se formar. Foi o repertório já composto que me levou, por intermédio de Pedro Sá, a Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado. As dos outros dois discos (“Zii e Zie” e “Abraçaço”) foram feitas com o som da banda resultante em mente. Os três caras são muito refinados e cultos: conhecem tudo do rock tradicional, do contemporâneo, do samba de hoje e de sempre (incluindo a bossa nova), do jazz e da música eletrônica. Tudo a que me quero referir eles já conhecem – e ainda me mostram outras coisas.

Momentos houve nessa trilogia em que a transferência da responsabilidade criativa para o auditório ou a própria banda me pareceram a ‘obra de arte’ em si, quase alheada a fatores de mercado. Não será também motivo de celebração essa subversão das expectativas?
Em geral, trabalho como quem desconhece as questões de mercado. Todos os níveis da criação são abordados como se eu estivesse realizando obras de arte. Das conversas com o cenógrafo Hélio Eichbauer às trocas que Ricardo faz entre baixo e teclado no decorrer de um arranjo; do lugar onde o show se dá ao técnico de estúdio. Tenho dificuldade de me satisfazer com o que faço. Acho mesmo tudo muito insatisfatório, mas nem por isso deixo de poder celebrar a alegria de conseguir o que consigo com os artistas que trabalham comigo. 

Não deixo de notar em “Abraçaço” uma tendência que associo a esse tal momento de cumplicidade, e que se traduz, por exemplo, em falar de Carlos Marighella ou de João Gilberto, Carlos Lyra ou Bob Dylan sem mencionar o nome de nenhum. Foi uma preocupação, projetar uma carga alegórica, quase oracular, diretamente sobre materiais de tamanha especificidade social, política e cultural? 
Em ‘A Bossa Nova é Foda’ eu senti muito prazer em falar sobre João, Lyra e Dylan de modo enigmático, sem mencionar-lhes os nomes, como se fossem conceitos num jogo de palavras cruzadas. Os nomes dos lutadores de MMA [Júnior Cigano, José Aldo, Lyoto Machida, Vítor Belfort, Anderson Silva], no entanto, são pronunciados por extenso. E, na verdade, a maioria do público teria mais intimidade com os nomes de alguns desses lutadores do que com os nomes de músicos que têm de ser adivinhados. O resultado é estranhamente excitante. Foram raras as pessoas, mesmo de entre as que conhecem música, que decifraram o nome Carlos Lyra naquela charada [“O magno instrumento grego antigo diz (…) // Que é influência do jazz”]. Mas ficam fascinadas com as imagens meio absurdas que a sequência de palavras sugere. Quanto [ao revolucionário] Marighella, concluí a canção sem me dar conta de que não tinha incluído o nome dele na letra. É que a expressão “um mulato baiano” me satisfez totalmente. Acho ‘Um Comunista’ uma canção estranha. É meio paródia de canção de protesto dos anos 1960, meio fala didática – mas com raciocínios que não se sustentam. Gosto imensamente de o refrão falar dos comunistas com um carinho semelhante ao que Léo Ferré faz com ‘Les Anarchistes’. Muitas vezes as pessoas na plateia gritam o nome de Marighella. Mas prefiro quando cantam o refrão comigo. Muita gente cantando, docemente, “os comunistas guardavam o sonho, os comunistas, os comunistas” é coisa que me emociona. 

Se uma coisa o Caetano tem provado ao longo dos anos – com paradigma em ‘Terra’ – é essa capacidade de negociar com a linguagem do horror ressalvando valores ecuménicos. Que imanência lhe guia ao tratar assuntos tão difíceis quanto os do exílio, repressão política ou iniquidade social?
Gosto de sentir o gosto da vida. Há o terror e a maravilha de viver os momentos que se dilatam, ver sumir os que escorregam depressa para o nada, a (a)ventura de simplesmente ser. Cantar pode intensificar tudo isso. Gosto muito de cantar. Não sei se feliz ou infelizmente, não fui dotado de grande musicalidade, de grande facilidade de captar as relações entre as alturas dos sons – pelo menos não como Milton Nascimento, João Bôsco, Guinga, Djavan, Egberto ou Gil, para citar só alguns: se eu tivesse essa grande capacidade musical, talvez eu virasse um chato que viveria fazendo firulas com a garganta.

Por falar nestas questões, em agosto passado, em entrevista ao Expresso, Gilberto Gil disse que “a revolução, a ser continuada, é a revolução do viver.” Esta é uma frase que julgo se aplicar também a si, não?
Suponho que você não esteja de todo enganado. Mas, que sei eu? Meu trabalho recente é muito cheio de minha história.

Mas a sua posição, socialmente, é de maior desconfiança?
Pode ser. Já ouvi de Gil algumas suposições otimistas a respeito até de governança mundial, coisa que intuo distante e nem sei se desejável. Seu entusiasmo com a ‘ultrademocracia’ proporcionada pelo advento da internet também não foi acompanhado por um sentimento semelhante da minha parte. Concordo que a participação popular é uma questão central. Mas não me sinto desencantado. Vejo é grandes complexidades e procuro estar atento a isso.

Acho “Abraçaço” tão claro e bem resolvido quanto o melhor que fez com a Outra Banda da Terra. Ou seja: aquilo que parecia um corte com o passado – quando saiu “Cê” – tornou-se antes numa redefinição do próprio Caetano enquanto compositor?
“Cê” é, para mim, o melhor dos três discos com a nova banda. E justamente por significar uma redefinição do meu trabalho de compositor. Quando você diz que “Abraçaço” é muito bem resolvido me surpreendo um pouco e me prometo estudar esse disco, comparando-o com os outros dois, e descobrir o que o leva a provocar esse tipo de reação (você não é o único a achá-lo o melhor dos três). Mas o fato é que não tenho paciência de ouvir meus próprios discos. Quando opino sobre o “Cê”, é baseado em lembranças. Posso apenas supor que a maneira não intencional como “Abraçaço” foi feito, tão sem controlo consciente, deve ter deixado espaço para a banda mostrar, relaxadamente, o quanto amadureceu. A captação do som também, por Moreno e Daniel Carvalho, deve ser mais sábia e mais natural.

Foi, para si, a bandaCê um instrumento para projetar o futuro, transformar o presente e, também, mudar um pouco o passado?
As canções que compus para o “Cê” me levaram aos músicos que formam a banda. E isso tudo me levou a coisas que de facto mudam o passado. Não que isso não aconteça cada vez que se faz alguma coisa relevante. Fico impressionado com o efeito que “Abraçaço” produziu em você. 

Consegue refletir sobre o impacto da bandaCê na sua obra? Sobre o que aprendeu?
Aprendo sempre com esses músicos. Com Pedro Sá, desde que ele era menino, já que é amigo de infância de meu filho Moreno e vivia muito em minha casa. A trilogia que realizámos juntos é um trabalho que esclarece aos meus próprios olhos o sentido de tudo o que tenho feito na área da canção popular. 

Isso tem tudo a ver com linguagem. A propósito da elástica construção de certa lírica em “Abraçaço”, em ‘Parabéns’ ou ‘Funk Melódico’, recordo ‘Língua’ e vêm-me à memória os ressaibos elitistas com que muitas vezes se discute o Acordo Ortográfico. Foi importante “Abraçaço” mostrar uma fala, chamemos-lhe, não pacificada?
Os aspetos elitistas são os que menos me interessam na crítica. Mas não sou fã do Acordo. A mera diminuição do uso de acentos não faz sentido, a não ser que se queira dizer que, à luz da força da língua inglesa e da tecnologia digital e da difusão virtual, cedilhas e circunflexos passam a ser mero atraso nas comunicações. Do ponto de vista do uso da língua, não haver diferença entre "para" e "pára" só traz confusão. Desde a queda dos acentos diferenciais, nos anos 1970, que me ressinto de nunca estar certo de se a frase que estou lendo começa com "fora" ou "fôra". Guimarães Rosa dizia que o português precisa de mais, não de menos acentos. ‘Parabéns’ é a transcrição ipsis literis de um email de aniversário que recebi de um amigo. E ‘Funk Melódico’ (cujo título você, numa forma que me agrada, mais à inglesa do que à francesa, grafa com ambas as iniciais maiúsculas) é demonstração de admiração pelo funk carioca, forma de expressão nascida e cultivada nas favelas semianalfabetas. Acho as UPPs [Unidade de Polícia Pacificadora, principalmente ativa junto às comunidades carenciadas e sujeitas à influência do crime organizado no Rio de Janeiro] um avanço no enfrentamento da violência urbana. Nunca iria apoiar as ações de narcotraficantes para retomar o poder nas comunidades. Mas uma polícia militarizada que mata tem de ser transformada. Sou pela pacificação, mas não há paz. O Rio e São Paulo já não estão entre as 16 cidades brasileiras que estão entre as 50 mais violentas do mundo. Não era assim faz alguns anos. Há progresso. Talvez orgânico e natural, nascido da composição etária da população e de outros fatores (como o crescimento das igrejas evangélicas). Ou pelo menos esperança: as duas maiores cidades brasileiras já foram mais violentas do que são agora. Mas estamos longe de poder sentir satisfação ou orgulho. 

Voltando ao disco, convenhamos, já há músicos suficientes pelo mundo a cantar ‘O Leãozinho’ – nada contra. Mas, ainda assim, não se esperaria nesta fase da sua carreira um projeto praticamente retaliativo em termos estéticos.
Trabalho sempre com a vontade natural de criar alguma coisa. Isso me excita. Amo ‘O Leãozinho’, mas faço minhas músicas novas a partir do que me anima agora. 

O álbum “Recanto”, de Gal Costa, é quase satélite disto tudo. Também no Verão passado, e igualmente em entrevista ao Expresso, Gal sublinhou que todo o projeto nasceu consigo e que as suas vidas “caminham juntas mas ambas são essenciais para que ‘Recanto’ existisse”.
Desejei fazer “Recanto” porque sentia necessidade de que as pessoas vissem em Gal tudo aquilo que ela representa historicamente. E decidi fazê-lo quando assisti a um show dela em Lisboa. Era um show em que vários sucessos de sua carreira eram revividos, apenas um violonista a acompanhando. O público lisboeta ouvia com tanta atenção e aplaudia com tanta intensidade que eu via toda a grandeza de Gal reafirmada. Falei com ela no camarim. Depois, no Brasil, comecei a escrever as canções para um novo disco dela e a chamei em minha casa para ouvir as primeiras. Ela topou fazer o disco. E eu me dediquei a ele tanto quanto me dedico aos meus. Talvez mais. Gosto imensamente dele e do show que dirigi em seguida, contendo o novo repertório e os novos arranjos. Eu queria fazer algo com a música eletrônica. E a voz de Gal, seu histórico revolucionário, era o timbre central para uma empreitada assim.   

Não recordo que alguma vez Gal tenha cantado algo tão direto quanto ‘Tudo Dói’. Nesta fase de consagração e homenagem, o que significa introduzir considerações sobre a passagem do tempo?
Curiosamente, quando me veio a ideia para ‘Tudo Dói’ não pensei em dores físicas que vêm com a velhice. Pensava na dor do mundo. Na percepção de que tudo, o crescimento da casca do tronco das árvores, a queda da água, a sucessão de imagens na projeção de um filme, tudo parece sofrer da dor da existência. A singularidade dolorosa de cada acontecimento comum. 

[Caetano Veloso toca com a bandaCê dia 28 de abril, em Lisboa, no Coliseu dos Recreios; dias 2 e 3 de junho vai a Ponta Delgada, para duas apresentações no Teatro Micaelense, já esgotadas; por fim, a 5 de junho, integrado no cartaz do festival Primavera Sound, atua no Parque da Cidade, no Porto]

"Tropicália", de Marcelo Machado




Arranca este “Tropicália” e, ao som de “O analfomegabetismo/ Somatopsicopneumático”, versos iniciais de ‘Alfômega’, surgem Caetano Veloso e Gilberto Gil, tímidos e curiosos perante um tribunal de herdeiros de Pêro Vaz de Caminha. Pela plateia, e pela cabeça de Carlos Cruz e Raul Solnado, que flanqueiam os brasileiros mal termina a atuação, parece ecoar nervosamente a conclusão do escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral na sua carta a D. Manuel I: o melhor “será salvar esta gente”. O tom é simultaneamente informal e solene: é agosto de 1969 e Caetano e Gil estão a caminho do exílio após dois meses de cadeia e outros quatro em prisão domiciliária. O seu destino é Londres, mas param em Lisboa e o que sentem nesta passagem pelo “Zip-Zip” é o perfume da Primavera Marcelista, ainda que de política nem um pio e Cruz os aponte como “nomes bastante positivos de uma música moderna de vanguarda no Brasil”. Perguntam-lhes se o que fazem se subordina ao Tropicalismo, e Caetano responde: “O nome de um movimento só existe enquanto o movimento existe. E o Tropicalismo não existe mais.” É deste modo que o documentário mata o seu tema logo quando começa. O gesto é apropriado. Afinal, também o programa “Divino, Maravilhoso”, tropicalista até à medula, o enterrou assim que em outubro de 1968 foi para o ar. Dir-se-ia, por essas e por outras, que, aqui, mais do que descodificar didaticamente esses acontecimentos de 1967, 1968 e 1969, por exemplo, se indicia querer encriptá-los mais. Para tal, recorre-se a um manancial de imagens de arquivo e deglutem-se Glauber Rocha, José Celso ou Hélio Oiticica. Um momento de desatenção, e lá se vão os clipes dos festivais, as passeatas, as torturas, os depoimentos, a mocidade que quanto mais cai mais ama o mergulho no vazio. No fim, novamente Gil e Caetano, quase septuagenários, são os protagonistas e a audiência, olhando-se na tela iluminada pela sua própria juventude, transfigurados pelo passar dos anos e pelo testemunho extemporâneo da sua ação, a História a fazer-se e a desfazer-se. Na trilha sonora: ‘Back in Bahia’.

Estreia em Portugal

Lopes-Graça: Integral da Obra Para Violino e Piano e Violino Solo (Naxos, 2014)



Bruno Monteiro (vl), João Paulo Santos (p)
 

Trata-se muitas vezes Fernando Lopes-Graça (1906-1994) como um agente envolvido em obscuros processos históricos. Mas, simplesmente, como a tantos outros, aconteceu-lhe o Estado Novo, que lhe deu ordem de prisão e arresto, lhe censurou escritos e ditos, criminalizou a profissão, mobilizou o espírito, ilegalizou a vida e, em certa medida, perigou a posteridade. Por isso há quem o veja à luz do maniqueísmo. Bem o sabe Bruno Monteiro, que, em declarações ao Expresso, sintetiza assim a questão: “A dualidade existe, sem dúvida. Mas é o que torna [esta] música tão interessante.Lopes-Graça, com as suas convicções políticas, sociais, musicais, estéticas, é, no fim de tudo, humano. Essa foi a nossa principal preocupação: trazer ao de cima o [seu] lado humano.” Coligindo esta importante integral que perpassa décadas de criação – partindo de um par de expressivas sonatinas, opúsculos 10 e 11, que remontam aos anos trinta, e terminando no algo mórbido “Adágio Doloroso e Fantasia”, Op. 242, de finais de oitenta –, Monteiro e João Paulo Santos compreenderam que o maior dos comprometimentos do compositor logo se escorava na definição de responsabilidade intelectual. Por exemplo, em 1948 (ano da adesão oficial de Lopes-Graça ao PCP), em Portugal, ser comunista seria, decerto, uma oportunidade de partilhar de uma dignidade comum, mas Lopes-Graça jamais ignorou que, na música, a ideologia é como aquelas presenças nas nossas vidas cuja companhia nas doses erradas envenena e nas inversas inebria. Especificamente na sua dimensão camerística, aqui, ainda que se identifique impotência na forma, nunca se vislumbra vulgaridade no conteúdo. Com outra feição – porventura mais vaidosa ou rancorosa ou sublinhando em exagero miasmas e assimetrias – o que está neste CD escorregaria em absoluto para um cárcere do qual poderia não tornar. Diria o violinista que o próprio material proíbe leituras lineares: “Todas as obras são relativamente curtas, mas todas [são] completamente contrastantes. Até dentro de uma mesma peça, todos os andamentos são diferentes entre si. Não há continuidade. Somos obrigados a estar permanentemente a mudar de emoções e a ficar alerta, pois o carácter, a velocidade, a estrutura interior se alteram constantemente.” Depoimento suficiente para se entender que este património não se deixa cativar por qualquer sistema. Aliás, em tempo algum se fixará em definitivo o que pressupõe uma identidade cultural de tal modo volátil, um virtuosismo que não depende só dos caprichos da invenção, sons provocantemente dependurados das esquinas da tonalidade. Monteiro e João Paulo têm noção de que pode seguir-se a democracia à ditadura, a liberdade à repressão, e haver sempre quem julgue que se trocou um inferno por outro. Um disco destes afasta do pensamento tão sombria ideia.

A entrevista completa:


Muitas das obras incluídas neste vosso CD sofreram correções desde a data de composição. Tocaram sempre as versões revistas?
Sim. De facto, ao que sabemos, quatro das obras incluídas no CD sofreram revisões. Três delas pelo próprio Lopes-Graça e uma pelo João Paulo Santos. As revistas pelo compositor foram as duas sonatinas e “Prelúdio, Capricho e Galope”. Claro está que tocamos a versão revista. O caso mais curioso foi o de “Trois Pièces”: depois do Museu da Música Portuguesa me enviar tudo o que havia para esta formação e também para violino solo, reparei que estavam incompletas (tanto a parte de violino como a parte de piano). Por um mero acaso, o João Paulo conseguiu a parte de violino completa que, se não me falha a memória, estava na posse da Lídia de Carvalho (nem o MMP a tinha) e, por aí, digamos que ‘completou’ o resto, fazendo uma revisão aprofundada. Tocámos no início de abril toda a integral em Cascais e o Museu pediu ao João que lhe enviasse esta obra, exatamente como a tocámos, para ser incluída no espólio.

Noto que a edição inclui as “Quatro Miniaturas”, op. 218, na lista de estreias mundiais, mas dou com o mesmíssimo opúsculo num CD editado em 2010 pela Numérica (“Violino em Portugal”, de Luís Pacheco Cunha).
Sim, houve um lapso! O Luís gravou as “Quatro Miniaturas” há uns tempos. No entanto, não sei se a mesma versão.

Já que falo noutras gravações: revisito a dos irmãos Vasco e Grazi Barbosa (num LP da Guilda da Música, de 1972, subsequentemente reeditado em CD pela Strauss e pela CNM, que inclui as Sonatinas, o “Pequeno Tríptico” e “Prelúdio, Capricho e Galope”), e, na realidade, a pergunta que se impõe é: para vocês, foi ou não importante obterem referências interpretativas quando se decidiram por abordar este repertório?
O João Paulo nunca ouviu essa gravação, penso eu. Eu, por outro lado, cresci com ela. Aliás, até a nossa surgir, que inclui as mesmas obras e outras que não foram, então, gravadas, a do Vasco era a única que existia. Gosto muito dela. Por acaso, nos encontros que tive com o Sr. Barbosa falámos sobre muitas coisas, mas não acerca das suas gravações. Deram-me uma ideia da escrita para violino de Lopes-Graça, [que] achei muito difícil, virtuosa. Mas quando as comecei a trabalhar, não ouvi o CD propositadamente. Quis conceber a minha própria visão das obras. E quando eu e o João começámos a ensaiar, passámos muito tempo a tentar encontrar o balanço certo entre a estrutura e a emoção de cada peça, o enfâse do ritmo (que é um dos pilares fundamentais na música de Lopes-Graça) e a mensagem musical que pensámos que ele gostaria que fosse transmitida. Claro que tentámos também pôr algo de nós na interpretação.

O que, dada a questão das estreias, e se é que se pode colocar as coisas nestes termos, levanta a dúvida: na sua opinião, o que se perde e o que se ganha sempre que não se possuem essas referências?
O trabalho é muito maior. É preciso começar do nada. Por exemplo, já tocámos muitas vezes a “Tzigane”, de Ravel, em público. É uma obra muito difícil em termos de leitura da partitura. Mas como há tantas gravações dela, o ouvido já está influenciado. [Perante a ausência de referências] podemos moldar a obra à nossa maneira sem estarmos preocupados com comparações. É por isso que, para mim, uma das grandes razões para os intérpretes do passado soarem tão diferentes uns dos outros, ao contrário de hoje, é por não existirem na altura tantas gravações. Ou seja, todos eles se baseavam apenas e só na partitura e criavam a sua interpretação com base nesta e no seu porte artístico. E todos eles estavam corretos. O público não ia ouvir o “Concerto para Violino” de Beethoven; ia ouvir a interpretação do Beethoven pelo Heifetz, Stern, Milstein, Kreisler, etc. Hoje em dia parece-me que nem é uma coisa nem outra.

Por outro lado (visto serem tão escassos os materiais de consulta), imagino que tiveram de esquadrinhar o espólio de Lopes-Graça de forma a obter o maior número possível de informações sobre cada peça, além de poderem aferir, naturalmente, da viabilidade de gravar uma integral tendo a certeza que não ficou nada perdido no fundo de uma gaveta, não?
Felizmente não ficou nada perdido. A Teresa Cascudo, que é uma das musicólogas que mais se tem dedicado à obra de Lopes-Graça mantém um catálogo onde estão exaustivamente expostas todas as obras do compositor. Por isso foi fácil. O Museu da Música Portuguesa tinha tudo.

Esta vossa gravação trouxe-me muitas surpresas. Curiosamente, uma delas foi tomar consciência do quão irredutivelmente modernas e perfeitamente acabadas, são, de facto, aquelas duas charmosas sonatinas, que já conhecia. E, além do pavor à vulgaridade, o que se sente é um irreprimível desejo em Lopes-Graça de produzir algo original à escala europeia! Como foi projetar esse idealismo praticamente juvenil na vossa interpretação?
Concordo plenamente! O que eu acho é que Lopes-Graça, mesmo nas suas obras de juventude, tem já uma linguagem musical muito própria e definida. Não soa a algo de que dizemos: ‘pois, faz-me lembrar este ou aquele compositor’. Há sem dúvida, uma diferença bem marcada entre a 1ª e a 2ª sonatinas. A 2ª é muito mais rebuscada em termos harmónicos e na estrutura da própria obra. Abre com um andamento inteiramente para violino solo e o último é devastador em termos técnicos. O que tentámos fazer foi, muito simplesmente, quase ignorar o facto de serem obras de juventude e interpretá-las com a mesma profundidade que, por  exemplo, o “Adágio Doloroso e Fantasia”, que foi a sua última obra para violino e piano.

Como é interpretar obras de períodos históricos tão distintos no âmbito de um só CD?
Como dizia na resposta anterior, não olhámos a diferentes períodos, mas sim ao todo da integral e à linguagem de Lopes-Graça. Embora de diferentes épocas, todas elas têm certas características em comum. Em algumas delas, ainda que não completamente óbvias, já com um prenúncio anunciado.

Por outro lado, outras destas peças – penso em “Trois Pièces” ou em “Quatro Miniaturas” – reforçam uma ideia que costumo associar a Lopes-Graça: a de que se estava sempre a tentar provar. E normalmente quem age assim corre o risco de não ser inteiramente convincente. Como é que vocês lidam com a responsabilidade de apresentar uma integral (e logo de modo tão panorâmico, dos anos 30 aos 80) em que, é certo e sabido, há a hipótese de vir ao de cima tudo o que de melhor e menos bom houve na expressão artística de um compositor?
O mais importante para nós, independentemente de obras que possam ser vistas como menos conseguidas, foi extrair o máximo de ‘sumo’ de cada uma. Mesmo numa obra como “Quatro Miniaturas”, que é muita curta e óbvia, foi tentar fazer cada peça com o carácter certo, as articulações, os exageros de dinâmicas. Aliás, penso que, por vezes, é mais difícil tocar uma obra curta do que uma obra grande: quando tocamos, por exemplo, a “Sonata para Violino e Piano” de César Franck (que demora 30 minutos), como é uma obra cíclica, a pessoa começa e vai embalada, pois tudo gira à volta do mesmo. Para mim, o que foi desafiante neste projeto é que todas as obras são relativamente curtas, mas todas elas completamente contrastantes. Mesmo até dentro de uma só peça, todos os andamentos são diferentes entre si. Ou seja, não há continuidade. Somos obrigados a estar sempre a mudar de emoções e também sempre alerta, pois o carácter, a velocidade, a estrutura interior muda constantemente.

Já agora, qual a importância de fazer a integral?
Para mim foi um desafio pessoal, artístico e também cultural. Pessoal, pois nunca tinha tocado Lopes-Graça. Conhecia algumas das obras para violino, obras para canto e piano e o “Quarteto de Arcos nº2” e o “Canto de Amor e de Morte” que foram gravados pelo Quarteto de Cordas do Porto, do qual o primeiro violino (Carlos Fontes) foi meu professor em Portugal. Artística, pois há intérpretes que tocam sempre o mesmo tipo de música: ou são ‘especializados’ em Mozart ou em música contemporânea ou só tocam românticos, etc. O meu repertório é muito vasto e tento variar o mais possível. Tanto toco Bach, como Szymanowski, como Beethoven ou Lopes-Graça. Claro que há ‘máscaras’ que nos assentam melhor de que outras. Por fim, cultural, pois havia uma falha de não haver a gravação integral da sua obra para esta formação. Felizmente a Naxos deu-me carta-branca para o fazer.

O que lhe parece que aprenderam sobre Lopes-Graça neste projeto a que se propuseram? E além das obras propriamente ditas, é importante estudar o contexto em que elas surgiram?
Penso que Lopes-Graça foi um homem do seu tempo, que viveu intensamente as suas convicções e que teve momentos de alegria e tristeza. Sinto isso em toda a sua obra. Se ouvirmos, por exemplo, os andamentos lentos, a sensação que me dá é a de que era um homem com muita emoção interior, com calor humano. Já no “Galope” vemos um homem eufórico, vibrante.

O que também se vai notando ao longo do CD é aquilo que sempre me pareceu uma certa deriva... Alguma incapacidade de Lopes-Graça em ultrapassar a encruzilhada de ideologias com que se deparava, ainda que esta música nunca seja resignada a essa condição, por mais que reflita uma consciência em crise (aqui, penso mais na “Fuga” para violino solo e nos “Esponsais”, talvez). E isto faz-me pensar na questão da repressão (política, social, sexual). Foi uma tensão que veio a lume na vossa análise destas obras?
Creio, na minha maneira de ver e sentir, que há aqui momentos de revolta interior. Talvez... De agonia. Nota-se por vezes uma mensagem de revolta. Aliás, a sua música é um misto de emoções fortes. Há muitos ambientes e cores. Por exemplo, nos “Esponsais”, mais do que na “Fuga”, os estados de espírito de Lopes-Graça estão bem aparentes. É curioso: há momentos nesta obra de pura paz interior, uma paz quase religiosa; mas ao mesmo tempo há momentos de rudez e ansiedade.

É possível tocar Lopes-Graça sem forçar uma leitura maniqueísta?
A dualidade existe, sem dúvida. Mas é isso que torna a sua música tão interessante. Lopes-Graça, com as suas convicções políticas, sociais, musicais, estéticas, é, no fim de tudo, humano, com tudo que isso acarreta de bom e de menos bom. E essa foi a nossa maior preocupação: trazer ao de cima o seu lado humano.