27 de fevereiro de 2010

Otto “Certa Manhã Acordei De Sonhos Intranquilos”

Se, em involuntário diálogo inter-geracional, o que Caetano Veloso ensaiou no retesado “Cê” foi superado pelo “Sou” de Marcelo Camelo, vê-se agora fortificado o mais exangue “Zii e Zie”. Isto é, o regresso do baiano ao rock coincidiu com o momento em que o modelo brasileiro do género absorveu características eminentemente velosianas: abertura ao mundo, vulnerabilidade sensual, êxtase confessional. “Certa Manhã…” soma uma página ao tomo dos ‘break-up albums’ (Otto separou-se da actriz Alessandra Negrini em 2008) sem por um instante vacilar em suicidária auto-comiseração ou encharcar em nostalgia o sudário. Se o seu título parafraseia o início de “A Metamorfose”, de Kafka, compreendê-lo-á melhor quem o julgue pelas primeiras palavras que nele se ouvem: “Há sempre um lado que pesa e outro lado que flutua”. A comandar a ascensão estão Fernando Catatau (Cidadão Instigado) e Pupillo (Nação Zumbi), na figura do anjo surgem Julieta Venegas e Céu, mas é na terra que o antigo activista do mangue beat procura a redenção – e nos momentos em que cruza jovem guarda, afrobeat e samba, prova que, com o seu melhor álbum, a encontrou.

20 de fevereiro de 2010

“Back to Peru vol. II (1964-1974)”

No que à música peruana diz respeito, o primeiro volume de “Back to Peru” – a par de “Roots of Chicha: Psychedelic Cumbias from Peru”, lançado pela Barbès – inverteu as bolorentas regras de reedições assentes no paradigma ‘etno’ e derivados e veio lembrar ao mundo que a costa do Pacífico da América do Sul não foi imune às vagas da ‘british invasion’. Por isso – generalizadamente evitando repetições – nestes 34 temas de rigorosa extracção neo-rock’n’roll não surge uma única flauta de pã e sublimam-se Kinks, Rolling Stones, Beatles ou Animals ao mesmo tempo que, num misto de coragem e elementar falta de prudência, se opera no coração de indomáveis bestas norte-americanas como as surf music, garage ou psychedelia. Mas para lá de chupar até ao tutano Sandals, Mitch Ryder ou Jimi Hendrix (representados em versões mais ou menos declaradas), bandas como York’s, Drag’s, Holy’s ou Shain’s – a que não se perdoava a fraqueza de espírito face ao doce néctar espremido ao capitalismo – espelhavam uma subterrânea corrente perseguida pelo regime de Juan Velasco Alvarado. Tal, devidamente condicionado por uma obsessão nacional com OVNI e temperado pela mais heterodoxa sexualidade, justificará este ‘vale tudo’ contra-cultural de go-go lisérgico, ié-ié solto em selvas de cogumelos, blues andino-alienígena e folclore psicotrópico.

“Ouled Bambara – Portraits Of Gnawa”

Na sua insuperável busca por êxtase e redenção, um mundo da música desiludido com os seus mitos e ritos ruma ciclicamente a moradas do ‘exótico’, como Marrocos. E, salvo raríssimas excepções, de lá regressa com bateria cósmica recarregada e biografia insuflada pelo mais zelote moralismo colonial. Muitos, desde que há 50 anos Brion Gysin transformou os Master Musicians of Joujouka numa banda de restaurante e que, há 40, Brian Jones com eles ressacou pelo Atlas – seguindo ainda os exemplos de Ornette Coleman, Rolling Stones, Pharoah Sanders, Robert Plant ou Randy Weston –, aí renovaram energias criativas e missionários impulsos resgatando ao anonimato futuras etnias para auditórios europeus. Mas, ocasionalmente, como fizeram Paul Bowles, Bill Laswell ou a editora Al Sur (na série “Les Maîtres du Guembri”), produzem-se também gravações que revelam uma cultura local indiferente a estímulos exteriores, imune a mistificações espiritualistas em segunda-mão e impermeável aos vícios comportamentais de arquivistas. “Ouled Bambara” é dessa estirpe e, pela mão experiente de Maâlem Brahim Belkani, Hassan Zougari ou Abdelkbir Marchane, alimenta-se de uma identidade eternamente em crise, profundamente esotérica e invariavelmente impenetrável. Não fica muito mais ‘real’ do que isto.

13 de fevereiro de 2010

Egberto Gismonti “Saudações”

Gismonti não é dado a efemérides, mas em 2009 cumpriram-se 40 anos desde que se estreou em disco. Tratou-se, então, de um incaracterístico álbum para a Elenco, na órbita de Baden Powell, com tímida dependência rítmica da bossa jazz e temas em evaporação instantânea para a nebulosa partilhada por Carlos Lyra, Roberto Menescal ou Marcos Valle. Um ano mais tarde, o túrgido “Sonho 70” ombreou com Taiguara ou Edu Lobo e revelou amplo cunho autoral. “Água e Vinho” e novo registo homónimo, em 1973, concentraram as suas mais belas canções e só pecaram ao cobiçar os vizinhos Milton Nascimento e Ivan Lins. À distância percebe-se que serviram também para o definitivo acordar da besta, com “Academia de Danças” e “Corações Futuristas”, a obra-prima de 1976, a sintetizar e jubilar a vanguarda brasileira.

Talvez por tudo isto se tenha atravessado no seu caminho a ECM. Infelizmente, se ganhou uma carreira deixou de ser celebrado pelo que de melhor havia feito: para a posteridade, 1977 não foi já o ano do vibrante e contraditório “Carmo” e sim o do primitivo-laboratorial e antropológico-pastoso “Sol do Meio-Dia”. E assim sucessivamente até tudo se diluir numa produção progressivamente sumida, insular e revisionista.

“Saudações” não corrige o rumo a uma discografia que desde 1981 perdeu o Norte, mas pelo menos remete para o mais longínquo do seu passado. “Sertões Veredas”, a suite para cordas no CD1, recupera o melancólico motivo que em 1979 compôs para “Saudades”, de Naná Vasconcelos, relembra ‘Sertão Brasileiro’, uma das peças de “Nó Caipira”, de 1978, e sugere um Aaron Copland a correr pelo Nordeste ou um Steve Reich a meditar pelo Sertão antes de decalcar Bach, Mozart e Villa-Lobos. O CD2, com o seu filho Alexandre, traz dez “Duetos de Violões” em regime de sarau familiar e vira páginas ilustres do songbook caseiro como ‘Lundú’, ‘Palhaço’ ou ‘Dança dos Escravos’. Mas não chega para acordar um continente adormecido.

6 de fevereiro de 2010

Maria Bethânia "Tua" & "Encanteria"

Bethânia continua bela como uma árvore feia, com o cabelo cada vez mais feito só de raízes e galhos – pêlo de prata sobre olhos prazenteiros – e uma tez ora esculpida a cera ora desenhada a carvão. Tudo numa máscara de luz e sombra, concentrando a memória da terra e do mar. Ela, que se fez em palco, a quem chamaram Rainha, outrora vestida de dourados e tingida de vermelhos, vai agora em disco despontando inevitável mas imperturbavelmente grave e branda, como um lento astro atrás de marés. De forma paradoxal, parece-se também cada vez mais com o Brasil: quanto mais por si o tempo passa mais preparada está para começar de novo.

Não que pela edição simultânea de dois álbuns opere algum tipo de corte no seu passado recente. Muito menos, soçobrando com o peso de mais uma efeméride, se esgota numa meditação sobre a memória. Adivinha-se antes aqui uma lógica convergente que, por acumulação, permite compreender os seus interesses e motivações ao longo da última década (desde “A Força Que Nunca Seca”, de 1999), na qual, no entanto, não inscreve a nostalgia de forma literal: isto, porque traz maioritariamente canções inéditas que falam tanto de si quanto da ideia que de si têm os seus autores. E, como em “Brasileirinho” (2003), “Pirata” (2006) ou “Mar de Sophia” (2006), reitera o fascínio por um mundo rural imerso em símbolos, mitos e fantasia, a devoção aos Orixás e ao Candomblé de Caboclo, a capacidade de apurar impulsos conceptuais de fundação poética, a progressiva atenção aos arranjos de Jaime Além (destilando boleros de ‘piano bar’, dedilhando impressionistas baiões, dissolvendo solenidade de câmara em atmosfera caipira) ou a metáfora que faz do mar e rios afluentes da paixão.
“Tua”, com inspirados originais de Dory Caymmi/Paulo César Pinheiro, César Mendes/Arnaldo Antunes ou Chico César/Paulinho Moska (este, um dueto com Lenine), vem dedicado ao amor e à saudade e, no seu melhor, é um sucedâneo de “Âmbar” (1996) com menos pérolas no colar. “Encanteria” consagra-se à fé e ao sincretismo baiano, tem uma ‘Saudade Dela’ (com Caetano e Gil) capaz de lembrar ‘Alguém Me Avisou’ (que os três cantaram em “Talismã”, de 1980) e revela-se indispensável nos sambas de Roque Ferreira e nos temas com a Orquestra Portátil de Música, de Maurício Carrilho e Luciana Rabello. Não marcam, nem poderiam, este tempo como há muito fizeram “Drama” (1972), “Álibi” (1978) ou “Alteza” (1981), mas chegam para provar que Bethânia continua mais bela e importante que os seus discos.