28 de setembro de 2013

Nate Wooley Sextet “(Sit In) The Throne of Friendship” (Clean Feed, 2013)



Zeloso curador na eminente “Databaseof Recorded American Music” e inspirado editor e redator na trimestral “SoundAmerican”, Nate Wooley vasculha habilmente nesse espaço em que se arquivam as vanguardas norte-americanas. Quer isto dizer que, contrariamente à opinião comum, que deprecia aspetos hereditários em manifestações artísticas de singular configuração – e, durante anos, Wooley foi tido como um xamane do insólito –, o trompetista cumpre os requisitos para que se entenda a sua ação à luz de um, quiçá subterrâneo, contínuo cultural, no qual, por entre um número excecional de forças expressivas, cabe, naturalmente, essa que se pratica numa jurisdição invulgarmente atenta aos direitos de sucessão e se apelida de jazz. Seria, aliás, presunçoso e injusto considerar que a sua produção – ao lado da de análogos instrumentistas como Peter Evans, Greg Kelley, Franz Hautzinger ou Axel Dörner, invariavelmente coadunados na estirpe de Bill Dixon – se gerava, qual erva-daninha, espontânea e invasoramente. Dir-se-á que o quinteto – agora, com o ingresso do tubista Dan Peck, expandido para sexteto – há dois anos responsável por “(Put Your) Hands Together” se formou para dar resposta a esta questão, ainda que salvaguardando uma premissa essencial: afiançar que cada um dos seus agentes não se aliena no conjunto de vínculos históricos que possa reivindicar. Ou seja, Wooley, Peck, Josh Sinton (saxofone barítono e clarinete baixo), Matt Moran (vibrafone), Eivind Opsvik (contrabaixo) e Harris Eisenstadt (bateria) promovem aqui – numa sessão que tem como único senão uma escrita nem sempre à altura dos acontecimentos – uma genial abstração do pendor relacional no jazz contemporâneo, evocando simultaneamente as mais extáticas e elegantes características que procedem da sua fundação enquanto linguagem. Um caso sério.

Bach: Six Sonatas for Violin and Piano (ECM, 2013)



                                                                  Michelle Makarski (vln), Keith Jarrett (p)

Ainda que reduzidas ao essencial, estas sonatas para violino e piano – originalmente, seis sonatas para cravo obbligato e violino, BWV 1014-1019 – beneficiam da fraseologia taumatúrgica de Jarrett. No entanto, quem venha a ler a entrevista do pianista a Ethan Iverson, na DownBeat deste mês, poderá estranhar um discurso acometido por tantos escrúpulos. À inevitável questão, “É o seu Bach – tão puro e rítmico – influenciado pelo facto de ser músico de jazz?”, responde: “Não sei. Mas gosto do que ele disse acerca de se tocar lindamente: ‘toca a nota certa no momento exato!’”. Eis o busílis. E, neste conjunto de peças de J.S. Bach (1685-1750) – compostas no principado de Anhalt-Köthen e afins às suítes para violoncelo, às sonatas para viola da gamba ou ao primeiro tomo de “O Cravo Bem Temperado” – dir-se-á que, ao contrário do que foi historicamente patenteado por notáveis incendiários como Grumiaux, Menuhin ou Busch, a forma de ultrapassar eventuais dificuldades residirá em executá-las de maneira a conservar-lhes o mistério, não a revelá-lo. Paradoxo compreendido por João César Monteiro, que, em “À Flor do Mar”, através dos espontaneamente sutis Sigiswald Kuijken e Gustav Leonhardt, utilizou o adagio ma non tanto da “Sonata em Mi Maior” para que daquela casa debruçada sobre a Ria Formosa não se elidisse o segredo. Foi uma tendência sublinhada por Monica Huggett e Ton Koopman e, dispensando já instrumentos de época, mais recentemente ensaiada por Frank Peter Zimmerman e Enrico Pace. Mas em nenhuma dessas ocasiões se prescindia por completo de um anacrónico dramatismo – uma pista para o identificar seria acompanhar o vibrato nos violinistas – que Makarski e Jarrett denunciam agora como redundante. Quer isso dizer que se procurou aqui fazer algo de instintivamente certo, embora raro: entender o homem mais do que o seu mito.

21 de setembro de 2013

Cannonball Adderley with Milt Jackson “Things Are Getting Better”; Chet Baker “Plays the Best of Lerner & Loewe”; Bill Evans Trio “How My Heart Sings!”; Wes Montgomery “So Much Guitar!” (Riverside, 2013)



 
 
 

Quando criada, em 1953, a Riverside era como um areal ancinhado por Bill Grauer e Orrin Keepnews, zelosos respigadores em busca de detritos deixados nas enxurradas do ragtime, boogie-woogie e swing – atestam-no as primeiras referências na etiqueta, dedicadas a Jelly Roll Morton, Albert Ammons ou Duke Ellington. Só que esses apóstolos de uma religião cedo se converteram em neófitos noutra. Assinando Thelonious Monk, Randy Weston, Sonny Rollins, Johnny Griffin ou Abbey Lincoln, e na senda das concorrentes Prestige, Contemporary ou Blue Note, a editora, em nome próprio e através da subsidiária Jazzland, e conquanto não fosse essa a disposição inicial dos seus fundadores, veio a revelar-se uma diligente prospetora de jazz moderno. Sessenta anos depois, a partir de jurisdições menos restritivas em termos patrimoniais, é óbvio que estas gravações – por negligência do proprietariado e por, em suficientes países, terem entrado em domínio público – passaram já pelas mais variadas mãos. Nesse âmbito, tem-se hoje como certo o que anteriormente se subestimava: que nenhuma tiragem dura para sempre; que colecionadores no mundo inteiro, ainda que integral ou avulsamente as possuindo, favorecem a excelência técnica e a inserção de inéditos nas suas reposições; e que apenas a sua manutenção em catálogo pelos detentores das matrizes tem um efeito regulador nos mercados. Bem o sabe a Concord, atual publicadora da Riverside, que relança estes discos com remasterizações, novos textos nos livretos e estreias resgatadas às bobines – de modo perverso, num ano de simbólico aniversário, e com um punhado de títulos de batismo tão otimista, lembra sessões organizadas em torno de líderes que nem em França teriam atingido a idade mínima da reforma.

“Things Are Getting Better”, de 1958, junta Adderley ao vibrafonista do Modern Jazz Quartet e, sem desprimor para Billy Mitchell, confirma a falta que o saxofonista fez no encontro entre Jackson e Ray Charles, nesse ano dado à estampa. A reunião foi estelar mas desafetada, colorida por Art Blakey, Percy Heath e Wynton Kelly. Mais tensa, a adesão de Chet Baker ao repertório do libretista Alan Jay Lerner e do compositor Frederick Loewe, de 1959, não foi por isso menos evasiva: aliás, talvez as evocações das Terras Altas de “Brigadoon”, da Paris de “Gigi” ou da Londres de “My Fair Lady” tenham estado na origem do exílio europeu do trompetista, acabado de sair da prisão de Rikers. Mas tal como em “Chet”, com o essencial do grupo que aqui o acompanhava (Bill Evans, Herbie Mann, Pepper Adams), só fazia ouvir o seu espectro. Outra coisa não assombrava o autor de “How My Heart Sings!”. Proveniente das mesmas visitas a estúdio – de 1962 – que resultaram em “Moonbeams”, o LP é tido como uma esconjuração de Scott LaFaro, cujo óbito, meses antes, havia devastado Evans. Não obstante a cordata presença de Chuck Israels, é Paul Motian que carrega às costas o pianista, entregue a sombrias harmonizações e improvisações de tão fascinante quão incaracterística frialdade (versões até agora ignoradas de ‘34 Skidoo’ e ‘Everything I Love’ são esclarecedoras). Por fim, “So Much Guitar!”, de 1961, aumentado pelo LP “The Montgomery Brothers in Canada”, e impecavelmente sustentado por Hank Jones e excentricamente comentado por Ray Barretto, é de um genuíno conforto caseiro, com Montgomery, jamais recalcitrante, a patentear um idioma de lacónica adulação, que lhe sobreviveria.

Ebo Taylor & Uhuru Yenzu “Conflict” (Mr. Bongo, 2013) & Gyedu-Blay Ambolley “Simigwa” (Academy Lps, 2012)




 
Decorrida uma década desde “GhanaSoundz”, articulam-se agora os elementos díspares nessa pioneira assemblagem. E Marijata, Sweet Talks, K. Frimpong, Ebo Taylor ou Gyedu-Blay Ambolley não são mais meros representantes no eBay de um país de horizontes esquadrinhados por aventureiros em busca de obscuro vinil. Mas um tempo houve em que aparentaram ser pouco mais do que isso – um quase nada que ganhava gratífica expressão na casa das centenas de euros, inspirando ressentimento face a esses viajantes que raramente se explicavam e que, quando o faziam, faziam-no mal. O colecionismo era sinónimo de opressão e DJ voltavam do Gana como conspiradores a regressar de ferinos conciliábulos – seguindo a sua atividade de perto, no entanto, dir-se-ia que o maior dos seus pecados, tal o rombo no orçamento familiar, seria não fazerem as respetivas mulheres partícipes das suas ações. Afirmar-se-ia depois que a restauração de carreiras se dava por pressão do mercado, não pela fantasia. Taylor e Ambolley, cúmplices nos Uhuru Dance Band ou Apagya Show Band, com discos novos no ano passado, teriam algo a dizer a quem umas vezes utiliza a lógica e outras a demagogia. E quando se disponibilizam as suas obras-primas – “Conflict”, de 1980, e “Simigwa”, de 1975, excêntricas bissetrizes no afrobeat e highlife – prova-se que, quanto muito, foram culpados do que ninguém poderá levar a mal: acreditar que uma só vez se produziria a exploração do homem pelo homem.