Por ter planeado de antemão esta
coletânea consagrada ao paradigmático par de álbuns que o saxofonista Pedro
Iturralde gravou entre 1967 e 1968, Javi Bayo dispensou qualquer um dos seus temas
de “Fetén: Rare Jazz Recordings from Spain, 1961-1974”, a crucial antologia que
organizou para a Vampisoul. Já a britânica Jazzman, porventura mais interessada
em representar uma insubordinação a nível global, não se coibiu de inserir ‘Las
Morillas de Jaén’ em “Spiritual Jazz Volume II – Esoteric, Modal and DeepEuropean Jazz, 1960-78”. E o que em ambos os casos se comprova é que também a
hibridização do flamenco resultou de uma alteração de valores à escala
planetária. Um tempo de mudança que testemunhou a gradual imposição dos
princípios do pós-modernismo nas sociedades ocidentais. Basta ouvir com atenção
Iturralde para se pressentir uma radical redefinição na atitude de um músico
face àquilo que na altura se promulgava como um ‘discurso de autenticidade’. Ou
seja, mais do que revalidar um processo fiel às leis da herança, o flamenco
despontava agora seguindo impulsos transculturais.
Sabemos hoje que esta desnacionalização
de um dos símbolos da identidade espanhola se singularizou de modo exógeno – ao
invés da copla ou da rumba catalã. Aliás,
pouco ficou dessoutra violenta torção à mesma estirpe que, quiçá inspirada pela
insólita reunião de Sabicas e Joe Beck em “Rock Encounter” (1966), esteve na
base do chamado ‘rock andaluz’. O próprio Bayo, no texto em que apresenta a
edição, insinua que apenas atendendo a um conjunto muito específico de
circunstâncias conduz a pulsão fusionista à conceção de um híbrido; isto é, ao
momento em que, no que diz respeito a aspetos formais, semânticos ou
socioculturais, a combinação de dois espécimenes musicais distintos dá, como
aqui, efetivamente origem a um novo estilo. E cita, como exemplos menores neste
domínio, os ensaios de Miles Davis com “Sketches of Spain” (1960) ou de John
Coltrane com “Olé” (1962). Mas podia ter recuado até 1957, quando Miles gravou
‘Blues for Pablo’ em “Miles Ahead”, Charles Mingus incluiu ‘Ysabel’s Table
Dance’ em “Tijuana Moods” – numa tendência que culminaria nos mais viscerais e
manifestamente incongruentes instantes dessa obra-prima que foi “The Black
Saint and The Sinner Lady” – e, em “West Side Story”, Leonard Bernstein encaixou
‘America’ no compasso da bulería.
Seja como for, talvez por se
compreender que as peculiaridades do flamenco serviam uma retórica internacional
que contrariava as mais hegemónicas inclinações da cultura anglo-saxónica, era
chegada a hora de renovar o seu transgressor estatuto num contexto local.
Iturralde, com o expatriado pianista germânico Paul Grassl, o contrabaixista
suíço Eric Peter e o baterista alemão Peer Wyboris – os dois últimos, veteranos
de inúmeros registos com Tete Montoliu – entendeu que, para tal, seria urgente aproximar
duas forças, tão basilares quão contrárias no flamenco: o nostálgico
sentimentalismo que mascara uma aspiração à pureza, por um lado, e, por outro,
o irreprimível desejo de produzir algo original contaminando toda a expressão criativa.
Seguiu o conselho de Joachim-Ernst Berendt – que, nesses termos, e após
descoberta de um esboço seu em quarteto, numa transmissão radiofónica ao abrigo
da União Europeia de Radiodifusão, o convidaria para o Festival de Jazz de
Berlim de 1967 – e fez audições a guitarristas antes de entrar em estúdio. Nem
com 20 anos feitos, apareceu-lhe Paco de Lucía. E com estes dois volumes de
“Jazz Flamenco” se fez história.
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