25 de abril de 2020

Agenda virtual


Porventura atento às conferências de imprensa diárias de Trump, o Met emitiu há coisa de uma semana o “Boris Godunov”, de Mussorgsky – de facto, há mesmo alturas na vida em que o nosso destino é sofrer às mãos de tiranos. Seja como for, teria sido mais apropriado lembrar a canção em que o compositor russo antecipou o live streaming: “Cada momento como um relâmpago passa apressadamente/ Fixando-se ansiosamente numa felicidade tão distante/ Duvidando sempre, sofrendo sempre/ Assim passa a noite, tão solitariamente”, ouvia-se, em “Entre Quatro Paredes”. De facto, imagina-se a nota de rodapé que Hannah Arendt teria de acrescentar a uma edição revista de “A Condição Humana”, quando, aí, refere que só entre quatro paredes encontramos refúgio ante o mundo público comum – “não só contra tudo o que nele ocorre mas também contra a sua própria publicidade, contra o facto de ser visto e ouvido.” Nada mais equívoco, numa quarentena que rejeita que o conceito de privado possa ter como base a ideia de privação. Será algo a ter em mente, amanhã, às sete da tarde, quando Barbara Hannigan surgir como dominatrix do apocalipse, em “Mistérios do Macabro”, de Ligeti, ponto alto num programa dirigido por Simon Rattle que inclui obras de Berg, Stravinsky e Webern, a exibir no canal de YouTube da London Symphony Orchestra (o registo é de janeiro de 2015). Também de mistérios virá falar o pianista Jeremy Denk: segunda-feira, à meia-noite, em direto de Nova Iorque, e a partir do site e das páginas de YouTube e Facebook do Green Space, apresenta “The Mysterious Life of J.S. Bach”. Por sinal, no âmbito do ciclo “Live with Carnegie Hall”, o destaque da semana passa precisamente pela reunião de Denk com Joshua Bell e Steven Isserlis (na foto), quinta-feira, às 19h, quiçá para tocarem trios de Mendelssohn, Shostakovich ou Rachmaninoff, como na sua última digressão conjunta, para que, aqui, no inferno de Sartre, nada nos falte.

Kaja Draksler Octet “Out for Stars” (Clean Feed, 2020)

Em notas de apresentação, Draklser evoca a Eslovénia rural da sua infância, um espaço em que tudo acontecia tão lentamente, presume-se, que cada um dos seus elementos constituintes parecia estar a posar para um retrato a óleo: “Bosques, colinas, água corrente, lavradores a amanhar a terra, sinos a tocar, cães a ladrar, deambulações noturnas pela vila”, cores primárias na composição de um cenário profundamente arquetípico que, mais que a essência de um lugar, se diria representar um estado de espírito – o de quem equipara o campo a uma espécie de paraíso perdido. Terá sido o que inicialmente a atraiu na poesia de Robert Frost (1874-1963) – outro, como Kaja, que bem soube o que era (sobre)viver numa zona “de baixa densidade populacional, não excessivamente cultivada, nem inteiramente selvagem”, a fim de explicar a “complexidade da condição humana” em versos de “intrínseca musicalidade”, diz ela. Escuta-se ‘Never Again Would Bird’s Song Be The Same’, de facto, e lá somos transportados para aquele primevo palco em que Deus colocou Adão e Eva, com Draksler (em idiofone dedilhado e piano), Laura Polence (voz), Björk Níelsdóttir (voz), Ada Rave (sopros), Ab Baars (sopros), George Dumitriu (cordas), Lennart Heyndels (contrabaixo) e Onno Govaert (percussão) a organizar a mais teatral reprodução de zumbidos e zunidos, gritos e grunhidos, roncos e rugidos, berros e balidos num disco de jazz desde que François Tusques gravou “Le jardin des délices” (1992). Noutro contexto, pelo óbvio mecanismo de repressão que lhe está subjacente, tamanho condicionante corromperia a ação de qualquer um, mas esta música é tão livre e solta que se traduz, antes, por um desinibido ato de provocação – com as suas canções de câmara, cabaré ou campesinato, chamem-lhe o que quiserem, até quem se pusesse a narrar a ascensão e queda do octeto, concentrando-se nas duas décadas que medeiam ‘Schizophrenic Scherzo’, do Dave Brubeck Octet, e “Machine Gun”, do Peter Brötzmann Octet, teria dificuldade em prender esta formação ao chão. Talvez por isso tenha ido Kaja ter ao autor de “O Caminho Não Percorrido”.

18 de abril de 2020

Agenda virtual


Porque já se deita pelos olhos (quer dizer, entra) esta coisa das enfermidades infecciosas e contagiosas, presume-se, eis que a Semperoper de Dresden disponibiliza no seu site (até às dez da noite de amanhã) “Cavalleria rusticana” e “Pagliacci”, óperas em que o homem morre às mãos do homem, em vez de se sujeitar à ação de bacilos, como em “La traviata” ou “La bohème” – Philipp Stölzl encena, Christian Thielemann dirige e Jonas Kaufmann é Turiddu e Canio. Aí, era o verismo; no século XX, o vernáculo: segunda-feira, às sete da tarde, no canal de YouTube da London Symphony Orchestra, numa gravação de 2018, Simon Rattle apresenta um programa fascinado pela transposição de viroses idiomáticas, que inclui “Prelude, Fugue and Riffs”, de Bernstein, “Quinze Canções Populares Húngaras”, de Bartók, “Harnasie”, de Szymanowski, ou “Nazareno”, de Osvaldo Golijov (com as irmãs Labèque como solistas). Agora, mais ainda do que na língua, quem procurou contrariar tudo aquilo que se cristalizava na prática, levando plateias a refletir sobre o próprio ato de audição, foi o compositor Tom Johnson, cuja magnética “An Hour for Piano” será interpretada à uma da tarde, hoje, por Dante Boon, com transmissão ao vivo na página de Facebook do pianista. Isto porque “Quem sair de casa/ Hoje dança”, como figurativamente avisava Luiz Melodia, em ‘Hoje e Amanhã Não Saio de Casa’ (“É tão emocional lá na rua/ O couro tá comendo nas ruas/ As luzes se apagaram nas ruas”, ouvia-se). Ninguém diz que é fácil (aliás, numa “Science” de julho de 2014, um estudo sugeria que, sujeito a estarem fechadas num quarto, sem estímulos exteriores, cobaias humanas preferiam autoinfligir-se com choques elétricos do que suportar sozinhas os seus pensamentos), mas, segunda-feira, às 19h30, no site do Schinkel Pavillon, quando Severin von Eckardstein (na foto) tocar a “Sonata para Piano Nº 8”, de Prokofiev, a “Elegia”, Op. 59, Nº 2, de Medtner, e o “Noturno”, Op. 27, Nº 2, de Chopin, não se queixem de falta de ajuda.

Bernardi: Lux Aeterna – Ein Salzburger Requiem (Arcana, 2020)

Na capa, um pormenor de “Sepultamento de Jesus”, de Ignazio Solari – vem a propósito, terminada que está a semana santa, não obstante se ter discutido mais a recuperação da economia do que a ressurreição de Cristo, este ano. Será, até, muitíssimo apropriado, tendo em conta que o quadro pertence à coleção da Catedral de Salzburgo, cujo arquiteto foi Santino Solari (pai de Ignazio) e cuja cúpula octogonal foi o amplificador original das obras de Bernardi. Não se pense, no entanto, que em 1629 (data da publicação de uma solaz “Missa de Defuntos” que é a grande razão de ser deste extraordinário CD) os incumbentes descuravam assuntos terrenos – em “Os Noivos”, de Alessandro Manzoni, lê-se que, na altura, os encargos com a guerra não podiam ser diferidos: “Sed belli graviores esse curas”. De modo crucial para esta história, aí, o contexto era a entrada da peste com as tropas alemãs em território italiano no decurso da Guerra dos 30 Anos: “Por toda a faixa de território percorrida pelo exército, tinham sido encontrados alguns cadáveres nas casas, alguns nas estradas. Pouco depois, neste ou naquele vilarejo, começaram a adoecer e a morrer pessoas e famílias de males violentos, estranhos, com sintomas desconhecidos para maior parte dos viventes.” Nessa perspetiva, não é difícil imaginar o veronês Stefano Bernardi (1577-1637) a aceitar o cargo de mestre-capela no príncipe-bispado governado por Paris de Lodron, reduto católico que se manteve neutro durante o bárbaro conflito – ainda assim, devia levar consigo o desamparo e desconsolo daquela desgraçada gente que pelo caminho ia cruzando (e salta novamente à memória o romance de Manzoni: “Em todos os lugares encontraram povoados fechados com portões, outros quase desertos, tendo os habitantes fugido, ido para os campos ou se dispersado – pareciam criaturas selvagens, uns trazendo menta nas mãos, outros arruda, outros alecrim, outros uma garrafa de vinagre.”) Sem que o pudesse admitir, ao libertar tamanha emoção numa obra contaminada pelo mais catártico em Gabrielli, era em nome dessa gente que compunha. Sem que o pudesse saber, seria preciso nova pandemia para que viesse a ser relembrado.

10 de abril de 2020

Bach: The Well-Tempered Consort – I (Linn, 2020)

Por mais que um motivo, manda a tradição que, neste dia, de Bach, se evoque antes a “Paixão Segundo São Mateus”. Se é essa a questão, consumado está, como diria Jesus Cristo na cruz (até, porque, do oratório, na BIS, há nova edição digna de nota: a do Bach Collegium Japan, dirigida por Masaaki Suzuki, com Benjamin Bruns e Carolyn Sampson). Tudo isto, claro, porque não só a obra – estreada na Sexta-Feira Santa de 1727 – acompanha a crucificação e morte no Calvário do seu protagonista como, também, representa um muitíssimo figurado regresso ao mundo dos vivos do seu autor (o que se deu em março de 1829, quando Mendelssohn, a contragosto das plateias do seu tempo, a tornou a incluir numa folha de sala, de certa forma pondo em marcha um processo de reabilitação crítica que não mais parou). Daí resulta um terreno fértil para testar o que na avaliação da natureza dos solos se apelida de limites de consistência: ou seja, sim, desde então, Bach tornou-se permeável a todas as reconfigurações possíveis e imaginárias (basta esquadrinhar o YouTube que independentemente de géneros musicais se dá por opúsculos seus interpretados em ocarinas, copos de cristal, harmónicas, flautas de pã, cavaquinhos, instrumentos e gente dos quatro cantos do planeta). Por isso, e porque, este ano, ao que parece, a Páscoa foi cancelada, em boa hora e de modo muito apropriado surge o Phantasm a propor transcrições para viola da gamba de páginas extraídas a “O Cravo Bem Temperado”, “Oferenda Musical” e, com uma ou outra cantata pelo meio, ao transcendente terceiro volume de “Pequeno Livro para Órgão”. Dir-se-ia que os seus integrantes aspiravam ao mesmo que a pianista mongol Odgerel Sampilnorov, conforme o relato de Sophy Roberts, em “The Lost Pianos of Siberia”: “Bach diz-nos como expressar a dor e a tragédia. Quando leio acerca da Ressurreição não sinto grande coisa, mas quando toco [uma ária] ganho vida. Bach ensinou-me a respirar!” Aqui, basta escutar o “Prelúdio Nº 22”, BWV 867, ou “Kyrie, Gott heiliger Geist”, BWV 671, que se pressente o equivalente à primeira golfada de ar que um mergulhador de apneia dá ao regressar à superfície. Habemus Páscoa.