28 de dezembro de 2013

Melhores do Ano (alfabeticamente pelas três categorias utilizadas pelo Expresso)



World
EL MARAVILLOSO MUNDO DE Abelardo Carbonó (Vampisoul)
JAMA KO Bassekou Kouyaté & Ngoni Ba (Out Here)
ESLAVOSAMBA Cacá Machado (Circus)
SHEMONMUANAYE Hailu Mergia (Awesome Tapes From Africa)
LE GRAND KALLÉ: HIS LIFE, HIS MUSIC Joseph Kabasele (Sterns)
VAGABONDE Mar Seck (Teranga Beat)
THE SKELETAL ESSENCES OF AFRO FUNK 1969-1980 Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou (Analog Africa)
PASSO ELÉTRICO Passo Torto (YB Music)
AFROBEAT AIRWAYS 2: RETURN FLIGHT TO GHANA 1974-1983 Vários (Analog Africa)
BENIN: MUSIQUE BARIBA Vários (Ocora/Harmonia Mundi)

De lojas depauperadas, a relação do mercado português com o Brasil ganha, por fim, sintomática expressão quando “AOR”, de Ed Motta, é por cá lançado na sua versão inglesa. Logo no ano de “Passo Elétrico” ou “Eslavosamba”, mas também de “Malagueta, Perus e Bacanaços” (Thiago França), “Homens Lentos” (A Fase Rosa), “Esses Patifes” (Ruspo) ou “Dorgas” (dos homónimos) – para não falar da educação sentimental promovida por Amarante, Jeneci, Nana, Momo, Cícero, Bárbara Eugénia ou o Bonifrate de ‘Eu Não Vejo Teenage Fanclub Nos Teus Olhos’. Por África, do Mali provêm três Touré (Samba, Sidi e Vieux Farka) e dois Traoré (Rokia e Lobi), a Kindred Spirits vasculha no extinto Alto Volta, recuperam-se Super Mazembe, Dieuf-Dieul de Thiès, Dur-Dur Band, Ebo Taylor, Peter King, Super Onze de Gao, Mammane Sani, Freedom Family ou Colomach (metade destes só em vinil) e a Luaka Bop inquere: “Who is William Onyeabor?”. Entre um ponto e outro a Aline Frazão de “Movimento”. Tudo a Dust-to-Digital sintetiza em “Longing For The Past”.
Jazz
HAGAR’S SONG Charles Lloyd/Jason Moran (ECM)
TIME TRAVEL Dave Douglas Quintet (Greenleaf)
MIRAGE Ellery Eskelin, Susan Alcorn, Michael Formanek (Clean Feed)
QUINTET Elliott Sharp Aggregat (Clean Feed)
CITY OF ASYLUM Eric Revis Trio (Clean Feed)
ROCKET SCIENCE Evan Parker, Peter Evans, Craig Taborn, Sam Pluta (More is More)
ARC TRIO Mario Pavone (Playscape)
RED HOT Mostly Other People Do The Killing (Hot Cup)
ONLY MANY Ralph Alessi & Fred Hersch (Cam Jazz)
WITHOUT A NET Wayne Shorter Quartet (Blue Note)

Dir-se-á que é de crise o clima intelectual e cultural do mundo. No jazz, tal manifesta-se pela infinitésima fragmentação de uma cena que teve dois portugueses à altura dos acontecimentos: Luís Lopes em “Live in Madison” e Rodrigo Amado em “Flame Alphabet”. Além, naturalmente, da ação da Clean Feed, notabilizada, ainda, por excelentes discos de Kris Davis, Mark Dresser, Nate Wooley ou de Angelica Sanchez com Wadada Leo Smith. De assinalar, também, a obra de Harris Eisenstadt, François Houle e Benoît Delbecq na Songlines, a de Pandelis Karayorgis na Driff ou a de Ivo Perelman na Leo. David Virelles brilhou ao serviço de Tomasz Stanko e Chris Potter. Matthew Shipp editou um irónico “Greatest Hits” e interessantes duetos com Evan Parker. Voltaram Maria Schneider, Myra Melford e Geri Allen. A ESP celebrou 50 anos, a Jazzman pescou pérolas, a Mosaic honrou Woody Shaw, a Intakt converteu-se numa editora de casais e, ao cair do pano, o Marty Ehrlich de “A Trumpet in the Morning” anunciou que há sempre um amanhã.

Clássica
BACH: MATTHÄUS-PASSION René Jacobs, Akademie Für Alte Musik Berlin (Harmonia Mundi)
BARTÓK: VIOLIN CONCERTOS NOS. 1 & 2 Isabelle Faust, Swedish Radio Symphony Orchestra, Daniel Harding (Harmonia Mundi)
DVORÁK: CELLO CONCERTOS Steven Isserlis, Mahler Chamber Orchestra, Daniel Harding (Hyperion)
EISLER: ERNST GESÄNGE Matthias Goerne (v), Thomas Larcher (p), Ensemble Resonanz (Harmonia Mundi)
GESUALDO-MAIONE: TRIBULATIONEM – MOTTETTI, MADRIGALE E CAPRICI Concerto Soave, Jean-Marc Aymes, Mara Galassi (Zig-Zag Territoires)
GINASTERA; DVORÁK; SHOSTAKOVICH Simón Bolívar String Quartet (Deutsche Grammophon)
GUARNIERI: PIANO MUSIC 1 Max Barros (Naxos)
HOLT: SOLO PIANO MUSIC Jeroen van Veen (Brilliant)
I DODICI GIARDINI – CANTICO DI SANTA CATERINA DA BOLOGNA La Reverdie, Adiastema (Arcana)
SCODANIBBIO: REINVENTIONS Quartetto Prometeo (ECM)

Arruína-se a indústria fonográfica e encomendam-se os caixões: “The Decca Sound”; as “Obras Completas” de Britten e Verdi; “Bach Masterworks”; 500 anos de corais em “Magnificat”; a “Centenary Edition” da Filarmónica de Berlim e a “Symphony Edition” da de Viena; reúne-se Reiner e Van Cliburn na RCA, Ashkenazy na Decca e Karajan na Deutsche; relembra-se Mercury ou Erato e embala-se a Archiv; agrupam-se os recitais de Horowitz no Carnegie Hall e as produções de Wagner no Met; Gardiner empacota “Cantatas”. Dá quase mil discos! Mais modestos mas não menos essenciais: Lisitsa dedicada a Liszt, Le Sage às voltas com Fauré, Volodos a tocar Mompou, András Schiff nas “Variações Diabelli” e Jeremy Denk nas “Goldberg”. Notável o Stravinsky por Kopatchinskaja e Osborne e, na Naxos, o centenário de Lutoslawski e as sinfonias de Shostakovich por Petrenko. Mais: Ligeti, Feldman e Kissine na ECM; CD de Accademia del Piacere, Stile Antico e Hillard Ensemble; o “Stabat Mater”, de Dvorák, por Herreweghe; Jordi Savall por toda a parte.

21 de dezembro de 2013

Eisler: Ernst Gesänge; Lieder Mit Klavier (Harmonia Mundi, 2013)



Matthias Goerne (v), Thomas Larcher (p), Ensemble Resonanz

Em 1998, no centenário de nascimento desses dois exatos contemporâneos, Matthias Goerne lançou o “Livro de Canções de Hollywood”, composto por Hanns Eisler, em Los Angeles, a partir, maioritariamente, de poemas de Bertolt Brecht. A edição, pela Decca, gerava-se no contexto da série “Música Degenerada”, uma referência à exposição organizada pelo regime nazi em 1938, sintetizada, então, num cartaz que retratava uma figura amacacada a tocar saxofone de casaca e cartola, Estrela de David desabrochada na lapela – essa caricatura, tal como Eisler, está representada na pintura de Rainer Ehrt impressa na capa acima reproduzida. A reincidência de Goerne em doze dessas composições prova que o alemão lhes investigou primeiro a técnica para agora lhes desvendar a humanidade, nomeadamente quando canta: “Confundindo cheiro e som, imagem e sentido/ O fugitivo senta-se debaixo do amieiro/ E prossegue com o seu custoso labor: a esperança”, em ‘Primavera’; “Junto à cama, na cabeceira/ Está o pequeno aparelho a seis válvulas com o seu altifalante// De manhã cedo/ Ligo o interruptor e oiço/ boletins com as vitórias dos meus inimigos”, em ‘Quarto de Hotel 1942’; “O meu filho/ Foi-me buscar para salvar um pequeno alperceiro que crescia junto à casa/ Arrancando-me a um verso em que apontava o dedo àqueles que preparavam uma guerra que/ Podia destruir o continente, esta ilha, o meu povo, a minha família e a mim próprio”, em ‘Domingo de Páscoa’. Esta “paisagem do exílio” foi musicada por Eisler, dir-se-ia, ao socorrer-se das mais irresolutas ambiguidades encontradas em Brahms, Schubert ou Wolf. Já nas “Canções Sérias” – para barítono e orquestra, derradeiro opúsculo – esse dilacerado romantismo sublinha uma dramática tomada de consciência: há sempre quem substitua os piores entre nós.

14 de dezembro de 2013

Ralph Alessi “Baida” (ECM, 2013), Ralph Alessi & Fred Hersch “Only Many” (Cam Jazz, 2013) & Fred Hersch and Julian Lage “Free Flying” (Palmetto, 2013)



Dir-se-iam diametralmente opostas as razões pelas quais se vem subestimando a dramática expressividade patente na ação de Ralph Alessi e Fred Hersch. No caso do trompetista, ainda que lhe elogiando as qualidades demonstradas sob a tutela de Steve Coleman, Ravi Coltrane, Don Byron ou, com invulgar pendor sinóptico, Uri Caine, apontava-se, por exemplo, uma vacilante singularidade artística, duvidando-se da sua capacidade em converter numa prática pessoal tudo aquilo em que se tornava versado quando servia criações de terceiros. Sem que se resumisse tal dispersão nestes termos – e o reconstitutivo contexto, segundo parâmetros praticamente teatrais, em que nas formações de Caine abordou Bach, Mahler, Mozart ou, já este ano, Gershwin, daria alento a tal formulação – trazia à memória o ator cuja versatilidade se vai frustrando pela reincidência no mesmo tipo de papel. Já em Hersch era a sua progressiva insularidade que impressionava. Dissociado, solipso, com interesses pouco canónicos, para não dizer anacrónicos, acumulava uma volumosa discografia em nome próprio – a rondar as quatro dezenas de álbuns – num impulso algo parafrástico face à literatura pianística no jazz. De modo perverso, pois assim se firmaram as maiores reputações no género, era como se pelo ato de preconizar a excelência interpretativa – relembrem-se as suas fascinantes leituras de Billy Strayhorn, Rodgers & Hammerstein, Thelonious Monk ou Johnny Mandel – estivesse a contrariar a edificação de um paradigma autoral, quando era o oposto que se verificava. Na fase de mais intensa visibilidade e correspondente benesse crítica de um e outro – no espírito do que, acerca de Jess Stacy, um dia escreveu Whitney Balliett – produziam música que ia sendo recordada à medida que estava a acontecer.

Em “Baida”, Alessi pretende indicar que é hoje um compositor tão confiante quão seguro de si foi enquanto solista. No entanto, declarações suas ao número de setembro do “The New York City Jazz Record” confirmam a perplexidade que advém da primeira audição do disco: “Tinha algumas dúvidas antes da ida a estúdio. Honestamente, não sabia bem do que é que o Manfred [Eicher, cofundador e diretor da ECM] iria gostar”. E, em relação à estelar banda que reuniu – Jason Moran, Nasheet Waits e Drew Gress – afirmava: “Como não tocamos juntos com frequência, sempre que o fazemos há uma frescura, um sentimento de que estamos a começar de novo ainda que num registo de uma certa continuidade”. O paradoxo é que o sucesso de temas como ‘Chuck Barris’ ou ‘In-Flight Entertainment’ dependeria precisamente da unidade concetual que apenas a atividade sustentada de um grupo, e a acreção que daí resulta, consegue gerar. Ao invés, temos melodias convencionais idiossincraticamente tocadas, orientadas no sentido contrário senão ao dos instintos dos improvisadores pelo menos ao da natureza do material apresentado (compare-se com “Cognitive Dissonance”, a gravação de 2004 deste quarteto na Cam Jazz). A tendência para a abstração – estratégia comum na ECM mas que se revela mais congenial à medida que se percorre o alinhamento – parece querer prevenir um discurso marcado por generalidades, mas acaba por lhe reprimir o potencial idiomático, atingido só nos perfeitamente estruturados ‘Sanity’ e ‘Maria Lydia’.

Já em “Only Many” nada tolda – muito menos o receio de, a espaços, tornar aparente uma oratória doutrinal – a energia criativa de Alessi. Amparada e comentada pela inquietude de Hersch, que oscila entre a reverência classicista e o ímpio sentimentalismo, pressente-se aqui uma lógica de recital, organizada de forma a fazer desfilar um conjunto de estéticas nem sempre compatíveis. Constantemente inventivos, trompetista e pianista – num programa de originais que encontra exceções em ‘San Francisco Holiday’, de Monk, e ‘Blue Midnight’, de Motian – sugerem um quadro de inequívoco mistério, feito de opulentas baladas e pontilhadas miniaturas atonais, matura decantação do ensaiado em “The Fred Hersch Trio +2”, há dez anos. “Free Flying”, a pretexto de uma colaboração com o prodigioso guitarrista Lage, serve, por sua vez, para revalidar o valor da empatia. Contrariamente a “Songs We Know”, a parceria de Hersch com Bill Frisell, de 1998, o ecletismo não origina, agora, mais-valia, destacando-se a mestria gramatical na escrita (quase toda de Hersch) e as oblíquas relações que se estabelecem entre os interlocutores. Longe do tropismo das vanguardas, o triunfo de estilistas que, coagidos a definir-se, provavelmente diriam não ter estilo algum.