7 de dezembro de 2013

Sugestões de Natal



Kayhan Kalhor/Erdal Erzincan “Kula Kulluk Yakisir Mi” (ECM, 2013)
Kalhor e Erzincan, um iraniano e um turco, evocam modalismos persa e anatólico mas é em cinco improvisações que dissipam os bancos de nevoeiro que ocasionalmente sufocam o Bósforo. E neste disco, gravado ao vivo em Bursa, na margem sul do mar de Mármara, ao longo de uma hora de música sem interrupções, aprofundam o que em 2004, em “The Wind”, apenas diafanamente sugeriam: que a tradição liberta.

Tal National “Kaani” (Fat Cat, 2013)
Num ano em que o mais visível representante musical do Níger – Bombino – foi aclamado a ocidente por melhor reproduzir a versão do psicadelismo há 45 anos apresentada em “The Howlin’ Wolf Album” e “Electric Mud” (Muddy Waters), é refrescante ouvir uma banda de rock de Niamey dar dois passos atrás – rumo a expressões fula, hausa, songhai ou tuaregue – e encontrar o mundo na soleira da porta.

Bebo Valdés & Diego El Cigala “Lágrimas Negras (Edición 10 Aniversario)” (Calle 54/Sony)
Quem há mais de um século cunhou a expressão “cantes de ida y vuelta” sonhava com a voz de Cigala. Em 2003, “Lágrimas Negras” – que viria a vender um milhão de cópias – reaproximava Cuba e a Andaluzia com a inevitabilidade lógica de quem reúne irmãos desavindos. Agora, quando Diego saiu de Espanha e Bebo se foi do mundo, relembra-se o processo através do álbum original, da sua versão ao vivo e de um documentário.

Chucho Valdés & The Afro-Cuban Messengers “Border-Free” (Jazz Village/Harmonia Mundi)
Chucho lembra os comanches deportados para Cuba no século XIX, mas recorda também o exotismo de Margarita Lecuona ou a paixão da sua avó pelo “Concerto para Piano nº 2”, de Rachmaninov. Em ‘Bebo’ evoca o seu pai e em ‘Pilar’ honra a sua mãe, que adorava o ‘Blue in Green’, de Miles, ou os “Prelúdios”, de Bach, que cita. E tão apropriado é que fale de diluição de fronteiras quem sofre a tirania do embargo.

“Zanzibara 7: Sikinde Vs Ndekule” (Buda, 2013)
Entre 1984 e 1987 – no período em que Julius Nyerere, figura tutelar do regime, se reformou –, os inflamados temas aqui reunidos serviram de combustível para o que se veio a chamar de “batalha das bandas em Dar Es Salaam”, com Mlimani Park Orchestra e International Orchestra Safari Sound a disputar com rapacidade a supremacia na Rádio Tanzânia, prenunciando o fim do ‘socialismo africano’.

Laurindo Almeida “Viva Bossa Nova! + Olé! Bossa Nova!” (American Jazz Classics, 2013)
Laurindo Almeida aprendeu coisas dificílimas à guitarra. Depois, porque na Califórnia se preferiam choros do Rio a transcrições de Segovia, teve de estudar outras que, apesar de virem da sua terra, não lhe seriam mais congeniais. Em 1962, superando Charlie Byrd, apresentou neste par de LP o seu estilizado e amiúde oximorónico projeto na bossa, que logo colocou ao serviço do cancioneiro norte-americano.

John Coltrane “Sun Ship: The Complete Session” (Impulse!, 2013)
Ouvir Coltrane em sucessivos takes do mesmo tema – só do extorsionário ‘Ascent’, aqui, são oito – não é tanto como esquadrinhar o YouTube em busca de bloopers de séries de TV quanto como testemunhar o dilemático Hamlet à procura de uma resolução final. Gravado meses depois de “A Love Supreme” ou “Ascension”, este “Sun Ship” foi editado postumamente, em 1971, serôdio documento de um quarteto abençoado.

Keith Jarrett “No End” (ECM, 2013)
À data de gravação (1986), apesar de se distinguir dos outros, tomar-se-ia por mais um álbum de guitarra na editora de Frisell, Metheny, Rypdal, Tibbetts, etc. E, embora – como “Spirits”, lançado um ano antes – indulgencie impulsos de multi-instrumentista, não se assemelha ao ensaio anterior. Foi, antes, o regresso de Jarrett ao espírito de “Restoration Ruin” num contexto de música popular impecavelmente clínica.

Joe McPhee “Sonic Elements” (Clean Feed, 2013)
Compradores aventureiros poderão rumar até à Corbet Vs. Dempsey, situada na North Ashland Avenue, em Chicago, de modo a adquirir o quádruplo “Nation Time: The Complete Recordings (1969-70)”, antológico testemunho de McPhee no funk mais áfrico. Mas convirá não ignorar esta sua recente punção na heurística segundo Don Cherry e Ornette Coleman, cujos espectros evoca sem se confundir com nenhum.

Wayne Shorter “Second Genesis + Wayning Moments” (Essential Jazz Classics, 2013)
Reunião dos segundo e terceiro álbuns de Shorter para a Vee Jay – gravados em 1960 e 1961, embora editados de modo anacrónico – em que, nomeadamente em ‘The Albatross’, se deteta o potencial oracular que a passagem dos anos confirmou ou, em ‘Black Orpheus’, num procedimento afim ao ensaiado com Blakey nos Jazz Messengers, uma precoce habilidade na extração de óleos essenciais ao hemisfério sul.

Charpentier: Litanies de la Vierge; Miserere - Ensemble Correspondances, Sébastien Daucé (d) (Harmonia Mundi, 2013)
Seu inquilino, Charpentier trabalhou dezassete anos para Marie de Lorraine, a Marquesa de Guise, a quem dedicou melodiosos salmos, oratórios, hinos, missas e motetos com charme palaciano – já o “Te Deum”, cujo prelúdio permanece martirizado pelo genérico das transmissões da Eurovisão, compôs ao serviço de um liceu jesuíta. O Ensemble Correspondances prova-se insuperável nas litanias marianas. 

Dvorák: Stabat Mater - Collegium Vocale Gent, Royal Flemish Philharmonic, Philippe Herreweghe (d)
(Phi, 2013)
Com um par delas portuguesas, são sessenta as vozes no coral de Gent; já os músicos da deFilharmonie ascendem às sete dezenas. E não há um entre eles que não pareça levar a peito as dores de Maria, e este texto, que, em tradução mais literal, começa no verso: “Em pé, a Mãe dolorosa/ chorando junto à cruz/ da qual pendia seu Filho”. Dvorák, com conhecimento de causa, levou a dor até à “glória do paraíso”.

Schubert - Maurizio Pollini (p) (Deutsche Grammophon, 2013)
Melómanos avisados ter-se-ão há muito familiarizado com estes registos – da fantasia ‘O viajante’, às sonatas D845, D958, D959 e D960, passando pelas “Três Peças para Piano” – em que, entre 1973 e 1987, um impiedoso Pollini escancarou a extemporaneidade em Schubert. Mas agora que se promove a cíclica unificação desse material melhor se compreendem estas estranhas figuras, entre o inefável e o insidioso.

Strauss: Also Sprach Zarathustra - Berliner Philharmoniker, Gustavo Dudamel (d) (Deutsche Grammophon, 2013)
Foi apropriado que o “2001”, de Kubrick, famoso filme acerca de um monólito, se iniciasse ao som de música inspirada por um conceito que Nietzsche cogitou à sombra de um enorme calhau. Dudamel não se deixa esmagar pelo peso da fantasia cultural mas revela-se inesperadamente cauteloso e sublinha a incerteza. Já “As alegres travessuras de Till Eulenspiegel” e “Don Juan” não lhe reservam segredos.

“The Complete Alpha Recordings” - L’Arpeggiata, Christina Pluhar (d) (Alpha)
Numa espécie de adaptação em tempo real ao discurso etnomusicológico, o compromisso com o folclore regressa de forma cíclica à agenda de agrupamentos de música clássica. E dir-se-á que nesse impulso predomina uma tão poética quão irredutível conceptualização: a de que todas as músicas, enquanto expressão criativa e testemunho essencialmente humanista, de facto, se equivalem. E o que, com frequência, se ganha em repertório – entendendo-se, por exemplo, como noções de diáspora afetaram a intatilidade estética ou identificando desejos de modernização em manifestações artísticas tradicionais ou revelando transformações nucleares nas soberanias culturais pós-coloniais – perde-se ocasionalmente em espírito crítico. Desde o início do terceiro milénio, neste domínio, Christina Pluhar, dirigindo o conjunto L’Arpeggiata, tem sido, a par de Jordi Savall ou Yo-Yo Ma, uma importante voz na seguinte argumentação: primeiro, que o ecletismo não tem de implicar uma dissociação com o conhecimento teórico; segundo, em contrapartida, que a mais fecunda transmissão oral pode ombrear com os achados da hermenêutica; terceiro, que há sempre algo a acrescentar pelo intérprete à obra sem que daí resulte uma presunçosa exibição de virtuosismo; quarto, que a combinação dos mais variados elementos, face a cada configuração inicial, tem de agir de acordo com o holismo. Não sendo certo que norteie ainda assim a sua ação (ouça-se “Mediterraneo”, deste ano), é inegável que os documentos aqui reunidos – registados entre 2000 e 2004 – são um postulado desses princípios: “La Villanella”, de Kapsberger, “Homo fugit velut umbra”, segundo Stafano Landi, “Rappresentatione di Anima, et di Corpo”, de Emilio De’ Cavalieri, “La Tarantella” e, fundamentalmente, “All’Improvviso: Ciaccone, Bergamasche, & un po’ di Follie”.

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