30 de dezembro de 2011

Melhores do Ano

"Brand New Wayo: Funk, Fast Times & Nigerian Boogie Badness 1979-1983" (Comb & Razor Sound)
"The Koka Koka Sex Battalion" Vijana Jazz Band (Sterns)
"Bambara Mystic Soul: The Raw Sound Of Burkina Faso 1974-1979" (Analog Africa)
"Nigeria 70: Sweet Times" (Strut)
"The Karindula Sessions: Tradi-Modern Sounds from Southeast Congo" (Crammed)
"Orlando Julius and the Afro Sounders" Orlando Julius (Voodoo Funk)
"Songs of Happiness, Poison & Ululation 1973-1975" Western Jazz Band (Sterns)
"Afrolatin: Via Kinshasa" (Syllart/Discograph)
"Omara Y Chucho" Omara Portuondo & Chucho Valdês (World Village)
"Agadez" Bombino (Cumbancha)

RIP: Bert Jansch, Billy Bang, Billy Blanco, Bob Brookmeyer, Cesária Évora, Charles Louvin, Christy Essien-Igbokwe, Conrad Schnitzler, Eugene McDaniels, Fonce Mizell, Frank Foster, Gil Scott-Heron, Gordon Beck, Graham Collier, Joe Arroyo, Lula Côrtes, Michael Garrick, Paul Motian, Pete Rugolo, Ray Bryant, Russ Garcia, Sam Rivers e Walter Norris.

23 de dezembro de 2011

"Bambara Mystic Soul: The Raw Sound of Burkina Faso 1974-1979" (Analog Africa, 2011)

Embora, por natureza, concorrencial e antológico, o cumulativo esforço editorial aplicado aos mais inusitados terrenos da música popular africana das décadas de 60 e 70 por agentes ao serviço da Soundway, Sterns, Strut ou Vampisoul tem tanto de restituição quanto de recomposição. Esse equilíbrio entre ambição arquivista, espírito científico, intuição e fantasia é personificado por Samy Ben Redjeb (coleccionador, DJ e proprietário da Analog Africa) nas suas particularíssimas notas de apresentação a este décimo* título do seu selo quando traça o relato cronológico do seu encontro, quase sempre casual, com cada tema coligido. E se mais do que uma vez no passado aludiu à noção de forças criativas em trânsito para retratar o tráfico de influências na origem de alguns dos mais singulares cadinhos culturais do continente, nunca como no caso do Burkina Faso se provou tão crucial a expressão. Porque – pegando no que em 2009 largou a Savannahphone de “Ouaga Affair: Hard Won Sound of the Upper Volta 1974-1978” – a produção do antigo Alto Volta aqui reunida acompanha num país relativamente fechado ao exterior a quilometragem acumulada por arautos da liberdade nos vizinhos Mali, Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim e Níger (com Nigéria, Guiné e Senegal ao virar da esquina). E, de facto, o que no regresso a casa gravaram Amadou Ballaké, Abdoulaye Cissé, Super Volta, Afro-Soul System ou Mamo Lagbema representa a aplicação desse cosmopolita impulso num espaço de dramática vulnerabilidade, que, no acto de os traduzir, praticamente decompõe cada um dos princípios importados até aos seus mais elementares constituintes para logo os reedificar numa celebrativa acção de independência e soberba artística que, surpreendentemente, e ao fim de tantos anos, torna patente um novo olhar sobre afrobeat, jerk, rumba ou música mandinga.

* Nota: a editora apresenta esta compilação como o seu décimo lançamento [presume-se então que não inclua na lista as reedições limitadas dos primeiros álbuns de Rob e Orchestre Poly-Rythmo que efectuou este ano]

17 de dezembro de 2011

Fatoumata Diawara “Fatou” (World Circuit, 2011)

Quando em 1991 a Sterns lançou “The Wassoulou Sound: Women of Mali”, reunindo cantoras como Sali Sidibé, Kagbé Sidibé, Djeneba Diakité ou Coumba Sidibé, documentava uma tradição que nada tinha em comum com a linhagem dos cantores de louvor (Kanté, Kouyaté, Diabaté, etc) que começava então, pelo menos na Europa, a confundir-se com a ‘verdade musical’ maliana. Pelo contrário, reagindo à corrupção do regime militar, à crise económica e a um conjunto específico de desigualdades sistémicas, as cantoras wassoulou de finais da década de 80 – nomeadamente, Oumou Sangaré – nada tinham a louvar e, ao contrário das castas jeli, dedicavam-se à música por opção, lançando para discussão na comunidade assuntos tabu (poligamia, casamentos combinados, prazer sexual, etc). Vinte anos depois, com algumas das grandes wassoulonke já desaparecidas, parece ser em Fatoumata Diawara que por agora se personifica esse desafiante espírito. E, vinda de colaborações importantes ao lado de, precisamente, Sangaré (sua mentora), Dee Dee Bridgewater (no álbum “Red Earth”), Herbie Hancock (no “Imagine Project”) ou Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, poder-se-á no mínimo dizer que foi devidamente preparada para o papel. E porque o Mali é ainda um dos países mais pobres do mundo, com uma esperança média de vida a rondar os 50 anos, um dos maiores índices de mortalidade infantil do continente e, fundamentalmente, segundo a Organização Mundial de Saúde, com 90% da sua população feminina vítima de algum tipo de mutilação genital, é imperativo que se renovem as linhas de força de um discurso matriarcal. Diawara – que mais convincente soa quanto menos acompanhada está – fá-lo pela via da subtileza, numa elegância formal que lembra Rokia Traoré ou India.Arie, e em que a esperança, mais que um acto de consciência, é um gesto de poesia.

10 de dezembro de 2011

Sugestões de Natal

“Afrolatin Via Conakry” (Syllart, 2011)
Concentrando aqueles que, na costa ocidental africana, melhor personificaram o afã fantasista de estabelecer uma efectiva ponte com as Caraíbas – Bembeya Jazz, Balla et ses Balladins, Orchestre de la Paillote ou Keletegui et ses Tambourinis – esta retrospectiva pela música guineense de meados da década de 60 ouve-se como um diáfano canto da diáspora que, paradoxalmente, contraria qualquer regionalismo.

Diego el Cigala “Cigala & Tango” (Deutsche Grammophon, 2011)
Vencedora do Grammy Latino para “Melhor Álbum de Tango”, a incursão de Cigala na canção de Buenos Aires, gravada ao vivo na capital argentina e com convidados como Néstor Marconi ou Pablo Agri, surge tão austera quão inesperadamente flexível (além de Gardel, inclui Weill e Yupanqui nos créditos) e estabelece, mais uma vez, a voz do espanhol como um inabalável paradigma interpretativo.

Buika “En Mi Piel” (Warner, 2011)
A retrospectiva dupla abre com os temas mais recentes de Concha Buika – gravados para o último filme de Almodóvar – mas logo recupera aquelas vinhetas transatlânticas que, desde 2005, ensaiou a maiorquina em “Buika”, “Mi niña Lola” ou “Niña de fuego”. Há um inédito, dois temas ao vivo e colaborações dispersas mas tudo se concentra numa voz que resiste a qualquer manipulação.

“Congotronics” (Crammed, 2011)
Limitada a 1000 unidades numeradas, esta caixa reúne em cinco LP [com conteúdos digitais áudio e vídeo incluídos numa pen] os extravagantes resgates desde 2005 realizados por Vincent Kenis a uma arruinada Kinshasa. Do enlevo rítmico de Konono Nº1 e Kasai Allstars ao clamor de Staff Benda Bilili, o que aqui se colige resultou numa das mais extáticas ressurreições culturais da década.

Oi! A Nova Música Brasileira (Mais Um Discos, 2011)
Abre com uma marcha-calipso da Mini Box Lunar e logo se percebe que a premissa central à nova música brasileira é a que assenta na descodificação de tipologias associadas às músicas populares de todo o mundo. Prevalece em muitas destas 40 bandas um clima brega-chique recuperado dos anos 80 mas Tulipa Ruiz, Mombojó, Alessandra Leão, M. Takara ou Os Ritmistas devem já a todos e a ninguém.

3 de dezembro de 2011

Joni Haastrup “Wake Up Your Mind” (Tummy Touch/Soundway, 2011)

Nem parece que demorou uma década a construir-se: pois, inesperadamente, o tautológico discurso de recepção às mais fulgurantes reedições de música popular africana ganhou uma anacrónica contracção. De súbito, o anelo pelo regresso daquele de que não se conhece manifestação menor que essencial é depreciado pelo silogismo crítico que, regra geral, atribui maior importância ao rock do que ao funk. Assim, a simultânea recuperação de uma acção colectiva – com os MonoMono de “Give the Beggar a Chance”, lançado em 71, e de “The Dawn of Awareness”, original de 74 – desenvolvida na dependência do psicadelismo tem sido pela imprensa de todo o mundo valorizada face a este solitário ensaio em nome próprio, em 78 colocado na antecâmara do disco sound nigeriano que a compilação “Brand New Wayo” recentemente retratou. Quando, na verdade, a exemplar produção de Joni Haastrup – para muitos, pela Strut revelada em 2001 com a inclusão de ‘Greetings’ em “Nigeria 70” – só ganhou em definitivo asas ao, precisamente, e independentemente das consequências dessa filiação surpreenderem a cada nova exumação, libertar-se da bagagem acumulada nos outros três fundamentais grupos em que militou: os Modern Aces, de Orlando Julius, a segunda encarnação dos Airforce, de Ginger Baker, e os Blo. Porque aqui, um ano após o FESTAC ’77 (o Festival Mundial de Arte e Cultura Negras que juntou, em Lagos, nomes tão diversos quanto OK Jazz, Sun Ra, Gilberto Gil, Stevie Wonder ou Orchestre Poly-Rythmo), pronunciou finalmente a declaração de pan-africanismo a que sempre aspirou, sem prejuízo para subtileza orquestral, clareza de ideias, retórica materialista e capacidade de síntese, e, numa aversão a programáticas leituras, invertendo tipologicamente a questão formulada pelos Funkadelic em “One Nation Under a Groove”: “who says a funk band can't play rock?!”.

26 de novembro de 2011

Marisa Monte “O Que Você Quer Saber de Verdade” (Phonomotor/EMI, 2011)

Há, no planeta, múltiplos organismos com formas pouco sofisticadas nos quais a biologia identificou características com raras alterações ao longo de milhares de anos. Podem não ter ossos, olhos ou estômago – como, sobre os invertebrados, escreveu Sue Hubbell em “Waiting for Aphrodite” – mas, por se adaptarem perfeitamente ao ambiente circundante, o mundo é seu. É assim para esponjas marinhas e – de Caetano e Chico a Adriana Calcanhotto e Seu Jorge – para certa música popular brasileira de 2011. Entre os dois últimos – numa aproximação procedimental a Jorge, pois se repetem aqui recentes colaboradores seus como Pupillo, Lúcio Maia e o multi-instrumentista norte-americano Miguel Atwood-Ferguson – desponta agora Marisa Monte, em 14 temas que resultam numa lisura ideológica entalhada apenas pela mais decadente afectação. Recorrendo às estratégias de “Mais” ou “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão”, torna a convocar luminárias como Marty Ehrlich, Greg Cohen ou Bernie Worrell e ensaia um rigoroso palimpsesto sobre a discografia passada, no qual, como em “Memórias, Crónicas e Declarações de Amor”, reinvoca a tutela sentimental de Roberto Carlos e Tim Maia, revisita géneros regionais, como em “Barulhinho Bom”, e esgota as púberes fantasias poéticas dos tribalistas Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown (ex: “amar alguém só pode fazer bem/ não há como fazer mal a ninguém/ mesmo quando existe um outro alguém/ mesmo quando isso não convém” ou “eu posso te fazer feliz/ feliz me posso sentir também”). A simplificação do discurso é contrariada por uma complexidade operacional – com convidados como Rodrigo Amarante, Gustavo Santaolalla ou Money Mark gravados entre Los Angeles, Buenos Aires ou Nova Iorque – que despista a única verdade possível: se efectivamente evoluísse, deixaria de conseguir sobreviver.

19 de novembro de 2011

Antonio González “Tiritando” (Vampisoul, 2011)

Em “Song of the Outcasts”, o seu livro dedicado ao flamenco, Robin Totton escreve que num género em que “melodia e harmonia pouco ou nada contam” tudo depende da leitura da palavra, da “compreensão da sua força rítmica e tonal” e, fundamentalmente, “de uma expressiva gestão do tempo”. E sugere que o desafio lançado aos seus cantores equivale a colocar alguém perante uma escadaria e pedir que a desça e suba iludindo os ângulos rectos dos degraus, como se de um arco se tratasse. Nessa perspectiva, nas suas mais ortodoxas categorias – tonás, siguiriyas, soleares – a voz pressupõe um acto de equilibrismo, enquanto que nos cantes de ida y vuelta – variantes permeáveis a matizes latino-americanas – aparentam relaxar-se os seus códigos. Mas basta ouvir Antonio “el Pescaílla” González, expoente da rumba catalã desde finais dos anos 40, para se compreender que o gozo em levar a canção cigana para longe dos seus princípios fundamentais se aliava à delícia de os aplicar em formas que lhe eram extrínsecas. “Tiritando” apresenta o caso quando tudo estava já decidido, ao concentrar-se em gravações para a Belter a partir da década de 60, período em que Pescaílla se dedicava quase exclusivamente à carreira da sua muito mais famosa esposa, Lola Flores. Daí, talvez, o pendor recreativo das suas versões de boleros como ‘Levántate’, do cubano José Dolores Quiñones, ou ‘Sabor a Mi’, do mexicano Álvaro Carrillo, ou a opção por tratar de modo absurdamente onomatopeico a ‘Garota de Ipanema’, de Jobim. A sua acção tanto contraria cânones interpretativos quanto, muito antes dos Gipsy Kings, promove uma espécie de ‘flamenco para o jet set’. E embora se fale sempre em emasculação quando num meio patriarcal um homem vive na sombra de uma mulher, a sua grande ilusão foi sugerir que não tinha mais demónios por enfrentar. Mas eles estavam lá.

12 de novembro de 2011

Orchestre Poly-Rythmo “The 1st Album (1973)” (Analog Africa, 2011)

Ao contrário do Dr. John de ‘Right Place Wrong Time’, a orquestra Poly-Rythmo, em 1973, estava à hora certa no sítio errado. E, no entanto, ainda que o seu primeiro longa-duração tivesse sido gravado em Lagos, na Nigéria, tudo em si tornava mítica uma origem no Benim. Porque, por mais que momentos de ‘Ou C´est Lui Ou C´est Moi’, ‘Yeye We Nou Mi’, ‘La La La La’ e ‘Egni Miton? Nin Mi Na Wa Gbin’ pareçam sintetizar dispositivos encontrados nos outros dois melhores álbuns de quatro temas do ano (“Afrodisiac”, de Fela Kuti, e “Head Hunters”, de Herbie Hancock), o que efectivamente os distingue é a dependência do sako e o sakpata, ritmos de cerimónias vudu tornados aqui matriz para o desenvolvimento de uma apropriação compositiva dos princípios do afrobeat. Aliás, à semelhança do muito material gravado pela banda e nos últimos anos reeditado em compilações como “Reminiscin' in Tempo” (PAM, 2003), “Kings of Benin Urban Groove” (Soundway, 2004), “The Vodoun Effect” (Analog Africa, 2008) e “Echos Hypnotiques” (Analog Africa, 2009), a ligação a um género específico – soukous, funk, rumba, highlife – assume-se como uma contingência de importância relativa, pois na sua acção interessa sempre mais acentuar instantes de tensão do que de resolução. Daí ser profundamente modelar tudo o que neste ensaio inaugural se enuncia: magistral gestão do espaço, invulgar presciência estética, inabalável consistência rítmica e concentração operacional num carismático compositor e vocalista (Vincent Ahehehinnou). Talvez por isso – pelo seguimento de preceitos eminentemente contemporâneos – não se estranhe que tenham conseguido regressar ao mundo dos vivos em 2009 (com passagem por Lisboa em 2010, na Gulbenkian, e lançamento de um novo disco, “Cotonou Club”, já este ano) e, finalmente, acertar com as coordenadas espácio-temporais.

5 de novembro de 2011

Rob "Funky Rob Way" (Analog Africa, 2011)

Mal se dava por si, mas pertenciam a Rob os mais enigmáticos momentos de duas significativas compilações de música ganesa: primeiro, quando em “Ghana Soundz” (Soundway, 2002) despontava com ‘Make it Fast, Make it Slow’, um orgástico recitativo de ‘conversa de cabeceira’ em que repetia onanisticamente um “sock it to me” talvez ouvido a Syl Johnson ou Mitch Ryder, e, segundo, em “Ghana Funk” (Hippo, 2009), encarnando com proselítico afã a mensagem espiritual de ‘Read the Bible’. Aproximavam-nas excêntricos arranjos cujo carácter agora se confirma nesta reedição do seu LP de estreia, de 1977 (o material já antologiado figura no seu segundo álbum), provando que o seu autor dependia do ambiente circundante sem jamais lhe manifestar filiação. Ou seja, cartografava afrobeat ou funk a pretexto de os explorar em terreno virgem. Em ‘Just One More Time’, por exemplo, o sintetizador descontextualiza raspas de guitarra ao estilo de Jimmy Nolen (da banda de James Brown), mas a rasurada malha torna-se um padrão rítmico que, ao longo de sete minutos, surge em contratempo e em alternância com a linha de baixo, trazendo à memória o cálculo espacial do que faziam John McLaughlin e Michael Henderson nas bandas elétricas de Miles Davis. Também ‘Forgive Us All’, uma lânguida balada que evoca Isaac Hayes e Duane Allman, ou ‘Your Kiss Stole Me Away’, que podia ter sido criada por um esteta do space disco (Space, Cerrone, etc) deprimido, indicam que mais interessante que o ponto de chegada de uma canção são os múltiplos caminhos que aí conduzem. E pouco mais se sabe de Rob: em 2009 o professor John Collins dava-o como proprietário de um restaurante e em 2010 Samy Ben Redjeb, da Analog África, escrevia que havia sido preso por evasão fiscal. Mas o mais importante será compreender que procurou o cosmos quando outros ansiavam por uma ligação à terra.

29 de outubro de 2011

Caetano e Maria Gadú “Multishow ao Vivo” (Universal, 2011)

Há 20 anos que, salvo um par de excepções, Caetano Veloso alterna a edição de álbuns de estúdio com gravações ao vivo. E, mais do que a adaptação para palco do repertório recente, interessa, naturalmente, apreciar nos registos dos espectáculos as marcas que o tempo deixou no de antanho. Por exemplo, em “MTV ao Vivo – Zii e Zie”, deste ano, a BandaCê transfigura ‘Trem das Cores’ (‘82) ou ‘Irene’ (‘69) e, já agora, sugere estar a um álbum de fazer o (bom) disco que merece. Isto, além das imprevisíveis consequências de interpretar de forma descontextualizada uma peça canónica, como ‘O Homem Velho’ (‘84) em “Multishow ao Vivo – Cê” (2007) ou ‘Araçá Blue’ (‘73) em “Noites do Norte ao Vivo” (2001). Para não falar da (ainda mais) rara ocorrência de encontrarem o seu destino numa situação relativamente instável aquelas pérolas cuja materialização parecia depender de rigoroso controlo laboratorial – ‘O Leãozinho’ (‘77) e ‘Sampa’ (‘78) em “Circuladô Vivo” (‘92) e quase tudo no inesquecível comício que é “Totalmente Demais” (‘86). Seja como for, até agora, e talvez por vaidade, nunca se deu propriamente o caso de Caetano se passear pelo mundo das suas canções como um desiludido demiurgo, incapaz de mostrar amor por aquilo que criou, fatalmente corrompido pelo passado. E o mínimo que se poderá dizer desta parceria com a popularíssima Maria Gadú é que cedeu a tutela da parte mais visível da sua obra – ‘O Leãozinho’ e ‘Sampa’, claro, mas também ‘Beleza Pura’ (‘79’), ‘O Quereres’ (’84), ‘Vaca Profana’ (’86), ‘Odara’ (’77) ou ‘Menino do Rio’ (’79) – a uma voz incapaz de a possuir – o que se traduz nos duetos. Sozinho, em 8 temas, vaza-se em redundância. Já Gadú, a solo em 7, desperdiça o profectício e exaura as suas ‘Bela Flor’, ‘Encontro’ ou ‘Dona Cila’ em tiques de estirpe unplugged.

22 de outubro de 2011

Tinariwen “Tassili” (V2/Co-Op, 2011)

O comprometimento dos Tinariwen com a causa tuaregue – e a extática aceitação por parte de certa imprensa ocidental de uma biografia que começava em campos de treino militar líbios – pareceu tornar-se na última década mais determinante quão mais procedimental se provou a relação do grupo com o rock. E talvez porque, para alguns, o seu reconhecimento enquanto símbolo de uma etnia oprimida reconduzia o género à sua primeva condição, tenham os saarianos aproximado o seu som à dureza das expressões dos seus rostos. Mas ainda que fiquem como o mais importante da sua produção momentos de “Amassakoul” (2003) ou “Aman Iman” (2007) em que uma atmosfera de desencanto se abatia sobre a união de um discurso de dissensão política com libertários rituais de transe psicadélico, a verdade é que dificilmente tornarão a gravar um conjunto de canções tão belo quanto no predominantemente acústico “Tassili”. É aqui que finalmente obrigam a concentrar atenções em músicos em vez de guerrilheiros e em homens em vez de povos. E logo o sublinham – e são as primeiras palavras que no disco se ouvem – quando, em ‘Imidiwan Ma Tennam’, cantam “O que têm a dizer, meus amigos/ sobre estes tempos difíceis que estamos a viver?”, como quem se interroga sobre o instante de incerteza no seio daqueles que há anos aconselham a manter-se unidos. Porque o seu maior triunfo artístico é amargo: implica, quando camaradas seus se preparam para nova insurreição no Mali ou representam a derradeira aliança de Gaddafi, a admissão de que, como qualquer um, só podem ser responsabilizados pelas suas acções. Sem poses, os Tinariwen no seu melhor fazem isto: tocam em torno de uma fogueira com amigos (no caso, Kyp Malone e Tunde Adebimpe, dos TV on the Radio) sobre aquilo que uns teimam em destruir enquanto outros não desistem de sonhar, como numa canção de Woody Guthrie.

15 de outubro de 2011

“Brand New Wayo: Funk, Fast Times & Nigerian Boogie Badness 1979-1983” (Comb & Razor Sound, 2011)

Embora quase se eclipsem quando consigo comparadas, antologias como “Lagos Disco Inferno” ou “The World Ends: Afro Rock & Psychedelia in 1970s Nigeria” abriram o caminho para o que, agora, permite “Brand New Wayo” entender: que, nos quatro anos a que se refere o seu subtítulo, na elusiva democracia de uma endinheirada Nigéria – a da Segunda República, de Shehu Shagari – se puseram em prática técnicas de produção dignas de uma superpotência cultural. O exemplar livro de 80 páginas que acompanha a compilação funciona como uma vibrante parábola de ascensão e queda civilizacionais (com os dividendos do boom petrolífero espalhados por incontáveis sacos azuis e um clima generalizado de festa a acompanhar o afundar do país em dívida), ainda que a música, essa, vá sempre a subir. E em capítulos dedicados a produtores, cantoras, bandas e editoras faz pulsar uma narrativa essencial para a compreensão de uma inflexível agenda de afirmação estética à escala global. Ao ponto de, numa inversão de paradigma, parecerem seus sucedâneos aqueles que de facto ditavam as modas: porque a síntese de funk e disco aqui ensaiada nada deve ao optimismo formal dos Chic de ‘Good Times’, à volúpia dos Heatwave de ‘Boogie Nights’, ao funcionalismo rítmico dos Kool & The Gang de ‘Jungle Boogie’, à sensualidade cativa dos KC & The Sunshine Band de ‘I’m Your Boogie Man’ ou ao oportunismo dos Earth, Wind & Fire de ‘Boogie Wonderland’. Na dilatação de uma fórmula que se imaginava já inextensível – e a que não será indiferente o artifício arquitectónico de Michael Jackson, o absurdo libertário dos Parliament ou o pragmatismo de Rick James e Cameo – é a isto que soam os instintos rapaces de uma era que teve em Kris Okotie, Joe Moks, Amas, Oby Onyioha, Dizzy K. Falola, Bayo Damazio ou Martha Ulaeto arautos de um futuro que nunca chegou.

8 de outubro de 2011

Seu Jorge “Músicas para Churrasco Vol. 1” (Cafuné/Universal, 2011)

Podia ser com uma capa destas que Umberto Eco tinha pesadelos quando no seu “Tratado Geral de Semiótica” denunciava as limitações da mimese icástica. Só na arbitrariedade lógica dos que seguem cegamente as convenções culturais faria sentido representar um título como este com letras em forma de salsicha organizadas em cinco espetos a simular as linhas de uma pauta. Dir-se-á que se trata antes da evocação de um tempo permeável ao kitsch – o dos anos 80 – em que Zeca Pagodinho ou a banda Fundo de Quintal praticaram com outra arte aquilo que, transformado em verbo, acabou por, anos mais tarde, se resumir às intenções de ‘Hoje Eu Vou Pagodear’: “beber uma cerveja bem gelada, dar aquela paquerada/ na loira, na pretinha, na morena, na gracinha, no design da bundinha da mulata”. Porque será no mínimo licencioso imaginar-se este Seu Jorge entregue aos prazeres da carne pelas tardes de domingo de um mundo pré-sida. Isso se, entretanto, e de facto, transferiu para a mulher o valor de que, precisamente em ‘A Carne’, falava com o grupo Farofa Carioca em 1998: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Comprovam-no versos de ‘Amiga da Minha Mulher’ (“vive dando em cima de mim/ […] se fosse mulher feia, tava tudo certo/ mulher bonita mexe com meu coração”) ou de ‘Japonesa’ (“vou dizer arigatô/ eu anteontem comi o seu sushi/ perdidamente apaixonado estou/ quero ser seu tamagoshi”), nos quais continua a criar personagens masculinas com uma sensibilidade de pornógrafo. Seguindo instintos populistas, este primeiro tomo de uma anunciada trilogia decalca os traços formais samba-funk de “Samba Esporte Fino” (a sua estreia a solo, em 2001) sem lhe importar nenhum do carácter. E se, aí, a qualidade da música ainda tornava possível ignorar a lírica, aqui, a sua redundância põe a descoberto o embaraço de cada frase.

1 de outubro de 2011

"AfroLatin: Via Cotonou" (Syllart/Discograph, 2011)

Sobre um terreno pelo qual se lançou luz e sombra em partes iguais, fértil para a prática do vudu e infame capital da Costa dos Escravos, já muito foi escrito (Bruce Chatwin, por exemplo, baseou “O Vice-Rei de Ajudá” na vida do mercador luso-brasileiro Francisco Félix de Souza). Já sobre a sua música popular, essa, pouco se disse. E não será o menor dos elogios esclarecer que, ao reincidir num conjunto de artistas – a que adiciona uma série de nomes inéditos em CD, como Nérose Rythm, Supermen de Cotonou ou Dynharmonie – já reunidos pela Analog Africa em “African Scream Contest” e “Legends of Benin” sob distinto pressuposto, lhe faz esta compilação o mais completo retrato até hoje. Porque se de Gnonnas Pedro, Poly-Rythmo, El Rego ou Black Santiago se deu então a conhecer uma exemplar produção no Benim extraída ao funk e ao afrobeat, quase nada se sabia acerca da sua igualmente modelar investida nos ritmos das Caraíbas. Provando-se agora que a aspereza imprimida em variações de motivos anglo-saxónicos não impossibilitava uma abordagem com maior elasticidade a formas mais melífluas e que foi precisamente à música cubana (há aqui versões de Beny Moré ou Arsenio Rodríguez) que melhor e durante mais tempo se adaptaram. Talvez tenha a ver com o retorno de tantos escravos do Brasil, com o tempero da herança cultural francesa no momento em que os vizinhos Gana e Nigéria subvertiam a britânica ou, quem sabe, seja consequência da adopção pelo regime de Kérékou do marxismo-leninismo enquanto factor de desintegração étnica, mas a verdade é que poucas antologias do período (de meados dos anos 60 a 80) testemunham esta ânsia colectiva em construir uma nova identidade. Ou, então, é por ser este o canto daqueles que, como diz a Poly-Rythmo em ‘Sèmassa’, acreditam que “nenhum de nós ficará para sempre debaixo de terra”.

24 de setembro de 2011

“AfroLatin: Via Kinshasa” (Syllart/Discograph, 2011)

Parte importante da produção de Grand Kallé Kabasele, Docteur Nico, Tabu Ley Rochereau e Franco sofreu durante anos o mais indecoroso tratamento às mãos da Sonodisc: três décadas de duvidosas edições de alguma da mais crucial música popular da segunda metade do século XX em que se ignoravam datas, confundiam frequentemente títulos e intérpretes, repetiam capas ou sequenciavam temas na rotação errada. Quando, após a falência da editora, Ibrahima Sylla – o mais famoso produtor africano e proprietário da Syllart – negociou com Kallé e Tabu Ley os direitos para relançar as suas gravações, desperdiçou, ao repetir muitos dos procedimentos da Sonodisc, a oportunidade de lhes restaurar a dignidade. Mas ocasionalmente, como em “Pont sur le Congo” ou “Congo 70: Rumba Rock”, sintetiza-as de forma apelativa para neófitos, embora o material aqui antologiado traia um conceito – a influência da música cubana em Kinshasa – teoricamente melhor servido por “Roots of Rumba Rock” (Crammed) ou “Cubanismo from the Congo” (Honest Jon’s). Só que de teoria está, possivelmente, farto quem desconfia não terem fim os tesouros da música congolesa dos anos 60 e sonha em conseguir um dia deitar-lhes a mão. Nessa perspectiva, ao incluir seis temas de Kallé (com a African Jazz e a African Team) e oito de Nico (com a African Fiesta e a African Fiesta Sukisa) hoje ausentes de qualquer colecção que cumpra os mínimos e ao evitar repetições significativas com as recentes compilações da Sterns – um tema por artista – com os treze de Franco (com a OK Jazz) e nove de Tabu Ley (com a African Fiesta e a African Fiesta National), consegue esta “Afrolatin: Via Kinshasa” apontar para a terra prometida. Peca apenas por omissões (Wendo, Rock-a-Mambo, Vévé, Maquisards, Verckys, etc) e alguma aleatoriedade que se esquecem mal se carrega no play.

17 de setembro de 2011

Tamikrest "Toumastin" (Glitterhouse, 2011)

Não chega a informação sequer a rastejar pelo fundo dos ecrãs durante as emissões dos telejornais. E, ao enésimo boletim de agências noticiosas sobre os conflitos na Líbia, poucos se darão ao trabalho de adicionar à complexa equação uma incógnita sobre a qual ainda menos se sabe. Mas é óbvio que com a queda de Gaddafi cai também por terra a esperança de muitos tuaregues; principalmente daqueles que, alistados na Legião Islâmica, sempre acreditaram que o seu povo teria lugar na futura nação do Sahel com a qual sonhava ainda o autocrata quando, em 1989, gritou de punhos erguidos à imprensa na oficialização da União Árabe do Magrebe: “de Marraquexe ao Bahrein!”. A verdade é que, por mais diligências que tenha nesse sentido feito o líder líbio (e não será de somenos importância tê-la armado e treinado militarmente), nunca se materializou um Estado para a tribo nómada. Contam-se por isso às centenas os tuaregues que fogem por estes dias à desgraça que se abateu sobre o regime do seu único investidor importante, tentando escapar para o Níger ou para o Mali, onde se ouvem já vozes de alerta receando nova insurreição. Ousmane Ag Mossa, compositor e vocalista dos Tamikrest, está cansado da guerra. Com 5 anos, durante a Rebelião Tuaregue de 1990, escondia-se de raides do exército maliano e ouvia cassetes com gravações dos Tinariwen, mas, ainda que se considere um revolucionário, não pegou em armas. Nas suas canções – exemplarmente gravadas por Chris Eckman (Walkabouts) e que se escutam como uma variante regional do ensaiado por Bob Dylan e Mark Knopfler em “Infidels” – escreve cálidos e poéticos manifestos em nome da liberdade e independência e reflecte melancolicamente sobre uma velha inquietação: pior do que perder de vista o que sempre foi seu será ter permanentemente à frente dos olhos aquilo que jamais possuirá.

10 de setembro de 2011

Group Doueh "Zayna Jumma" (Sublime Frequencies, 2011)

Nunca ficou claro se a Sublime Frequencies construiu um programa ideológico a partir da exclusão geográfica ou se terá sido ao contrário. De facto, o missionário zelo que emprega nas suas expedições pelo globo trai com frequência a problemática geral das culturas locais que vai encontrando pelo caminho mas raramente deixa de salvaguardar a superioridade moral da sua convicção. Daí, desde a sua criação, em 2003, privilegiar a editora a divulgação de música de minorias étnicas, de manifestos oriundos de focos de dissensão política, de frenéticos veículos de êxtase espiritual e dos mais surpreendentes impulsos de diluição de fronteiras estéticas naqueles que aspiram por divisões nacionais. Naturalmente, o Group Doueh, que faz tudo isso, assenta-lhe que nem uma luva. Activo há mais de 20 anos em Dakhla, a cidade costeira do Sara Ocidental, na Mauritânia, o grupo de Salmou ‘Doueh’ Bamaar, que já passou por Portugal, luta pela sobrevivência sarauí como, por exemplo, mais a leste no mesmo deserto, se dedicam os Tinariwen à autonomia tuaregue. E é evidente como, quer uns quer outros, adaptaram a sua produção a fórmulas mais hegemónicas assim que entraram em contacto com plateias globais. “Zayna Jumma”, em comparação com discos anteriores, sublinha essa dialéctica de duas maneiras: primeiro, através da acção de Hamdan e El Waar (filhos de Doueh, respectivamente, na bateria e no sintetizador), que, tema a tema, tanto estranham a tradição em que se inserem quanto, conforme os recursos estilísticos utilizados pelo pai (ora à guitarra elétrica ora ao tinidit, invariavelmente individualista), lhe repetem os preceitos mais ortodoxos; segundo, pela forma como a voz de Halima, mulher de Doueh, se sobrepõe a essa tensão de fundo, imune a qualquer variação, lembrando que compromisso e resistência podem ser faces de uma mesma moeda.

3 de setembro de 2011

Bombino "Agadez" (Cumbancha, 2011)

Numa cedência aos mais puros impulsos fantasistas inerentes à teogonia dos deuses da guitarra, a editora promove “Agadez” como a estreia de Omara ‘Bombino’ Moctar, embora admita também que outras gravações a precedem sem que refira aquela que primeiro lhe granjeou reputação no ocidente, “Guitars from Agadez, Vol. 2”. Essa antologia – em 2007 registada in situ por Hisham Mayet para a Sublime Frequencies – oscilava entre cordatas baladas acústicas e violentas torções à estirpe do blues-rock que se associa à música tuaregue, e, à sua luz, este novo álbum entende-se como a maturação de um estilo que atribui agora gravidade às antigas meditações e transforma em catarse o desprendimento outrora empregue em mantras elétricos. Mas o reconhecimento da discografia – o que explica a sua omissão dos materiais biográficos – padroniza um percurso que nada tem de normal. Nascido no deserto do Ténéré, no Níger, em 1980, Bombino viveu o exílio por duas vezes: em criança, durante a Primeira Rebelião Tuaregue, ao mudar-se com a família para a Argélia e, em 2008, já comprometido politicamente com a Segunda Rebelião Tuaregue, ao fugir para o Burkina Faso após a execução de dois membros da sua banda. Foi aí que o descobriu Ron Wyman, antigo colaborador de Michael Moore e Bill Maher, encontrando assim um símbolo para o seu documentário “Agadez, the Music and the Rebellion”. Wyman levou Bombino para os EUA, onde lhe produziu metade de um disco que, graças ao acordo de paz entretanto atingido entre os rebeldes e a junta militar que traça o destino do Níger, viria a ser terminado em casa. É esta a história. A música, essa, é quase tão boa: uma investida em modas que se imaginam milenares por um guitarrista capaz de evocar o mais seco em Ali Farka Touré, atmosférico em Manuel Göttsching (Ash Ra Tempel) e esotérico em Richard Thompson.

27 de agosto de 2011

Michi Sarmiento “Aqui los Bravos! The Best of Michi Sarmiento y su Combo Bravo 1967-1977” (Soundway, 2011)

À data destas gravações estava a Frente Nacional no governo, grupos paramilitares (FARC, ELN ou EPL) no mato e uma mão-cheia de cartéis em metástase pelo país inteiro, o que algo dirá sobre o sentido de urgência aqui observado. Mas não se trata apenas disso. Porque outros – como Fruko y Sus Tesos, Wganda Kenya ou Afrosound – melhor corresponderiam a um impulso antológico que procurasse traduzir musicalmente o perigo, a paranóia e o delírio que então se estendiam pela sociedade colombiana. Apuram-se os instintos dos organizadores Roberto Gyemant, Will Holland e Miles Cleret, que, por exemplo em “Colombia! The Golden Age of Discos Fuentes”, sempre privilegiaram a excentricidade artística em detrimento de uma mais abrangente representação cultural. Crucialmente, o saxofonista Michi Sarmiento garante a primeira sem prejuízo da segunda. Nascido em Cartagena em 1938, o filho do maestro Clímaco Sarmiento amadurece com a moda do merecumbé (a fusão do merengue e da cumbia celebrizada por ‘Pacho’ Galán) e com uma febre modernizadora que actualiza para salões de baile – e bordéis – danças como o porro ou o mapalé. À sólida educação e à experiência desde cedo acumulada dever-se-á uma inclinação formalista cujas bases permanecem contrariadas por uma imperiosa necessidade de subverter tradições – um dos seus primeiros êxitos foi ‘La Vaca Nueva’, resposta a ‘La Vaca Vieja’, antigo sucesso do pai. Inextrincavelmente associado à editora Discos Fuentes e a Joe Arroyo (falecido há um mês), absorveu o impacto da produção afro-cubana e nova-iorquina da Fania com a disposição de um acelerador de partículas, mas foi ultrapassado pela vertigem saloia do vallenato e tecnológica do reggaeton, miragens recentes de uma utópica visão por si patenteada.

20 de agosto de 2011

Chico Buarque "Chico" (Biscoito Fino, 2011)

Filmados nas sessões de gravação deste álbum, há, em “Chico: Bastidores”, depoimentos de Chico Buarque sobre as novas canções, os ensaios ou os músicos que o acompanham. O estilo desprendido com que apresenta o processo, a curta duração de cada vídeo e a enumeração de dados triviais servem fins promocionais – metade do material carregado para o endereço entre 20 de Junho e 20 de Julho, data oficial de lançamento de “Chico”, estava exclusivamente acessível mediante a apresentação de uma senha atribuída com a pré-encomenda do disco – mas pouco revelam sobre deliberações artísticas cruciais ao seu entendimento. Excepto – e só a incapacidade de tratar criticamente a informação reunida durante a iniciativa, aliada à necessidade de gerar conteúdos diários, explicará o indiferenciado tratamento que recebeu a afirmação – quando diz o cantautor: “conheço cada vez melhor o meu instrumento [o violão]. Posso ir onde eu não ia; encontrar um caminho que era insuspeitado por mim há seis anos atrás. Tenho mais liberdade: às vezes parece que posso fazer tudo com a harmonia de uma canção. O que aconteceu desta vez é que talvez eu tenha amadurecido mais cada composição. Nada está ali por acaso” (no clip “Amadurecimento”, de 4 de Julho).

Efectivamente, temas como ‘Querido Diário’, ‘Se Eu Soubesse’ ou ‘Sem Você 2’ possuem uma riqueza cromática capaz de lembrar as parcerias – enquanto letrista – com Tom Jobim e, obviamente, Edu Lobo, em que, como então se dizia, todas as sílabas cantam (num ensaio de 1966, intitulado “Balanço da Bossa Nova”, o maestro Júlio Medaglia salientava os recursos de um texto que “não apenas significa, mas também soa”). E talvez se possa atribuir a esse maior domínio técnico sobre a música um inesperado relaxamento nos códigos poéticos – depurados e economicamente empregues –, que, nem por isso, compromete a rigorosa métrica. Ou, quem sabe, correspondem estas canções ao momento em que o escritor Chico Buarque passou a escrever letras mais como compositor do que como romancista. Porque se despem totalmente de artifício os múltiplos diálogos que, nessa perspectiva, aqui se estabelecem, integrando este repertório o cânone buarqueano com maior naturalidade do que – excluindo partes de “Paratodos”, em 1993 – quase toda a sua produção dos últimos 25 anos.

Pode entender-se à luz da renovação desse espaço singular a frase com que, no site, se refere a ‘Essa Pequena’: “é… tipo um blues. Aqui é tudo tipo alguma coisa: tipo um baião, tipo samba, tipo uma valsa. É tipo um CD”. A referência ao blues por quem cantou ‘Bancarrota Blues’, ‘O Último Blues’ ou ‘Bolero Blues’ é eminentemente biográfica, e a canção (e o verso “Meu tempo é curto, o tempo dela sobra/ meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora”) reflecte sobre a paixão de um homem maduro por uma mulher mais jovem na altura em que o sexagenário Chico namora com a cantora Thaís Gulin, de 31 anos, reforçando-se a intertextualidade da leitura com a conclusão do narrador: “sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas/ o blues já valeu a pena”. O que permitirá concluir, com redundância, que este “Chico” é tanto sobre o homem quanto sobre a obra. Ou, mais precisamente, pela passagem do tempo pelo homem e do homem pelo tempo, testemunhada em ‘Rubato’ (onde surge ainda a literária temática do duplo actualizada para um meio, da eufemística ‘influência’ à ‘pirataria’, em que impera o roubo) e na proustiana ‘Barafunda’ (com frases como “Era Aurora/ não, era Aurélia/ ou era Ariela/ não me lembro agora” e “foi na Penha/ não, foi na Glória/ gravei na memória/ mas perdi a senha”), e na forma em que, por entre patenteadas valsas murchas e voluntariosas marchas, se desenham arcos temporais para o passado (‘Querido Diário’ recorda ‘Pedro Pedreiro’ e ‘Sou Eu’ evoca ‘Você Não Ouviu’, ambas há 45 anos atrás incluídas na sua estreia), até, com ‘Tipo Um Baião’, se atingir um ponto de elegante sincretismo em que tudo fica já tipo um Chico.

13 de agosto de 2011

“Highlife Time Vol 2: Nigerian & Ghanian Classics from the Golden Years” (Vampisoul, 2011)

O estado dos mercados é de tal volatilidade que não permite que se acumulem estas antologias: vão, pelo contrário, substituindo-se e distinguindo-se as que trazem novidades, ainda que se contem mais as retiradas de catálogo nos últimos 15 anos do que as presentemente disponíveis. Por exemplo, “Tempos, Ramblers, Uhuru: Giants of Danceband Highlife”, da Original Music (do etnomusicólogo inglês John Storm Roberts), teve vida tão breve nos escaparates que se torna irrelevante referir os três temas que possui em comum com esta “Highlife Time Vol 2” – lembra, talvez, que são hoje os instintos de coleccionadores a nortear o que se baseava outrora na Antropologia. Não admira, portanto, que aqui, como noutras recentes introduções aos seus anos dourados, se elenquem teoricamente os elementos do sincrético estilo – ritmos tribais, bandas militares, canções de marinheiros e escravos emancipados, melodias crioulas, hinos anglicanos ou swing – ainda que traia o material reunido as intenções dos seus organizadores (não se encontram, aliás, ligações entre a gravação de ‘27 de George Williams Aingo e a de ‘84 de Chief Stephen Osita Osadebe). Mas é precisamente por não seguir o guião à letra que gera mais-valias: E. T. Mensah influenciado pela exposição à rumba congolesa e ao ska, um tema de “Afro Jazz”, que, em Londres, juntou Guy Warren a Amancio D’Silva, Don Rendell e Ian Carr, outros (de Charles Iwegbue e Celestine Ukwu) a iludir catalogações e, naturalmente, as gentis bordaduras à guitarra e os trompetes com surdina que melam ouvidos nas bandas de Victor Olaiya ou Victor Uwaifo. Até se perceber que o que se ouve ao longo do tempo não é apenas a manifestação, que com o género nasceu antes das independências, do sonho de se viver na alta-roda, mas já, depois das guerras civis, a da saudade de sonhar.

6 de agosto de 2011

Marcelo Camelo "Toque Dela" (Zé Pereira, 2011)

Sem comprometer uma identidade artística dependente do impacto emocional da sua mensagem, Marcelo Camelo revelou no seu primeiro disco a solo (“Sou/Nós”) uma visão ocasionalmente fraccionária e elementar dos constituintes da canção, arriscando invulgares assinaturas rítmicas, produzindo estruturas melódicas maleáveis, dirigindo arranjos de aparente instabilidade e criando uma espécie de campo de acção em que cruzava infinitamente ideário pessoal e memória colectiva – como se, após uma década ao serviço dos Los Hermanos a trabalhar com terra e fogo, tivesse passado a compor apenas com água e ar. O método parecia a mensagem, e, de forma irrepreensivelmente sintética, dilatou as fronteiras de uma linguagem poético-musical que não se supunha tão expansível, até, como as cápsulas do tempo que os cientistas lançam ao espaço, não se vislumbrar já outro material que melhor o representasse. Agora, com “Toque Dela”, dá dois passos atrás e retoma a linha enunciada pelos últimos temas que escreveu para a sua antiga banda – como ‘Dois Barcos’ ou ‘É de Lágrima’ – num ponto de irremediável cesura: precisamente o que tem origem em “Sou/Nós”. Resultam daí vários paradoxos – de que não será exemplo menor a sugestão do novo álbum poder soar simultaneamente anterior e posterior ao seu predecessor – e, de facto, nenhuma leitura linear se lhe ajusta (o que não surpreende, vindo de quem, com os seus vídeos assinados enquanto Orquestra YouTube, se interessou por exercícios de entropia musical). Mas, ainda que não imune ao proselitismo e à egolatria, “Toque Dela” redime-se sempre que ensaia actos de imprevisíveis consequências.

30 de julho de 2011

Entrevista a Marcelo Camelo

Em “4”, o derradeiro álbum dos Los Hermanos, pressentia-se um emergente paradigma autoral cuja plena manifestação dependia da supressão da coerência estética e formal normalmente associada a bandas. Anunciado o hiato, em 2007, a acção dos seus principais compositores – Marcelo Camelo a solo e Rodrigo Amarante nos Little Joy – deu asas à ideia, mas foi Camelo, com “Sou/Nós”, que melhor a concretizou. Numa simultânea manifestação de géneros (pós-rock, samba, choro, música clássica) e tempos (mítico, histórico, psicológico, diegético), produziu um disco com a eternidade no horizonte, a que dá agora seguimento.

“Sou/Nós” continha canções que evidenciavam a problemática da sua organização. Em “Toque Dela” identifico inquietações semelhantes. Interessa-lhe explorar os limites da sua linguagem?
Estar no limite das minhas possibilidades é, para mim, um sinal específico de avanço. Exploro o que ainda não conheço como um método para obter novos resultados. Há uma certa orientação inicial para a diferença que se vai solidificando conforme o novo método se estabelece. O motivo disso posso intuir que é um amor por aquilo que não sinto, não sei, não vejo, nem ouço.

Apesar do muito que os une, que razões o levaram a distanciar formalmente este álbum do anterior?
São muitas razões somadas a dançar num jogo de forças. Esse jogo é fluido e leva-me para lugares muito diferentes em cada consideração. No entanto, o resultado deste jogo, que sempre se concretiza num disco, modifica aquele plano inicial de onde parti. De modo que ao final de um disco ou de uma tournée já não sou aquele que compôs as forças conflituantes que lhe estão na origem. É através desta modificação que a própria música causa na gente que o jogo de novas perguntas se estabelece. Por isso, as diferenças entre um disco e outro são as marcas da mudança. Representam a geografia deste percurso invisível. O tanto que os discos se parecem é o tanto que eu não mudei.

“Toque Dela” distingue-se também nos arranjos para instrumentos de sopro. Referindo-me à espessura tímbrica e cromática que proporcionam tuba, trombone, fliscorne ou sax barítono, porquê a abordagem?
Gosto de fazer uso do naipe em geral como um elemento estético quase separado do resto do conjunto. É uma peça que entra com protagonismo e autonomia, em oposição à ideia de um arranjo que se misture e esconda entre os elementos. Faço isso para manter a linguagem narrativa da voz – e assim a linha que conduz o resto – sem ter que usar em excesso a própria voz ou recorrer à letra, que tanto exige da nossa percepção. É como se mantivesse o fio da história que estou a contar sem ter de chamar demasiada atenção.

Partes de “Toque Dela” são dominadas por uma guitarra que não destoaria numa sequência entre Buddy Holly ou Shadows. Presumindo que não formularia as coisas exactamente nestes termos, pergunto-lhe antes: qual a importância da intuição no momento destas escolhas?
Eu só tenho intuição. É a minha maior aliada, a minha bússola. Acho que deve ser assim com todo mundo, não? Entendo muito pouco tecnicamente do que está acontecendo e sempre uso metáforas para tratar daquilo que estou cuidando no disco: “Um clima mais pôr-do-sol”, “o Elvis em cima de um Volkswagen”, “o vento num carro descapotável”. O que importa é o plano geral das coisas. Os detalhes estão ao serviço desta expressão maior que está bastante contida numa primeira audição. Foi neste lugar que tentei atuar neste disco, me opondo ao anterior onde voltei a minha intuição para um lugar menos localizado no tempo e no espaço.
Noto neste disco a presença metafórica do mar (há instrumentos que o imitam, crescendos e decrescendos que o lembram, abundam ritmos litorâneos, letras explicitam-no). Foi algo presente no seu espírito?
Acho que venho caminhando para esta ausência de pulso firme e pela escolha desta ideia rítmica mais fluida desde o primeiro disco. Boa parte do que faço tem a ver com um sentimento que não é representado pelo som que ouço na rua. É uma tentativa de ouvir mais uma música que bate de acordo com o compasso da minha percepção. Eu sinto em mim uma música com mais simultaneidade do que com elementos estanques. Sinto as ideias e os conceitos e as noções se sobreporem mais do que se anularem. E sinto as horas do dia, os minutos, os segundos, passando cada qual com o seu tempo, com a sua vontade. Tento fazer uma música que obedeça a este fluxo porque sinto que é um jeito de perceber as coisas que não encontra muita representação, principalmente na música pop, que é o que eu faço.

Continua a utilizar ritmos tradicionais (europeus, afro-brasileiros, caribenhos), mas raramente abandona o seu contexto específico enquanto compositor, quase como se definisse dois planos de ação simultâneos. É um diálogo que julga importante estabelecer nesses termos?
Acho que parte disso vem do canto imemorial da música regional, dos nómadas deste mundo que trouxeram para os cantos do planeta esses sopros ciganos, esses lamentos de três acordes, essa música que está no vento que bate há muito. E a parte que contextualiza isso tudo sou eu mesmo, em 2011, existindo. Não chego a achar importante manter-me de pé diante destes fenómenos rítmicos etéreos, simplesmente por nem sequer pensar nesse aspecto. Acho que a própria sinceridade ao tratar aquilo que você faz te localiza no tempo e espaço, e se você dialoga com forças mais antigas que a sua presença pode dar a entender que está ciente dessa conversa.

Algumas letras de “Toque Dela” revelam um grau de depuração poética inédito na sua obra. Quer falar-nos um pouco sobre o processo que o conduziu a textos de mais evidente disposição arquetípica, menor linearidade narrativa e sem notória dimensão política?
Venho, na hora de escrever, tentando desligar a parte de mim com senso crítico, com consciência direcionada. Misturar o momento de composição com o meu quotidiano, fazê-lo menos estanque da vida vivida. Tenho tentado me imbuir de uma falta de intenção que conduza à distração e que, por isso, consiga mergulhar fundo no meu inconsciente e trazer palavras e motivos que são mais reveladores da minha condição, mesmo para mim. Acredito que este método contém algo de extremamente político, no sentido mais pessoal de todos: o da política da transformação do indivíduo. Tento fazer isso não através de um ataque frontal às ideias e ao jeito de pensar das pessoas, mas de um jeito sinuoso, justificando as minhas melodias com ideias análogas a si e vice-versa. Para mim não há distinção entre o texto e a melodia. Tento estar distraído para uma enquanto faço a outra. Não escrevo sobre as coisas, escrevo com elas. Como a Maria Gabriela Llansol, que me acompanha.

Tão importante quanto as palavras que canta acaba por ser também a maneira de as cantar. A sua voz surge aqui como um instrumento musical que praticamente desfaz hierarquias. É uma opção consciente?
Acho que tem origem na descrença da palavra como signo de uma realidade objetiva. E também acho que é uma opção que se mistura com uma intenção que se mistura com aquilo que não se escolhe. Aquilo que é nosso. O canto é como a dança de alguém, como o timbre da voz, o olhar. É dessas coisas que moram antes da escolha.

Os seus discos a solo sublinham uma problemática interessante, pois revelam-no ainda mais permeável a colaborações e contribuições exteriores. Pode ainda o seu trabalho ser visto como uma manifestação colectiva?
Claro. Eu participo ativamente de tudo: da escolha das pessoas, das gravações, da capa. Mas sem o outro não existe nada, nem qualquer consideração. Fiz a música ‘Saudade’ para a Clara gravar [a pianista Clara Sverner, que em “Sou/Nós” interpretou dois temas a solo] por causa de uma música homónima que ela gravou da Chiquinha Gonzaga. Eu fiz aquela música para a Clara, por isso fui chamá-la para o disco. Acho que é um disco sobre as pessoas e o que causamos umas nas outras.

E em que medida o estabelecimento de uma nova parceria – penso concretamente no grupo Hurtmold – lhe permite desenvolver novas soluções estéticas?
É também uma aprendizagem não verbal. Repara como numa banda antiga os elementos se encaixam uns nos outros? No Hurtmold, no Los Hermanos, isso é trabalho de anos que se mistura com a vida. Aprendemos a tocar por causa do jeito do cara do lado tocar e ao fim de dez anos parece que a banda nasceu para tocar junta. Hoje já posso pensar numa composição que vá ao encontro do jeito do Hurtmold tocar. A informação que vem daí é matéria-prima para novas composições.

Por outro lado, há temas em “Toque Dela” em que toca todos os instrumentos. Talvez sejam as canções a ditá-lo, mas é importante para si ter a liberdade de determinar tudo o que acontece num tema seu?
Ainda venho lidando com as dificuldades e facilidades deste processo. Se você, por exemplo, faz o óbvio, ou seja, aquilo que a canção obviamente pede, é capaz de entrar num terreno de lugares-comuns. Muitas vezes o trabalho é uma busca pelo inusitado, por aquilo que não lhe soa natural. Essa busca é intelectual ou afetiva. Fazer música é um jogo de muitas peças. Sinto-me feliz por ter estado no Los Hermanos por tantos anos porque fazíamos de tudo e aprendemos muito uns com os outros. Mas, para mim, o mais importante tem sido poder estabelecer quando começar e quando parar. Poder controlar o tempo de cada processo. Porque as composições e a vontade de fazer um disco ou uma digressão são movimentos muito individuais. E muitas vezes contrariá-los é contrariar a própria razão de se fazer música.

O verso “Triste é viver só de solidão” traz à memória ‘Triste’, de Jobim, e “Eu não sou daqui, também marinheiro” lembra o ‘Marinheiro Só’ cantado por Caetano. É um desejo consciente de citar e envolver-se com a tradição ou manifesta antes uma técnica de associação livre?
Acho que é como aquilo do diálogo entre mim como compositor com o que é normativo, tradicional, estabelecido. É um contato que se dá na hora do silêncio, na ausência de intenções, por assim dizer. Não tinha tomado consciência dessas referências. São músicas que fazem parte do imaginário brasileiro. Estão aqui como estão os carros, as árvores, os amigos.

“Sou/Nós” influencia “Toque Dela” e o inverso também poderá ser considerado verdadeiro. Juntos, mais do que um estilo pessoal, sugerem um sistema de pensamento permeável a fenómenos extra-musicais?
Acho que a cabeça de um artista é sinestésica – a de todo o mundo, não é? Então não existe muito essa distinção na hora de apreender um fenómeno. Os fenómenos externos manifestam na gente um sentimento. É este sentimento que o artista toca. O método, o instrumento, são só detalhes oficiosos. Eles nos modificam também, mas o artista está antes disso.

As palavras mais repetidas em “Toque Dela” são: “amor”, “solidão”, “sol”, “noite”, “cidade”, “mar” e “despedida”. Perfilam de facto um ideário pessoal ou prefere que permaneçam imunes à estatística semântica?
Mais do que revelar um motivo acho que elas são pegadas de uma condição. No entanto, não está ainda claro para mim se, no jogo de imagem que propomos ao realizar uma obra, exclamamos o que somos ou o que queremos ser. Ou se as duas coisas podem ser apenas uma.

23 de julho de 2011

Sugestões de Verão

Renaud García-Fons “Méditerranées” (Enja, 2011)
Em “Breviário Mediterrânico”, Pedrag Matvejevic interrogou-se sobre o impulso em unificar aquilo cujas fronteiras “não se desenham já no espaço ou no tempo”. E, numa altura em que o Mediterrâneo é menos um mar do que uma dieta, o contrabaixista francês, com um plural no título que recusa a restrição contemplativa, abandona-se à viagem lembrando que cada ode marítima é uma canção de exílio.
Mário Lúcio “Kreol” (Lusafrica, 2011)
Um pouco como a ideia que Mário Lúcio tem do Homem, também a sua música se assemelha a muitas sem ser igual a nenhuma. E, em equivalente analogia, mais verdadeira se torna quanto menos se esforça para o parecer. Com Milton Nascimento, Pablo Milanés, Teresa Salgueiro ou Toumani Diabaté entre os convidados, esta travessia evoca a cultura crioula com que se pode sonhar em certas praias do Atlântico.
“La Habana Era Una Fiesta” (Vampisoul, 2011)
Esta antologia de emissões de rádio em Cuba, nas décadas de 40 e 50, divide-se entre versões do cancioneiro popular espanhol feitas por cubanos (Celia Cruz, Omara Portuondo ou Celeste Mendoza) e gravações de espanhóis em Havana (Conchita Piquer, Lola Flores ou Antonio Molina). O que salta à vista é não pertencerem bem a nenhum dos sítios e sim a um terceiro, perdido no mar: o da saudade.
“Fania Records 1964-1980: The Original Sound of Latin New York” (Strut, 2011)
Casa-mãe de uma luminosa sensibilidade pan-caribenha ampliada pelo prisma metropolitano da cidade que nunca dorme, a Fania acolheu cubanos, dominicanos, porto-riquenhos ou, crucialmente, nova-iorquinos (Barretto, Colón, etc), potenciando a experiência latino-americana e sonorizando a ‘verdade das ruas’ até ao ponto de a substituir. Um duplo CD que se ouve como uma crónica do (fim do) mundo.
Vinicius Cantuária & Bill Frisell “Lágrimas Mexicanas” (Naïve, 2011)
Mais do que sublinhar características comuns entre ritmos e melodias da América do Norte, Central ou do Sul, trata-se aqui de celebrar uma forma muito peculiar de as colocar do avesso. Cantuária e Frisell, como alfaiates que deixam costuras à vista, não aceitam diluir assinaturas pessoais em troca de uniformidade estética e fazem agora o que fez Arto Lindsay à bossa nova ou David Byrne à salsa.

16 de julho de 2011

“Cult Cargo: Salsa Boricua de Chicago” (Numero Group, 2011)

Para a história dos conflitos raciais de Chicago ficam os anos de 1919 e, após o assassínio de Martin Luther King, Jr, 1968. Porto-riquenhos na cidade recordarão antes 1966, quando, em Junho, a morte de Arcelis Cruz, às mãos da polícia, gerou um motim e culminou na imposição da lei marcial. Subsequentes reuniões entre Município e grupos comunitários decretaram medidas de combate à descriminação e fortaleceram politicamente associações como Latin American Defense Organization, Spanish Action Committee of Chicago, Caballeros de San Juan ou Congreso Puertorriqueño de Ayuda Mutua, fundado em 1951 por Carlos Ruiz. Este “Cult Cargo” é dedicado a si e às bandas que, sob a égide do congreso, lançou na editora Ebirac. Mas não surpreende que a sua história esteja por contar: afinal, possuía a música de Porto Rico os seus dignitários (com sede em Nova Iorque) e testemunhava Chicago o tumulto estético de Curtis Mayfield, Chi-Lites ou Earth, Wind & Fire. Só que breves instantes de ‘Plena Matrimonial’ (Ebirac All Stars) inspiram uma ideia que logo se confirma: esta estirpe salsera (fundindo son montuno, plena ou guaguancó) abominava o lugar-comum e mantinha-se orgulhosamente regional ainda que ambicionasse escapar ao isolamento geográfico. Comprovam-no La Justicia (numa densa versão do ‘Stone Flower’, de Jobim, que, de forma inesperada, ignora a gravada por Santana em “Caravanserai”), La Solución (que convida Mongo Santamaria, em ‘Mozambique’, a rever o ritmo criado por Pello el Afrokan), Under the Sun Orchestra (a evocar os Black Sabbath do tema homónimo), Típica Leal ’79 (em ‘Dónde estabas tú?’, perene nas vozes boricuas de Tito Rodríguez ou Héctor Lavoe) ou Juventud Típica ’78 (a lembrar o Ray Barretto psicadélico). Mas foi um tráfico criativo em migração forçada para os subterrâneos. Até hoje.

9 de julho de 2011

Omara Portuondo & Chucho Valdês “Omara & Chucho” (World Village, 2011)

Em Janeiro de 97, Omara Portuondo e Chucho Valdés gravaram um disco de duetos chamado “Desafios” – comovente decantação dos princípios do bolero até ao ponto da irredutibilidade, sublime ensaio sobre a poética amorosa na canção hispano-americana e elegante meditação sobre o provisório e o eterno – que, mal chegou às lojas, se viu irremediavelmente esmagado pelas toneladas de nostalgia derramadas por “Buena Vista Social Club”. De facto, provava-se irresistível para o grande público a simplificação ideológica de um projecto apresentado como um descongelamento cultural e assente no eufemístico discurso do ‘esquecimento’. A Omara, entre tantos outros, valeu uma ressurreição, mas não chegou para inverter a política norte-americana de embargo a Cuba. Um ano mais tarde chegavam ainda aos EUA os discos de Chucho na Blue Note através da EMI canadiana e uma ameaça de bomba obrigava a uma alteração de planos relativamente a um concerto em Miami de Valdés, Portuondo, Guillermo Rubalcaba e Compay Segundo, apontados por compatriotas expatriados como colaboradores do regime de Fidel. Catorze anos depois continua Omara com a vida complicada cada vez que chega a um aeroporto na Flórida, com manifestações de repúdio e jornalistas a perguntar, por exemplo, a razão de ter participado numa recente reunião da ALBA (atual Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) cantando para Hugo Chávez e estendendo a mão a um beijo de Raúl Castro. A questão, de certa forma, ganha pertinência numa reflexão estética: porque a verdade é que muita da produção de Chucho e Omara na última década aparenta derivar da renúncia ao exílio, sugerindo, no que isso implica de distanciamento do mundo, depender artisticamente da sua permanência em Havana. Ouvindo esta sua nova gravação será inegável concluir, também, que quanto mais longe da realidade dos outros se situam, melhor ficam.
“Omara & Chucho” abre com ‘Noche Cubana’ e ‘Llanto de Luna’, que em 59 Omara incluiu no seu primeiro LP. Alternar entre versões separadas por mais de meio século é como assistir a um interminável eclipse. Da voz desapareceu o brilho e a radiância juvenil, o controlo da respiração no prolongamento das notas, a precisão nas passagens de escala ou, inevitavelmente, a gaiatice de quem se julga imune à força das letras que canta. Por outro lado, ganhou-se tudo o resto. Se o arranjo original de ‘Llanto de Luna’ imitava o “West Side Story” e Omara, soberba, ridicularizava o sentimentalismo de uma frase como “llaga de amor que no puede sanar/ si me faltas tú”, agora, com um prelúdio de Chucho que cita a ‘Sonata ao Luar’, de Beethoven, a melodia é lançada ao mar e quase se afunda, com a grave voz da protagonista guiada pelas ondas, fatalmente ferida pela própria vida. A escolha dos temas, de César Portillo de la Luz e Julio Gutiérrez, inspira ainda a ideia, sustentada pelo alinhamento de ‘Y Decidete Mi Amor’ e ‘Nuestra Cobardia’, de José Antonio Méndez, ou ‘Recordaré Tu Boca’, de Tania Castellanos, que este se trata de um disco consagrado ao fílin (hispanização do inglês feeling), a corrente desenvolvida nos anos 30 e 40 enquanto reacção ao excesso de melodrama na música latina. É, nessa medida, uma ilustração da biografia de Omara, que com Elena Burke ou Moraima Secada foi uma das estrelas do movimento. Mas o seu triunfo maior reside na transcendência de qualquer género e na sujeição do repertório à experiência dos seus intérpretes. Poderá ser graças a Chucho – contido quando a palavra o exige e arrebatado quando dela se solta – que Omara gravou o seu mais belo disco, ou será – porque de uma branda entoação na garganta desponta a sombra do blues e de um vago rumor se produz uma elegia – o inverso verdadeiro. Ou, então, tudo não passa de um pretexto para dois velhos amigos dizerem que da sua dor só eles sabem; das alegrias também.

2 de julho de 2011

"Nigeria 70: Sweet Times" (Strut, 2011)

Numa edição de 1992 da Whole Earth Review, Brian Eno escrevia que a música nigeriana “minimizava harmonia e melodia em prol de combinações rítmicas extremamente ricas e complexas”, o que a tornava “extraordinariamente física, sexual e focada no movimento”, ao contrário, por exemplo, da música clássica europeia, que raramente se concentrou artisticamente no corpo (ipse dixit). O artigo, recheado daquelas intenções de que está o inferno cheio, deixou há muito de fazer sentido mas serve ainda para ilustrar o ponto de que a recepção crítica ocidental à produção africana só recentemente deixou de depender em exclusivo da experiência da alteridade. Para tal, ao longo da última década, contribuíram uma série de edições e a progressiva tomada de consciência de que o contacto com Fela Kuti ou King Sunny Adé marcava apenas a entrada na secretaria de um colossal edifício de música popular, no qual, para referir títulos recentes, tão depressa se tropeçou em material digno de figurar em futuras erratas de enciclopédias de rock psicadélico (“The World Ends”) como se escorregou em oleosos nacos de disco sound com mais gordura para queimar que os seus congéneres e putativos protótipos norte-americanos (“Lagos Disco Inferno”). Oportunamente, “Sweet Times” prova que, apesar de tanta investigação, o material inédito (só ‘Ire’, de Don Isaac Ezekiel, em “Afro Baby”, havia sido previamente antologiado) pode ainda igualar o já publicado. Confirmam-no Admiral Dele Abiodun, que em ‘It's Time for Juju Music’ revela uma visão cósmica do highlife, Tunde Mabadu, cujo ‘Viva Disco’ sugere a investida no juju que os irmãos Mizell deveriam ter feito, ou Eji Oyewole, capaz de, com ‘Unity in Africa’, insinuar que Eno, lá está, pode ter levado os Talking Heads de ‘Fela’s Riff’ a bater à porta errada.

1 de julho de 2011

Discos da minha vida (Jazz.pt)



Rúbrica "Discos da Minha Vida": de múltiplas formas (coleccionador, lojista, promotor de concertos, distribuidor, editor, o que quiserem), João Prado Santos tem nos últimos 15 anos vivido dos – e para os – discos. Paralelamente, primeiro em obscuras publicações, depois na revista Op e desde 2009 no semanário Expresso, dedicou-se à crítica. Foi-lhe manifestamente impossível escolher, como lhe pedimos, os 30 discos de jazz 'da sua vida'. Por isso, fez batota: elaborou quatro listas distintas e sorteou uma. Calhou-nos a dos pianistas, por ordem alfabética do nome próprio, com outra finta às regras na inclusão da caixa* de Art Tatum.

Al Haig “Trio” (Esoteric, 1954)
Andrew Hill “From California with Love” (Artists House, 1979)
Art Tatum “Complete Pablo Solo Masterpieces 1953-1955” (Pablo, 1991)
Barry Harris “Listen to Barry Harris” (Riverside, 1961)
Bill Evans “Waltz for Debby” (Riverside, 1961)
Cecil Taylor “Looking Ahead” (Contemporary, 1959)
Don Friedman “A Day in the City” (Riverside, 1961)
Duke Jordan “Flight to Jordan” (Blue Note, 1961)
Duke Pearson “Right Touch” (Blue Note, 1968)
Earl Hines “Spontaneous Explorations” (Stateside, 1964)
Elmo Hope “Quintet” (Blue Note, 1954)
Enrique Villegas “Introducing” (Columbia, 1955)
Eubie Blake “Rags to Classics” (Eubie Blake Music, 1972)
Hampton Hawes “Vol. 1: The Trio” (Contemporary, 1955)
Herbie Hancock “Crossings” (Warner Bros., 1971)
Horace Tapscott “Songs of the Unsung” (Interplay, 1978)
Jaky Byard “Parisian Solos” (Futura Swing, 1971)
Martial Solal “Nothing but Piano” (MPS, 1976)
Paul Bley “Alone, Again” (Improvising Artists Inc., 1975)
Phineas Newborn Jr. “Here is Phineas” (Atlantic, 1956)
Ran Blake “Breakthru” (Improvising Artists Inc., 1975)
Randy Weston “African Rhythms” (Le Chant du Monde, 1975)
Roland Hanna “Sir Elf” (Choice, 1973)
Sonny Clark “Cool Struttin'” (Blue Note, 1958)
Stanley Cowell “Blues for the Viet Cong” (Arista, 1977)
Steve Kuhn “Ecstasy” (ECM, 1975)
Thelonious Monk “Alone in San Francisco” (Riverside, 1959)
Walter Davis Jr. “Davis Cup” (Blue Note, 1960)
Walter Norris “Synchronicity” (Enja, 1978)
Wynton Kelly “Kelly Blue” (Riverside, 1959)

* No contexto da publicação da lista de 30 "discos da minha vida" que a Jazz.pt teve a cortesia de me pedir, esta caixa, que reúne as sessões a solo realizadas por Art Tatum com Norman Granz pouco antes de falecer, possui um caráter absolutamente excepcional. Não só não tem companhia na sua categoria - a das antologias recheadas de múltiplos discos - como, por sinal, se tratou do único lançamento em CD que aqui incluí. Todos os outros títulos a que fiz referência, nas suas edições originais, possuo na minha colecção em LP (o meu meio de reprodução fonográfica de eleição). E, de certa forma, este desvio à regra - associado a essoutro de, no caso, me limitar a escolher entre gravações de pianistas - permite-me que refira mais um par de condicionamentos de que tive perfeita consciência quando, a custo, decidi tornar efetiva uma lista destas: evitar a repetição de artistas; e restringir-me a álbuns, i.e., à era do longa-duração. Art Tatum (um pouco à semelhança de Eubie Blake) adquire assim um último estatuto simbólico: o de elo de ligação para as épocas dos pianistas de ragtime, stride ou boogie-woogie que tanto admiro, mas que tiveram essencialmente obra gravada em 78 rpm. A lista final - porque estas coisas são, de facto, e por natureza, muito volúveis - servirá, quanto muito, e num enquadramento em tudo específico ao período da sua elaboração, para representar um certo estado de espírito e um determinado conjunto de circunstâncias (preocupei-me, por exemplo, em conferir alguma variedade estilística e narrativa à lista; e de dar alguma primazia ao prazer que obtive sempre que tornei a estes discos; ou seja, é óbvio que não vai ser pela audição de "Crossings" que se terá acesso ao génio de Hancock ao piano, nem tão pouco através de "From California with Love", mais do que com qualquer um dos seus discos na Blue Note, se compreenderá o mais revolucionário em Hill). Enfim, perdoem-me a verbosidade e, ao mesmo tempo, alguma vacuidade, mas achei importante esclarecer que nem de perto, nem de longe se esgotam aqui as minhas preferências. Já agora, se pressionado, é possível que trocasse meia lista pelo Herbie Nichols dos dois volumes de "The Prophetic...".