25 de janeiro de 2014

Ahmad Jamal “Saturday Morning” (Jazz Village, 2013)



Por vezes, e não raramente quando se presume inequívoca, a crítica musical possui efeitos consuetudinários. No caso de Ahmad Jamal, porventura por só a muito custo se formar uma ideia exata acerca de sessenta anos de gravações, é frequente formularem-se as coisas em termos excecionais, salvaguardando-se o carácter único do seu percurso, sublinhando-se as distinções no seu estilo, propondo-se cada um dos seus álbuns como um irredutível sermonário. Ora, além de se provar errada, esta história do pianista alheio a modas e indiferente a categorias – que não as por si iniciadas – tem algo daquele provérbio do relógio parado que fica certo duas vezes ao dia. E dissimula a obediência a uma outra doutrina ainda mais perniciosa: a que defende que, no jazz, a contemporaneidade implica sempre algum tipo de compromisso. Ou seja, neste domínio, a crescente familiaridade com os objetos à disposição em determinada altura supõe-se perversamente subordinada a uma aspiração ao anonimato em tudo contrária à mitologia do género. Mas não terá sido apenas para fornecer matéria-prima futura a De La Soul, DJ Premier, Pete Rock ou Madlib que um dia Jamal tocou ‘Wave’, de Jobim, ‘Ghetto Child’,dos Spinners, ‘Trouble Man’, de Marvin Gaye ou ‘Black Cow’, dos Steely Dan. Na realidade, essas e tantas outras ilustres páginas de música popular que chegaram ao seu piano serviram um propósito especificamente ambíguo: revelar um inegável talento em tornar eloquente qualquer passagem melódica e simultaneamente moderar a expressividade harmónica nas suas inventivas interpretações. “Saturday Morning” – com o mesmo grupo de “Blue Moon” – é nessa medida exemplar, sedado até aparentar ser inerte, exploratório até parecer instintivo.

Ed Motta “AOR” (Membran, 2013)


Em dezembro de 2012, dizia Ed Motta no Facebook: “Foi um ano de grande realização e superação. Gravei um disco em português/inglês – [com] letras de Adriana Calcanhotto, Rita Lee e outras feras – [que] vai sair na Europa primeiro. Quer dizer: fecho o ano sem saber se o disco vai ser lançado aqui [no Brasil]. As gravadoras cagaram e andaram. [Os] que [nele] participaram, perguntam: ‘Ed, cadê o disco?’ Não sei. Tomara que saia, porque a versão em português é minha favorita.” Meses depois, “AOR” – sigla para 'album' ou ‘adult oriented rock’ que, nos anos 90, por lojas de discos na Grande Lisboa, inspirada pela aparência dos seus consumidores, gerou a caracterização ‘rock orientado para adúlteros’ – seria distribuído no Brasil, e em comum com a versão agora disponível no mercado português, que não as letras, saídas, estas, da pena de Rob Gallagher, possui os arranjos e umas fotos a lembrar os Logins & Messina de “Full Sail” ou os Crosby, Stills & Nash de “CSN”, com Ed combinando figurinos de “Magnum, P.I.” e “Sonny” Crockett. Apesar do que afirmou o seu autor, porque é de fantasia que se trata, e ainda que, em ‘1978’ ou ‘Farmer’s Wife’, quando comparados aos homólogos em português, se iluda o confessionalismo nestes poemas, a verdade é que “AOR” soa melhor na sua edição ‘internacional’. Nem que seja pelo facto de a autobiografia musical de Ed ser superior à escrita. Dir-se-á que sofre de Síndrome de Estocolmo face a “Aja”, dos Steely Dan. Mas recordem-se as produções de Lincoln Olivetti, essencialmente entre 1977 e 1983, e confirme-se que, ao contrário do tolo de que falavam os Doobie Brothers, Ed não se “esforça por recriar/ o que estava ainda por ser criado”. Mas, citando Mário de Sá-Carneiro, o “AOR” ideal, esse, não é este nem é o outro, mas qualquer coisa de intermédio.

“Vivaldi: Estro Armonico – Libro Secondo” (Alpha, 2013)



Recordem-se ‘As Quatro Estações’ para se reputar Vivaldi como um atento observador da natureza. Aquele que, com semelhante alternância nos estados de espírito e singular horror à entropia, viria a ilustrar a crónica bipolaridade veneziana. Aliás, muita da sua produção concertante ficou marcada por uma fundamental dissimulação: a da identidade das suas executantes, figlie del coro no Ospedale della Pietà, onde era maestro dei concerti. Relatos do período mencionam a imperiosa necessidade de, a fim de se deliciar com doces e com os sons que provinham de ocultas galerias como que do céu, se dirigir o avisado viajante ao orfanato mal desse entrada na República. Jean-Jacques Rousseau, ao serviço do embaixador francês na cidade, escrevia em “Confissões”: “Não concebo nada mais voluptuoso que […] estas exiladas meninas, de que apenas a música se permite atravessar as grades.” Não descansando enquanto não lhes foi apresentado, continuava: “Tremia de desejo ao dirigir-me à sua sala. ‘Venha, Sophia’… era horrorosa. ‘Entre, Cattina’… cega de um olho. ‘Vem, Bettina’… desfigurada pela varíola.” Vivaldi havia transformado camafeus em anjos. O que não será a menor das transcendentes propriedades que os solistas do Café Zimmermann (Pablo Valetti, David Plantier, Mauro Lopes Ferreira e Nicholas Robinson) encontram na segunda metade – concertos 7 a 12 – deste “L’Estro Armonico”, de 1711. Menos conseguidos os efeitos declamatórios nos nº10 (RV 580) e 12 (RV 265), há aqui momentos insuperáveis: o dolente largo e spicatto do nº11 (RV 565), os cromáticos adagio do 7 (RV 567), o majestoso larghetto do 9 (RV 230). Venha o libro primo e poder-se-á falar de uma interpretação de referência.

18 de janeiro de 2014

Mario Pavone “Arc Trio” (Playscape, 2013)



Num momento em que a edição fonográfica parece subordinada a uma complicada agenda de acordos multilaterais, a ligação de Mario Pavone à Playscape é praticamente arcaica. Mas uma que não convém subestimar, ou não tratasse de corroborar algo de elementar na ação do septuagenário contrabaixista: fidelidade. Aliás, amiúde referida para confirmar a validade da tese – mais do que a das Bodas de Ouro com a sua mulher Mary –, a história de como abdicou de uma carreira estável vem a lume sempre que se discute a sua música. Em 2002, numa entrevista ao “All About Jazz”, contou-a como quem relata uma epifania: “Licenciei-me pela Universidade de Connecticut em Engenharia Industrial e empreguei-me em grandes empresas. Até que, em julho de 1967, ouvi a notícia da morte de John Coltrane. [No dia 21] Levantei-me, deixei a pasta em cima da secretária e meti-me no carro em direção a Nova Iorque para assistir ao seu funeral, sabendo que nunca mais voltaria ao escritório.” O gesto é exemplificativo de um espírito gregário, subitamente implicado na pouco documentada atividade da Orchestra of the Streets, liderada por Bill Dixon, ou nas iniciativas de uma organização como a Creative Musicians Improvisers Forum, na qual militou ao lado de Leo Smith ou Gerry Hemingway. Não será, por isso, de estranhar que, ao apresentar esta combustiva sessão gravada ao vivo no Cornelia Street Café com Craig Taborn ao piano e Gerald Cleaver na bateria, sublinhe a influência que em si exerceram discos em trio como “The Floater”, de Paul Bley, “Smokestack”, de Andrew Hill, ou “Three Waves”, de Steve Kuhn, feitos, como este, de formas assimétricas, ritmos enigmáticos, melodias lacónicas, composições essenciais.

“World Psychedelic Classics 5: Who Is William Onyeabor?” (Luaka Bop, 2013)


Entre outras formas de o caracterizar, poderá falar-se do período de transição do disco sound para o do pós-disco sound como o da relocação – do coletivo para o individual – da experiência do êxtase. E no meio de muitas portas fechadas uma houve que se abriu: a que permitia distinguir uma sincera vocação de heterodoxia, como no caso de William Onyeabor. Na Nigéria, de onde provém, no entanto – especificamente na da Segunda República, de Shehu Shagari –, simbolizada na sucessiva capitulação de bandas como MonoMono, Tirogo, Ofege, Lijadu Sisters, Blo ou Funkees, tamanha dissociabilidade era, ao invés, marcada pela elevação do DJ à condição de messias. Isto é, no virar da década de setenta para a de oitenta, lançavam-se em Lagos os foguetes quando nos EUA – relembre-se a “Disco Demolition Night”, de 1979 – se apanhavam já as canas. Numa exemplar antologia consagrada a essa época, “Brand New Wayo” (Comb & Razor Sound, 2011), escrevia Uchenna Ikonne, seu organizador: “Suportámos o custo de uma hedionda guerra civil [a do Biafra] e começámos a tirar proveito da crise do petróleo [com origem no embargo da OPEP, em 1973], até que, finalmente, nos livrámos dos militares e demos por nós com o naira a valer o dobro do dólar! Não queriam que comemorássemos? Trouxemos cá Kool & the Gang, Brass Construction, Shalamar ou Skyy e deleitámo-nos nas discotecas com tanta elegância e opulência.” De facto, até a festa acabar – com o fim da democracia, em 1983 –, e ouvindo ainda “Nigeria Disco Funk Special” (Soundway, 2008) ou “Lagos Disco Inferno” (Academy LPs, 2010), torna-se difícil afiançar que, na altura, outra produção qualquer no mundo concentrasse de modo tão soberbo todos os vícios da sua era. Por tudo isso, e também pela inclusão de temas seus em “Nigeria70” (Strut, 2001) ou “World Psychedelic Classics 3: Love's A Real Thing – The Funky Fuzzy Sounds of West Africa” (Luaka Bop, 2005), há muito que se tomou o elusivo Onyeabor – que hoje se recusa a discutir outro assunto que não Jesus Cristo – como mais um esteta dedicado à eternização da febre de sábado à noite. Mas os esforços combinados de colecionadores contribuíram para que se tomasse consciência da sua singularidade artística. Ou seja, é agora claro que a sua música, autoeditada entre 1977 e 1985, estaria mais à vontade em compilações como “Disco Not Disco” (Strut, 2000), “Mutant Disco” (Ze, 2003) ou “New YorkNoise” (Soul Jazz, 2003) do que naquelas em que efetivamente figurou. O mais próximo que a Nigéria esteve de gerar o seu próprio Arthur Russell? Porque não? Contrariamente ao que se costuma dizer, não há apenas um só tempo e lugar para tudo.