28 de maio de 2011

“The Karindula Sessions: Tradi-Modern Sounds from Southeast Congo” (Crammed, 2011)

Segundo o FMI, Portugal está em 32º lugar na lista de países organizados por ordem do produto interno bruto nominal per capita; já a República Democrática do Congo, com US$186, está em 182º. No entanto estima-se que o valor dos seus recursos naturais se aproxime da soma dos PIBs da União Europeia e dos EUA. Por exemplo, os depósitos de urânio, cobre e cobalto a sudeste, em Katanga, têm servido de geopolítica moeda de troca, gerando crises (declaração de independência em 60, acções de rebeldes baseados em Angola em 77, operações do exército de Kabila nos anos 90) e, durante a Segunda Guerra do Congo, pairando como um abutre sobre as milícias. Lubumbashi, capital de província, é hoje um espelho da sociedade congolesa no pós-guerra, com os seus operários, mutilados, funcionários públicos, sem-abrigo, comerciantes, mercenários, consultores, desertores, missionários e uma produção artística reduzida a entulho. Vincent Kenis, que a norte gravou Konono Nº1 ou Staff Benda Bilili, aí documentou uma crua tradição – a karindula – que pouco fala sobre música e tudo diz sobre quem a ouve. Com material de arquivo – como o registado por Hugh Tracey na década de 50 – relaciona-se de forma convulsa e regressiva, trancada num labirinto formal de êxtase rítmico como se lhe fosse interdita uma identidade mais substantiva. Quatro bandas – cantores de olhos vidrados, dançarinos de pelve maleável, um zumbidor contrabaixo feito de um barril de petróleo e uma espécie de cavaquinho sem corpo – tocam por entre barracas junto a um esgoto a céu aberto; num gesto ritualista, um músico faz cortes na língua com uma lâmina de barbear e corre em direcção às crianças na assistência com sangue a pingar-lhe na t-shirt – elas ainda se assustam, depois riem-se, o mundo a ruir-lhes sob os pés.

21 de maio de 2011

Le Tout-Puissant Orchestre Poly-Rythmo “Cotonou Club” (Strut, 2011)

Findava a década de 60 e a música popular norte-americana alimentava-se a magia negra: em ‘Voodoo Chile’, Jimi Hendrix cantava sobre “jardins líquidos”, “luas vermelhas” e “minas de enxofre” enquanto mergulhava as cordas da guitarra num pantanoso blues de lama e plasma; em ‘Gris-Gris Gumbo Ya Ya’, Dr. John entregava-se numa lânguida cerimónia a um vaporoso e ritualista recitativo de receitas que incluíam “sangue de dragão”, “areias secretas” e “gatos pretos”; parecendo sintetizá-los, em ‘Miles Runs the Voodoo Down’, Miles Davis sugeria um jazz narcótico e possuído por todas as outras músicas que injectava directamente nas suas mais profundas raízes. Sem o conhecimento objectivo que a sua própria cultura, no Benim, estava impressa nessas matrizes, a Orchestre Poly-Rythmo ensaiava no mesmo momento uma expansão de ritmos tradicionais do vodu rumo ao soul e ao funk que, caso alguém por tal tivesse dado, teria alterado dramaticamente a produção musical dos últimos 40 anos. Mas, como se sabe, foi preciso aguardar pela edição de “Reminiscin' in Tempo” (PAM, 2003), “Kings of Benin Urban Groove, 1972-80” (Soundway, 2004), “Volume One: The Vodoun Effect, 1972-1975 Funk & Sato From Benin's Obscure Labels” (Analog Africa, 2008) e, sobretudo, de “Volume 2: Echos Hypnotiques From the Vaults of Albarika Store, 1969-1979” (Analog Africa, 2009), para que se desse enfim por aqueles que nem se supunha já entre os vivos. E se, de facto, nem todos efectivamente por cá andavam, não iriam – como Bembeya Jazz, Tom Zé, Orchestra Baobab ou Mulatu Astatke antes de si – desperdiçar os sobreviventes a hipótese de viver uma segunda vida. “Cotonou Club”, após os concertos que os levaram a correr mundo (passando por Portugal), é, primeiro, a celebração desse facto e, segundo, um testemunho de que o tempo do sagrado é eterno.

14 de maio de 2011

Brazil Bossa Beat! Bossa Nova and the Story of Elenco Records, Brazil (Soul Jazz, 2011)

Não havendo nada de intrinsecamente errado com a música reunida nesta antologia (até por entre as acrobacias vocais de Lennie Dale se aproveita o acompanhamento do Sambalanço Trio), a verdade é que trai uma a premissa da outra, que é a de celebrar a visão da bossa nova sugerida por Aloysio de Oliveira, fundador da Elenco. Logo porque as gravações do quarteto MPB-4 e as mais tardias de Edu Lobo, por exemplo, pertencem a um período em que eram outros a traçar o destino da editora, e, fundamentalmente, porque se concentra esta selecção em repertório afro-baiano (talvez pela errónea atribuição ao catálogo da Elenco, no livreto, de “Os Afro-Sambas”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, produzido pela Forma) e em canções de intervenção (com Nara Leão, em ‘Maria Moita’, cantando “O rico acorda tarde, já começa a resmungar/ O pobre acorda cedo, já começa a trabalhar” ou Edu, em ‘Upa Neguinho’, dizendo “Capoeira! Posso ensinar/ Valentia! Posso emprestar/ Mas liberdade, só posso esperar”). Ignora-se ainda o talento de Aloysio enquanto compositor e letrista (para tal bastava, em vez de os excluir de todo, ter coligido Maysa com ‘Dindi’, Dick Farney com ‘Inútil Paisagem’ ou Dorival Caymmi com ‘Só Tinha de Ser com Você’, parcerias com Jobim) e incorre-se numa vexante inexactidão: a presente versão de ‘Samba de Uma Nota Só’, cantada por Sylvia Telles, não é a que a cantora gravou para a Elenco em “The Music of Mr. Jobim”, de 1965, mas sim outra, cinco anos antes lançada pela Philips em “Amor em HI-FI”. Apesar de tudo, há também peças de inextinguível graça e irrepetível grandeza estética: ‘Berimbau’, por Vinicius e Odete Lara, ‘Coisa Nº1’ interpretada por Baden Powell num arranjo de Moacir Santos, ‘Negro’, por Lúcio Alves, e ‘Adriana’, da banda de Roberto Menescal com Eumir Deodato. Era por aí.

Roberto Menescal e seu Conjunto 'Cinco por Oito'