30 de dezembro de 2016

Wadada Leo Smith “America’s National Parks” (Cuneiform, 2016)


Falava serena e pausadamente, sem oscilações na voz mas com uma cadência algo oracular, como aquelas pessoas que cochicham segredos aos animais para os acalmar ou como um bom professor habituado à indiferença dos alunos. Não obstante a tendência esotérica e a capacidade para se deixar invadir por um vernáculo a que nem sempre se chegava, cada raciocínio seu era elegante, de elementos interligados, e quando se ria ficava espantado e feliz como uma criança gulosa que descobrisse um doce na boca. Conversámos pelo telefone por ocasião do Jazz em Agosto de 2015, festival em que viria a apresentar “Great Lakes Suite”, um notável disco a que dá agora espectacular seguimento. Perguntei-lhe se era normal comentarem consigo que fala de modo parecido àquele com que toca trompete e ele disse que sim: “Tem tudo a ver com o contexto rítmico criado. Basta pensar nos discursos do Dr. King! Aquele fraseado que ele tinha não impedia que se reconhecesse a sinceridade em tudo o que dizia – muito pelo contrário. Empregar certas palavras num discurso acarreta uma responsabilidade equivalente à de se recorrer a determinadas notas numa peça de música e, pelo recurso ao silêncio, o inverso não é mentira nenhuma. Mas são só veículos para melhor expressarmos o que queremos realmente dizer.” E Wadada Leo Smith tem tornado abundantemente claro o que tem a dizer. 

Inspirado pelos Parques Nacionais do seu país, “America’s National Parks” é disso um paradigma. Cá estão as referências diretas ao Parque Nacional de Yellowstone, ao de Yosemite, ao da Sequoia e ao de King’s Canyon, e almas impressionáveis apressar-se-ão a comparar os seus jatos de notas ao géiser Old Faithful, por exemplo, ou a fluência do piano de Anthony Davis a um arroiar de águas limpas ou a achar uma metáfora na divisória continental para aquilo que de repente desfaz um unínosso entre o contrabaixo de John Lindberg e o violoncelo de Ashley Walters ou a remeter para o impacto sonoro de dezenas de cataratas o que Pheeroan akLaff produz à bateria. E a encontrar nestas extraordinárias composições algo que se assemelhe a um ecossistema e a concluir que um momento mais magmático representa um rio de lava e que o lacónico espaço que também possuem lembra um dramático penhasco. Mas para que isso se prove rigorosa e exclusivamente verdadeiro têm ainda de imaginar Wadada de chapéu de pelo de mapache, a cruzar desfiladeiros numa canoa com uma “caneca de latão atada à cintura e uma mão-cheia de chá, pão e uma cópia de um livro de Emerson” na mochila, como acerca de John Muir escreveu o ensaísta John Tallmadge. Isto porque a outra metade dos temas do CD não poderia ter saído da pena de um naturalista. ‘New Orleans’, ‘Eileen Jackson Southern’ e ‘Mississippi River’ – que não se referem, de todo, a Parques Nacionais – provam que Smith não está a meditar sobre natureza mas a refletir a respeito da administração estatal do espaço público e do impacto que essa gestão tem nos cidadãos. Fazê-lo por intermédio de uma música que “desafia a tirania da forma” (para citar Inayat Khan, um místico caro a Wadada) é apenas apropriado. Na chamada, sem saber o reacionário arrepio que o futuro lhe reservava, concluía: “Acredito que a mudança estética pode antecipar a política!” Esta é outra contribuição. Não podia chegar em melhor hora.

“Urgent Jumping! East African Musiki Wa Dansi Classics, 1972-1982” (Sterns, 2016)


Lê-se em notas de apresentação que “a Sterns foi feliz ao garantir o acesso a um dos mais vastos e valiosos arquivos de matrizes fonográficas de clássicos da música popular da África Oriental”. Ou seja, chegando a “material que na sua esmagadora maioria não tornou a ver a luz do dia desde que há mais de quatro décadas foi editado”. E, logo a seguir, que John Armstrong, DJ há tantos anos quanto isso e organizador desta compilação, partiu de uma seleção de “1000 faixas, cujos conteúdos baralhou e tornou a dar até conseguir reduzi-la a cerca de 60 e, por fim, recorrendo a pouco mais que uma venda para os olhos, pioneses e instinto, abreviá-la para as atuais 27”. Dir-se-ia, então, que nada justifica que nessa lista restrita de escolhidos se incluam duas mãos-cheias de canções presentes noutras coletâneas recentes. A não ser que, à mesma produzindo os efeitos desejados, a forma como são dispostas em sequência se prove superior à de ensaios anteriores – para não falar da qualidade técnica de cada audiograma. É o que agora acontece. Um exemplo? O tema ‘Nakupenda Sana’, da Orchestre Conga Internationale, banda do duplamente expatriado Johnny Bokelo (nasceu João Botelho, em Luanda, e mudou-se para Kinshasa, onde fundou os Conga Succès, antes de partir para Nairobi), igualmente incluída em “Kenya Special: Volume Two”, da Soundway. Aí, inserido numa antologia que tenta fazer demasiadas coisas ao mesmo tempo para ganhar balanço, mal se dá por ele; aqui, beneficia de uma energia que se exerce por acumulação a partir do que vem antes e que se alastra exponencialmente pelo que vem depois. Num disco com tanto de queniano quanto de tanzaniano, até se perdoa o “musiki wa dansi” do subtítulo (a Sterns quer dizer muziki wa dansi, em rigor, a música de dança definida enquanto tal em Dar es Salaam), embora, neste contexto, Armstrong garanta que nada se ganha em distinguir uma coisa da outra. Tem razão: para se apreciar um jardim também não é fundamental saber-se de que é feito o adubo.

23 de dezembro de 2016

Melhores do ano (Best Classical, Jazz and World Music recordings of 2016)



De Lescurel: The Love Songs of Jehan de Lescurel (Ensemble Céladon, Paulin Bündgen; Ricercar)
Gubaidulina: Sonnengesang (NDR Chor, Philipp Ahmann; BIS)
Tallis: Spem in Alium (The Cardinall’s Musick, Andrew Carwood; Hyperion)
Abrahamsen/Griffiths: Let Me Tell You (Barbara Hannigan, Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks, Andris Nelsons; Winter & Winter)
Des Prez: Missa di Dadi (The Tallis Scholars, Peter Phillips; Gimell)
Schnittke: Penitential Psalms (Rias Kammerchor, Hans-Christoph Rademann; Harmonia Mundi)
Sorensen: It Is Pain Flowing Down Slowly on a WhiteWall (Frode Haltli, Trondheim Soloists; ECM)
Shostakovich: Cello Concertos (Alisa Weilerstein, Symphonieorchester des Bayerischen Rundfunks, Pablo Heras-Casado; Decca)
Schubert: String Quintet – Lieder (Quatuor Ebène, Gautier Capuçon, Matthias Goerne; Erato)
Beethoven: Symphonies 4 & 5 (Concentus Musicus Wien, Nikolaus Harnoncourt; Sony)

Menções honrosas: René Jacobs a comandar Güra, Im, Kohlhepp, et al, em “Johannes Passion”, de J. S. Bach (Harmonia Mundi); mantendo as coisas em família, Ophélie Gaillard e a orquestra Pulcinella num segundo volume consagrado a opúsculos de C. P. E. Bach (Aparté); Herreweghe e o Collegium Vocale Gent no “Sesto Libro di Madrigali”, de Gesualdo (Phi); o Orlando Consort dedicado à obra de Machaut, em “A Burning Heart” (Hyperion); na mesma editora, Steven Osborne com Feldman e Crumb e Marc-André Hamelin e o Takács Quartet no “Quinteto para Piano”, de Franck; o quarteto Silesian na integral de Bacewicz (Chandos); Vox Luminis em Requiems de Kerll e Fux (Ricercar); Isabelle Faust e o Il Giardino Armonico nos “Concertos para Violino”, de Mozart (HM); na Erato, dois intérpretes em estado de graça: Alexandre Tharaud a tocar Rachmaninov e Renaud Capuçon a estrear peças de Rihm, Dusapin e Mantovani.

Henry Threadgill/Ensemble Double Up “Old Locks and Irregular Verbs” (Pi Recordings)
Peter Evans Quintet “Genesis” (More is More)
Wadada Leo Smith “America’s National Parks” (Cuneiform)
Peter Brötzmann/Heather Leigh “Ears Are Filled With Wonder” (Not Two)
Mark Dresser Seven “Sedimental You” (Clean Feed)
Ivo Perelman/Matthew Shipp “Corpo” (Leo)
Akira Sakata, Johan Berthling, Paal Nilssen-Love “Semikujira” (Trost)
John Butcher, Thomas Lehn, Matthew Shipp “Tangle” (Fataka)
Michael Formanek – Ensemble Kolossus “The Distance” (ECM)
Fred Hersch Trio “Sunday Night at the Vanguard” (Palmetto)

Menções honrosas: por menos que se deem por eles, o ano fica marcado por abalos sísmicos da magnitude de “Momentum 1” (6 CD de Vandermark) e da meia dúzia de volumes de “The Art of The Improv Trio”, de Perelman; por falar em trio, a morder os calcanhares a este Top10 estão os de Lindberg (“Born in an Urban Ruin”), Eskelin (“Willisau – Live”), Schlippenbach (“Warsaw Concert”) e Rodrigo Amado (“Desire & Freedom”); dos arquivos vieram peças fascinantes do Spontaneous Music Ensemble ou de Jimmy Giuffre (Emanem), de Joe McPhee (Corbett Vs. Dempsey), de David S. Ware (Aum), de Peter Kuhn (NoBusiness) ou da orquestra de Thad Jones e Mel Lewis (Resonance), mas nada colocou a aparelhagem a levitar como o quarteto de Nathan Davis, Larry Young, Woody Shaw e Billy Brooks em “In Paris: The ORTF Recordings”; foram-se Paul Bley, Gato Barbieri, Don Friedman, Connie Crothers, Bobby Hutcherson, etc., etc.

Metá Metá “MM3” (Jazz Village)
Suthep Daoduangmai Band “Come My Brother, Let’s Go ToThe City!” (EM)
Hailu Mergia & Dahlak Band “Wede Harer Guzo” (Awesome Tapes From Africa)

Menções honrosas: a Dust-to-Digital foi à caverna mágica da Biblioteca do Congresso dos EUA e saiu de lá com um tesouro, “Music of Morocco: Recorded by Paul Bowles, 1959”; não querendo deixar créditos por mãos alheias, outros espeleólogos responderam com gemas como “Every Song Has Its End: Sonic Dispatches From Traditional Mali” (Glitterbeat), “Tanbou Toujou Lou: Meringue, Kompa Kreyol, Vodou Jazz, & Electric Folklore From Haiti 1960-1981” (Ostinato) ou “Kenya-Congo Connection: From the Archives of Audio Productions, Nairobi” (No Wahala Sounds), mas o milagre maior foi o da Resonance, que, através de “Getz/Gilberto ‘76”, deu ao mundo mais uma pedra preciosa de João Gilberto; por fim, quem quiser explorar o filão do afro disco nigeriano tem Tee Mac na Soul Jazz e as reedições de Berkely Ike Jones, Benis Cletin, Aleke Kanonu, Funkees, Harry Mosco, Jake Sollo ou Oby Onyioha na Presch Media.

17 de dezembro de 2016

Mal Waldron “The Complete Remastered Recordings on Black Saint & Soul Note Volume 2” (Cam Jazz, 2016


Era mais um, entre dezenas de expatriados, em busca de oportunidades e, de certo modo, a beneficiar do embrião da discriminação positiva (“[Nos EUA] Em comparação com músicos brancos de estatuto semelhante, recebíamos menos. Na Europa era ao contrário”, disse, em 1982, a Jon Pareles). E quando aterrou em Munique, em finais da década de 60, uma nova geração de produtores alemães de cabelo relativamente comprido, caso os conhecessem, tê-lo-ia recebido no aeroporto com estes versos de Pessoa: “E ergue-te do fundo de não-seres/ Para teu novo fado!”. Seja como for, Mal Waldron respondeu à chamada, gravando “Free at Last” para a ECM, “The Call” para a JAPO e “Plays the Blues” e “Black Glory” para a ENJA, os primeiros números de série de cada uma das recém-formadas editoras da cidade. Para esta espécie de teólogos da libertação, a sua chegada foi tão importante quanto o regresso de Roque Santeiro a Asa Branca. E a verdade é que havia uma aura de superstição em torno do pianista. Waldron tocava como um asceta, avesso ao virtuosismo, introvertidamente. O seu pianismo, neste período, e, no fundo, até à sua morte, em 2002, trazia à memória aquele lugar-comum associado à escultura, de que para alcançar o resultado pretendido bastaria cinzelar o que estivesse a mais num bloco de mármore. Numa entrevista de 2001 a Ted Panken recorreu a uma figura equivalente: “Comecei com o tronco de uma árvore e fui talhando, talhando até encontrar o palito perfeito.” Na sua discografia provou uma série de vezes ter atingido esse grau de excelência. Relembra-o, agora, esta caixa – que propõe completar a sua integral na Black Saint e Soul Note (“Quintets” saiu em 2012) embora continue a deixar de fora “Remembering the Moment” (1994) – com 11 CD (a maior parte deles sob a tutela de outros músicos, como “Six Monk’s Compositions”, de Anthony Braxton, ou “Sometimes I’m Blue”, de Kim Parker), entre os quais se destacam duas subestimadas obras-primas: “Sempre Amore”, com Steve Lacy, e “Update”, a solo.