28 de março de 2009

Franco & Le TPOK Jazz "Francophonic"

Este primeiro volume da retrospectiva de Franco na Sterns parte da sua entrada em estúdio em 1953, com 15 anos, vindo do gueto, e avança até 1980. Começando na sombra do que faziam Dr. Nico, Tabu Rochereau ou Manu Dibango na African Jazz de ‘Grand Kalle’, passando pela recondução da rumba congolesa à sua raiz africana e terminando nas libertárias sessões no restaurante-discoteca-estúdio Un Deux Trois, em que mais de 20 músicos se organizaram na Tout Pouissant OK Jazz, o que se ouve um impacto avassalador na música africana (francófona, lusófona e anglófona) dessas três décadas. Ninguém personificou melhor que François Luambo Makiadi o que significou a libertação do jugo colonial, mantendo-se ainda assim permeável ao mundo e sugerindo uma inexorável visão de autor. Tudo com uma ambígua relação com o regime e uma consciência desenvolvida entre os impulsos mais materialistas e a mais básica procura de afecto. Um processo histórico em pleno andamento finalmente organizado de forma inteligente. Venha o segundo volume.

21 de março de 2009

Entrevista a Renaud Barret (coprodutor de "Très Très Fort", de Staff Benda Bilili)


Definem a Belle Kinoise como uma produtora. Mas o Renaud [na foto, o segundo a contar da direita] e o Florent [o primeiro a contar da esquerda] parecem estar a tornar-se realizadores de documentários. Há algum plano?
Não, nada disso. Aliás, nem nos consideramos propriamente documentaristas. É curioso, porque nos festivais de cinema entramos em competições oficiais num género que nem conhecemos. Produzimos dois álbuns, mas também não somos produtores. A nossa inspiração vem directamente das pessoas com que nos cruzamos. E, na realidade, tudo isto está a acontecer por uma série de acasos e por sermos muito teimosos.

Mas como é que foram parar a Kinshasa?
Em 2003, quando trabalhava como fotógrafo, fui enviado por uma revista para a fronteira entre a República Democrática do Congo e o Rwanda na ideia de fazer uma reportagem sobre as crianças-soldado. Por sorte fiquei uma semana em Kinshasa e conheci uma série de músicos de rua absolutamente espantosos. Comecei a acompanhá-los e a conhecer as suas famílias e os guetos onde viviam. Foi arrasador. A música estava por todo o lado: reggae, hip hop, funk, blues, rumba, tudo misturado com canções e estilos tradicionais e tocado em instrumentos construídos a partir disto e daquilo. Foi então que liguei ao Florent dizendo-lhe que era preciso fazer qualquer coisa. Desde então, nestes últimos cinco anos, temos vagueado pela cidade um pouco como estes músicos. E a boa notícia é que acho que ainda não vimos nada.

Qual foi o vosso primeiro projecto?
Começámos a filmar “Jupiter’s Dance” em 2004. O filme é uma espécie de viagem pelos guetos de Kinshasa através do olhar de Jupiter Bokondji, um artista extraordinário que criou um género próprio, o ‘bofenia rock’. Na mesma altura decidimos gravar-lhe um disco: “Man Don’t Cry”. Fizemos tudo do nosso bolso sem nenhum tipo de apoios e ainda começámos a ser fortemente criticados. Mas em 2007 conseguimos editar comercialmente um DVD e um CD com estes conteúdos. Aos poucos, o trabalho foi sendo descoberto e ganhou exposição em alguns Festivais de Cinema.

E isso permitiu-vos avançar para o segundo filme?
Sim. Ainda em 2006, durante a campanha eleitoral, começámos “Victoire Terminus”. É sobre um grupo de mulheres que sobrevivem graças ao boxe. Os torneios são feitos no mesmo estádio em que lutou Muhammad Ali. Levámos o filme ao Festival de Berlim. E em 2008, durante o Festival do British Film Institute, em Londres, recebemos o prémio Grierson.

E o Staff Benda Bilili?
As primeiras gravações que temos são de 2005. Estamos a acompanhá-los há quatro anos, por entre muitos altos e baixos. A nossa intenção é gravar a última sequência do filme num grande Festival Europeu de Música do Mundo este Verão. Precisamos de um final feliz. Entretanto fomos co-produtores deste CD para a Crammed.

Quão difícil – em termos humanos e logísticos – tem sido o processo? Começando do princípio, como é que descobriram o Staff Benda Bilili?
Foi completamente por acaso, ainda durante as filmagens de “Jupiter’s Dance”. Já nos tinham falado de uma banda de paralíticos e deficientes motores completamente loucos, que tocavam uma espécie de blues diferente e que normalmente dormiam pelas ruas. Até que numa noite, no bairro La Gombe, lá estavam eles a pedir à porta de um restaurante caro, poiso habitual dos expatriados brancos de Kinshasa. Na altura não ligámos muito mas depois do jantar continuávamos a ouvir a música pelo ar. Fomos à sua procura. E ficámos apaixonados pelo que encontrámos.

Mas o processo tem sido muito difícil. Na altura, ninguém (Vincent Kenis incluído) queria sequer ouvir a música de um grupo de paraplégicos e meninos de rua. Nós fomos filmando o seu dia-a-dia sem saber bem o que fazer com aquilo. Era duro. A sobrevivência dos membros do grupo, os miúdos a dormir no chão, as histórias das prostitutas de um dólar, os soldados completamente drogados, ladrões por todo o lado. E a banda nem nos queria aceitar. Eles são duros – têm de ser – e orgulhosos. Ninguém consegue imaginar aquilo por que passaram, o que tiveram de fazer para garantir alimento para os seus filhos. Tivemos mesmo de mergulhar no mundo deles de forma a conseguir contar uma história verdadeira. Mas é impossível permanecer imune à brutalidade e sofrimento a que já assistimos.

Mas acabaram por se conseguir infiltrar?
Sim. E percebemos que aquilo que o Staff Benda Bilili mais queria era gravar um disco. Entre 2004 e 2005 contratámos técnicos de som europeus, pagámos-lhes os bilhetes de avião para Kinshasa, arranjámos sítio onde ficarem e começámos as gravações. Correu tudo mal. Os instrumentos dos músicos foram roubados, alguns deles estavam sempre bêbados demais para conseguir cantar e tocar, o centro de acolhimento nocturno em que as suas famílias dormiam ardeu, enfim: foi um pesadelo e um desastre financeiro. No Verão mostrámos imagens da banda e o pouco que se aproveitou dessas sessões ao Vincent Kenis, que tinha estado em Kinshasa a gravar o Konono Nº1. Ficou de boca aberta. Gravou logo uns temas mas tivemos de esperar até ao Verão seguinte para acabar o álbum.

A banda está finalmente optimista? Sentem que as suas vidas vão mudar?
Uma das coisas que sempre me impressionou no Staff foi a convicção que sempre demonstraram em que um dia se iriam tornar conhecidos e viajar pelo mundo. Agora só falam em juntar dinheiro suficiente para construírem casas para os seus filhos e conseguirem matriculá-los em escolas. É o seu maior desejo. Fora isso, sentem o mesmo que as outras pessoas em Kinshasa: que nada realmente mudou desde as eleições de 2006 e que em termos económicos a situação só se está a agravar. Mas Kinshasa ainda provoca esta sensação ambígua de desespero e encanto. Beleza no caos ou caos na beleza, não sei.

Para terminar: a maior esperança nas ruas é?
Políticos honestos e qualificados.

Que cinco coisas o fizeram mais feliz desde que aí chegou?
Ter cinco sentidos.

Que cinco coisas o fizeram desejar estar noutro lugar?
Nunca desejei estar noutro lugar.

Staff Benda Bilili "Très Très Fort"

 
No seu livro sobre Mobuto, “In the Footsteps of Mr Kurtz”, Michela Wrong descreve o paradoxo entre a pobreza nas ruas de Kinshasa e o luxo nas discotecas de Paris, com Papa Wemba, Koffi Olomide ou Kanda Bongo Man embrulhados em Gaultier. Mentes preocupadas exigiam rapidez na pista de dança e pelos anos 80 e 90 a música no Congo resumiu-se a um plano de fuga. Tudo foi piorando com Wenge Musica, Awilo Longomba ou Werra Son. Agora, inesperadamente, refunda-se a energia criativa mais poderosa do continente enquanto manifesto civilizacional. E será necessário relembrar Franco e a OK Jazz cantando a infância da independência congolesa, há 50 anos, para se encontrar outro momento capaz de traduzir da mesma maneira o que aí significará almejar a liberdade. É um regresso à rumba – esse eco de outro eco – e à memória de African Jazz, Nico Kasanda ou Tabu Ley Rochereau. E a rigor: com ritmos e palavras retirados a James Brown e o essencial da mensagem de Bob Marley. Guitarras, baixo acústico, percussionistas e um solista sem precedentes, gravados à noite, sob as árvores, por um Vincent Kenis que por mais mundos que inventasse nos Aksak Maboul nunca haveria de ter chegado a este. Continuem a tocar ao fim da tarde e pode ser que voltem os animais ao Zoo e as cores às acácias.

Staff Benda Bilili

O Reality Show anunciaria qualquer coisa como: ‘Directamente das ruas de Kinshasa para o Mundo’. E, num momento em que a questão da sobrevivência regressa à agenda económica global, certamente não lhe faltaria audiência. Porque de outra coisa não trata este grupo de paraplégicos e meninos de rua quando espalha a notícia de que é preciso ver para lá das aparências (‘benda bilili’, no dialecto lingala, quererá dizer ‘revelar o que está oculto’). Que a mensagem chegue de uma nação – a República Democrática do Congo – em que tradicionalmente se recorre à guerra e ao terror para se escapar à brutalidade e violência dos tempos de paz só a tornará mais importante. Mas se o Staff Benda Bilili surge à partida como um inevitável clamor, não demora muito a revelar-se por aquilo que também é: a máquina funk dos sonhos de James Brown. O processo implica orgulho, esperança, celebração da vida e, essencialmente, a soberba de quem sabe ser senhor de si próprio. Não será dizer pouco daqueles que quase todos os dias saltam de camas de caixas de cartão para bicicletas feitas à medida e partem em busca de alimento pedalando com as mãos. Que a necessidade de se chegar ao dia seguinte se torne em si um acto histórico não será novidade em África, mas nem sempre o impulso se confunde com uma tendência espiritual e muito menos – ao derivar agora dos que se intitulam ‘jornalistas das ruas’ – resulta de uma imposição de consciência. A lição é que a auto-comiseração é uma forma de suicídio.

Staff Benda Bilili é um grupo de constituição variável mas que neste momento reúne uma dezena de pessoas. Os seus membros fundadores, Ricky Likabu e Coco Ngambali, conhecem-se há 30 anos e, tal como o núcleo central da banda, são paraplégicos – handicapés, vítimas de poliomielite. Dormem nos terrenos em redor do Jardim Zoológico de Kinshasa e partilham o espaço com shégués. Na cidade, handicapés e shégués são há muito aliados. Em troca de protecção, conselho e alimento, as crianças ajudam os paralíticos a deslocar-se por entre o trânsito e, fundamentalmente, a carregar as motocicletas com bens. É essa, aliás, a sua fonte de rendimento histórica. Isentos de impostos na década de 70, os handicapés tornaram-se responsáveis pelo transporte de mercadorias entre Brazzaville (capital da República do Congo, na outra margem do rio Zaire) e Kinshasa. Todas as manhãs, na praia de Ngobila e por entre os armazéns da zona portuária, abastecem-se de arroz, leite, farinha, açúcar, cigarros, bebidas alcoólicas ou margarina enquanto aguardam o primeiro ferry. O que falta numa cidade trazem da outra. Roger Landu, de 17 anos, é um shégué. Foi adoptado por Ricky em criança e é responsável pela característica estética mais distinta da banda. O instrumento que inventou – o santongé, pouco mais que um fio eléctrico atado entre um cabo de madeira e uma lata vazia – provoca um tumulto de glissandos, fazendo deslizar todas as notas possíveis entre as melodias e harmonias produzidas pelas vozes e guitarras. Parece ter sido por si criado o princípio de atingir o máximo de resultados com o mínimo de recursos.

Há pelo menos 50.000 shégués em Kinshasa. A palavra tem origem discutível mas virá da entrada na capital, em 1997, de milhares de crianças-soldado nas fileiras do exército rebelde de Laurent-Désiré Kabila, e da associação do nome de Kabila ao de Che Guevara (o revolucionário cubano tinha estado no Congo em 1965). São órfãos, vítimas de maus tratos, crianças em fuga ou desertores de milícias, e apenas mais um dos grupos em risco num país em que a esperança de vida ronda os 50 anos e no qual morreram mais de cinco milhões de pessoas nos conflitos da última década. Recorrem a todo o tipo de expedientes e personificam hoje o eufemístico ‘Article 15’ instituído em plena cleptocracia da era Mobutu: a doutrina do desenrascanço enquanto modo de vida. É a única visão da lei congolesa aceite nas ruas de uma das cidades com mais crime do mundo. Renaud Barret e Florent de la Tullaye sabem-no bem – a sua Produtora, Belle Kinoise, opera em Kinshasa desde 2003. Durante a campanha eleitoral de 2006 filmaram “Victoire Terminus”, o dia-a-dia num torneio feminino de boxe organizado por mulheres de bairros pobres que fugiram assim à prostituição. Depois, na rodagem do documentário “La Danse Jupiter”, seguiram Jupiter, o líder dos Okwess International, pela periferia. O cantor revelava que a única constante positiva na vida dos congoleses foi a música – como exemplo lá estava Staff Benda Bilili. Renaud e Florent já escreveram no seu MySpace que o encontro se deu de forma fortuita, mas desde então têm-nos filmado sempre que possível e colocado os resultados no YouTube. Foi assim que os descobriu Vincent Kenis – o produtor da editora Crammed que havia gravado Konono Nº1 e Kasaï Allstars. Agora, com a saída de “Très Très Fort” – que inclui alguns desses vídeos – e planos para uma digressão europeia, prepara-se um filme sobre a banda.


Não será difícil olhar para Staff Benda Bilili enquanto metáfora para séculos de História. O seu imenso potencial depende apenas da forma em como for explorado. E se as vidas dos seus músicos efectivamente se transformarem, não será a primeira vez em Kinshasa que vence quem mais tempo passou encostado às cordas – Muhammad Ali assim o comprovou em 1974, no Rumble in the Jungle. Mas nesta terra de onde saíram escravos para o Novo Mundo, borracha para a indústria automóvel norte-americana, urânio para as bombas de Hiroshima e Nagasaki, de onde vêm ainda diamantes, cobre, ouro, cobalto ou coltan – o mineral sem o qual não se fabricam computadores portáteis e telemóveis –, onde se perderam Joseph Conrad ou V. S. Naipaul, em que se matou, pilhou e violou como em nenhum outro lugar, e que ganhou crónica ocidental desde que Diogo Cão lá deixou um Padrão, a esperança tem tendência a morrer sempre que cai a noite.

14 de março de 2009

Roberto Carlos e Caetano Veloso "E a Música de Tom Jobim"

Desfazendo um par de equívocos mediáticos, primeiro, este não é um DVD de duetos (Roberto e Caetano cantam juntos quatro temas) e, segundo, os espectáculos que lhe estiveram na base, no modelo revista-light dos ‘RC Especial’ (com arranjos cénicos melhor apreciados de olhos entreabertos), foram para além da celebração da bossa nova. Porque se a bossa é João Gilberto então Tom terá de ser outra coisa qualquer. E muitas destas canções, algumas no calendário (‘Tereza da Praia’, ‘Caminho de Pedra’ ou ‘Por Causa de Você’), transcenderam o género. Mas a inspiração de um talento maior que qualquer estilo não garante um diálogo aberto com a eternidade e no cotejo pouco mais se ganha que o reconhecimento de distintos paradigmas de interpretação. Caetano, demasiado gramatical, insiste em tensos tombos de escala – e se o fatalismo de ‘Inútil Paisagem’ e ‘Por Toda a Minha Vida’ justificam rigidez no canto, tornou austeras as doces melodias de ‘Ela é Carioca’ ou ‘Meditação’. O Rei, em ‘Samba do Avião’ ou ‘Eu Sei Que Vou Te Amar’, está como o mergulhador que só em saltos anulados consegue entrar na água sem splash. Os dois, condutores de Domingo pela estrada do sol, olham saudosos para o mar, encontrando placidez onde já só está a falta de vida.

7 de março de 2009

Chico Buarque "Essencial"

Os sinais da crise não são de agora. E já não há ‘tubarões’ na indústria fonográfica. Ainda assim, nada aguça tanto velhos instintos quanto a visão de um cadáver em queda rumo às profundezas. A presente edição resume-se numa frase: “O diferencial para as demais coletâneas em CD é que esta caixa dá cabo de suas mais variadas fases”. Sim em sentido figurado, mas não. Não sem ‘A Banda’, ‘Olê, Olá’, ‘Com Açúcar, com Afecto’, ‘Retrato em Branco e Preto’, ‘Carolina’, ‘Construção’, ‘Bárbara’, ‘Cálice’, ‘Pedaço de Mim’, ‘Pivete’, ‘Tanto Mar’ ou ‘Morena de Angola’. E ainda menos quando ‘Samba e Amor’, ‘Cotidiano’ ou ‘Samba do Grande Amor’ são regravações ou ‘ao vivo’. E o impulso de concentração temática em cada CD mais não faz do que repetir o ensaiado pela Polygram, em 1994 – nos 50 anos de Chico –, com os volumes “O Amante”, “O Cronista”, “O Malandro”, “O Trovador” e “O Político” (convirá esclarecer que mesmo essa intenção unificadora da obra só poderá ser valorizada num mundo pré-iTunes – hoje, e desde há tempo suficiente, ao organizar o repertório como bem entende, qualquer fã de Chico com discos e acesso a um computador dispensará transversais leituras em segunda mão). Por isso também não se tornará “essencial” o que ignore “O Grande Circo Místico” ou o que inclua ‘Fado Tropical’ numa versão sem guitarra portuguesa. Isto de um autor com dezenas de antologias nas lojas, além das caixas “Construção” (22 CDs) e “Francisco” (12 CDs e 2 DVDs). Aqui, nem o documentário “Chico ou o País da Delicadeza Perdida” é inédito. Claro que a música agora desperdiçada permanece de cinco estrelas, com sambas de joelho esfolado, valsas de nariz fungado, bossas de barquinho a deslizar, choros murchos de sombra de árvore ou boleros de perfumadas meninas tristes. Lula da Silva pode ter ignorado a sugestão de Chico em criar o preventivo Ministério do “vai dar merda”, mas que as editoras não o tenham ouvido é outra história.