29 de março de 2014

“Weinberg: Sonata Nº. 3; Trio; Sonatina; Concertino; Sinfonia Nº. 10” (ECM, 2014)




Kremerata Baltica, Gidon Kremer (vl, d)


Nem assim há tanto tempo quanto isso – não estando o seu nome mais perto de figurar entre os guias de referência – eram editoras como a Olympia que traziam ao ocidente as obras de Mieczyslaw Weinberg (1919-1996). Claro que, na altura – chamavam-lhe ainda Vainberg – se obedecia ao impulso de retratar um mundo pós-soviético e, de certa maneira, a esta música, como à de tantos, se pegava o bafio da ruína cultural. Desde então, tendo a Neos iniciado uma Weinberg Edition, na qual postumamente se estreou a ópera “Passazhirka”, e se destacado uma integral de peças para piano por Allison Brewster Franzetti e outra de opúsculos para violoncelo por Josef Feigelson, não é com estranheza que se assinala já a gravação das sinfonias do compositor pela Naxos – ainda em janeiro se lançou a 12ª – ou a reunião das suas “Complete Sonatas and Works for Violin & Piano” pela Challenge. Ou seja, não falta muito para que o desclassifiquem por incumprimento dos níveis mínimos de obscuridade os administradores do fórum virtual “Unsung Composers”. Com isto a pergunta que se impõe é: está Weinberg mais próximo de ser realmente compreendido? Talvez. E um disco como este, que não repete a rotina de o subordinar a um discurso de impotência artística – pese embora à biografia deste natural de Varsóvia, do pogrom de Kishinev ao nazismo e ao estalinismo, se colar com facilidade o horror – só ajuda a causa. Isto é, não será por tratar com pungência tudo aquilo que, aqui, dá mostras de ter nascido para um eterno luto que deixará Kremer de sugerir o impensável: que até na Rússia a vida continua.

Matt Bauder And Day In Pictures “Nightshades” (Clean Feed, 2014)



Há teorias que pegam por contágio. No caso, desde “Day in Pictures” (2010) que, no domínio da crítica, e a propósito do quinteto de Matt Mauder, se fala de uma proveitosa estilização de figuras com pelo menos 50 anos como se nada de estranho houvesse na redução a aspetos decorativos da parte mais equilibrada do modernismo jazzístico da década de 60 ou como se não estivesse a própria música de Bauder, Nate Wooley, Jason Ajemian, Tomas Fujiwara e Angelica Sanchez (entretanto substituída por Kris Davis) repleta de aforismos da estirpe ‘Nova Iorque é Agora’. Nessa perspetiva, recordando-se um punhado de álbuns de uma só editora, “Nightshades” decalcaria algo do que, em 1964, a Blue Note postulou através de “Point of Departure” (Hill), “The Sidewinder” (Morgan), “JuJu” (Shorter), “Destination… Out!” (McLean) ou, já que, com este título, aludiu Bauder à família botânica da batata, “Out to Lunch!” (Dolphy). A ilação, que ninguém parece tirar, é que tal empreitada – como no “Vou-me Embora para Pasárgada”, de Manuel Bandeira, com o verso “[Lá] Tem alcaloide à vontade” inspirado na mesma ordem de plantas – situaria Bauder nas redondezas da alienação, premissa incompatível com o que se qualifica como a ação de um baluarte da vanguarda. Talvez por isso se transforme aqui o popular em esotérico – conferir o contorno etíope de ‘Octavia Minor’ –, revelando-se restritivo o que já foi ilimitável. De facto, é  difícil aceitar que tem cada período da história do jazz de lidar com um conjunto de estéreis convenções. E, no entanto, por nenhum outro motivo tanto estimula a imaginação este “Nightshades”.

22 de março de 2014

“Bal-Kan: Miel et Sang – Les Cycles de la Vie” (Alia Vox, 2013)



M. Azizoglu, G. Csík, I. Derebei, G. Dinçer, B. Dugic, L. Elmaleh, M. Figueras, H. Güngör, T. Limberger, M. Mauillon, A. Medunjanin, N. Nedyalkov, S. Outchikova, D. Psonis, Z. Spyridakis, A. Szalóki, Y. Tokcan, Hespèrion XXI, Jordi Savall (d)

Há cerca de 300 anos, Andrew Fletcher, arauto do nacionalismo escocês – assunto uma vez mais na ordem do dia –, mencionou qualquer coisa do género: “O homem a que fosse permitido compor todas as baladas de uma nação não haveria de se importar com quem lhe redigisse as leis”, porventura sob o pressuposto de que mais facilmente flui da pena de um poeta do que da de um legislador o efetivo retrato do comportamento e aspirações de todos quanto vivem em sociedade. Semelhante conjetura não deverá parecer estranha a Jordi Savall, que na apresentação desta imponente edição que expande o anteriormente postulado por “Esprit des Balkans” (trata-se, agora, de quase quatro horas em CD, e ensaios, material gráfico, textos cronológico e lírico, em 12 línguas, derramados pelas 600 páginas de um livro) escreve: “A música é a mais espiritual de todas as artes; e é, por excelência, a arte da memória: existe apenas quando um cantor ou um instrumentista a faz viver, e é então – com a beleza de uma voz ou a vitalidade de uma dança embriagando-nos os sentidos – que se consubstancia no nosso pensamento.” A consequência de tal consolidação é um pouco mais matizada do que o que este originário da Catalunha – essoutro terreno fértil para o separatismo –, com bonomia, sugere (“intensos mas fugidios instantes que trazem paz e alegria ou ternura e nostalgia aos nossos corações”), mas convirá não ignorar que Savall reflete acerca de uma região em que, de acordo com a formulação de Predrag Matvejevic, “o passado submerge a História”, isto é, em que, ao olhar-se para trás, se observa mais o mito do que a realidade.

Savall deduz outro tanto, mas não assume que tão especulativo tratamento dos factos dificilmente se compatibiliza com a abordagem historicista que aparenta patrocinar. Mas basta atentar à decomposição etimológica deste título – bal e kan são as palavras turcas para mel e sangue – para se verificar que não menospreza em absoluto a ambiguidade naquilo que propõe. E ainda que uma outra frase sua dê mostras de dever à fantasia (“Na península dos Balcãs, as tradições do mundo eslavo viviam em perfeita harmonia com tradições mais recentes, como o islão, trazido pelos turcos, ou o judaísmo, trazido pelos ladinos.”), serve de cartão-de-visita para o que conduz o ouvinte até ao século IV, e ao Império Bizantino, comportando pelo caminho expressões tradicionais, folclóricas e populares búlgaras, sérvias, macedónias, turcas, cipriotas, húngaras, albanesas, romenas, bósnias, gregas, sefarditas e ciganas veiculadas por quatro dezenas de intérpretes, e que constrói um mosaico subordinado a um ciclo idealizado por Montserrat Figueras antes de falecer: “Criação: Universo, Encontros & Desejos”, “Primavera: Nascimento, Sonhos & Celebrações”, “Verão: Encontros, Amor & Casamento”, “Outono: Memória, Maturidade & Viagem”, “Inverno: Espiritualidade, Sacrifício, Exílio & Morte” e “(Re)conciliação”. É óbvio que quanto ao certo se vai achar tudo isto interessante depende de quanto se aprecia a figura de Savall. O que não chega a impedir que se sinta empatia por toda esta música – por vezes mais comovente que convincente – que tem precisamente como mais-valia em tempo algum se ter visto, assim, conciliada com a esperança. Ouvi-la é passear alternadamente por um cemitério, por um campo de batalha, por uma biblioteca arruinada, e é, simultaneamente, tão natural quanto respirar. É sobreviver.

Abdullah Ibrahim “African Piano” (ECM, 2014) & Sam Rivers “Contrasts” (ECM, 2014)



 
O mais provável seria que nas editoras decrescesse o incentivo para relançar fisicamente material de arquivo à medida que fosse ganhando tração a distribuição digital. Mas a verdade é que não se extinguiu por inteiro o prestígio associado à propriedade. Arrancam-se assim às profundezas dos catálogos os mais obscuros artefactos, o que, além de edificação patrimonial, permite questionar o cânone. De uma assentada, é agora a ECM a devolver sete títulos aos escaparates: “Seven Songs for Quartet and Chamber Orchestra” (1974), de Gary Burton, um homónimo ensaio do Miroslav Vitous Group, de 1980, “Five Years Later” (1982), de John Abercrombie e Ralph Towner, dois insólitos postulados de Keith Jarrett – o orquestral “Arbour Zena” (1976) e o vicarial “Ritual” (1977) – e outro par de registos mais recomendáveis. De “African Piano” (1973) transparece que não estava o seu autor minimamente interessado em problematizar as suas origens; a sessão, a solo, perfumada com um buquê de melodias, subordinava ao êxtase a experiência de existir e evocava uma especificidade que iludia os seus ouvintes: a do jazz sul-africano. Já “Contrasts” (1980) obedecia a uma construção mais complexa, com elementos continuamente transfigurados por Rivers, George Lewis, Dave Holland e Thurman Baker, e nada possuía de profético, pese embora só hoje se entender o que tinha de puritano, rigoroso e terno.