24 de setembro de 2016

Fred Hersch Trio “Sunday Night at the Vanguard” (Palmetto, 2016)



Larry Blumenfeld esteve lá, tomando notas soltas e batendo salvas de palmas, alegadamente bebendo um copo entre aquela bestial amálgama de turistas, músicos, jornalistas, almas perdidas, amantes de jazz e amantes tout court, e, depois, para o “The Wall Street Journal”, escreveu assim: “No [Village] Vanguard, na semana passada, Hersch sentou-se ao piano sob o olhar atento dos emoldurados retratos de Bill Evans e Tommy Flanagan, [pianistas] cujo legado prolonga; e de outro de si próprio, há anos pendurado nas mesmíssimas paredes. Parecia tocar em casa, rodeado de fotografias de familiares. E, de certa forma, era exatamente isso que se passava.” É uma impressão que Hersch confirma. Nas notas de apresentação do seu primeiro disco aí gravado (na ocasião, em maio de 2002, acompanhado por Drew Gress e Nasheet Waits, ao invés de, como agora e como em “Alive at the Vanguard”, por John Hébert e Eric McPherson), afirmava o seguinte: “O Village Vanguard é muito simplesmente o melhor clube de jazz do mundo. A acústica da sala e os fantasmas de todos aqueles nomes lendários que pela sua cave passaram combinam-se para o transformar num espaço ideal para tocar e ouvir música em trio.” Quando, na edição deste mês da “JazzTimes”, em conversa, Aidan Levy lhe pede para “definir o som do Vanguard”, ainda que obliquamente, Hersch sugere que é como tocar na sala de estar do seu apartamento. 

Dir-se-ia que em nenhum outro lugar do mundo se torna tão evidente que um concerto é também um modo de negociação entre presenças e ausências, entre as precisas vivências de quem vê e as vagas pertenças de quem é visto. Como se sabe, nessa medida, por ter estado entre uma e outra instância (passou dois meses em coma, em 2008, por complicações de saúde relacionadas com a contração do vírus do HIV), Hersch é um invulgar mediador para tudo aquilo que no jazz passa por crença e carência, eterno e efémero, afeção e afeto, hombridade e humildade, etc. e etc. Toca originais, toca Paul McCartney, Kenny Wheeler, Jimmy Rowles e Thelonious Monk, e pensa-se efetivamente em Bill Evans, outro que num domingo qualquer, naquele sítio exato, foi-se perdendo de si aos poucos para se encontrar para sempre nos outros.

Vieux Kanté “The Young Man’s Harp” (Sterns, 2016)



Em outubro de 1995, “munido de um amplificador Roland, duas guitarras e com a bagagem de porão a transbordar”, Banning Eyre, músico, jornalista e editor do programa de rádio e revista digital “Afropop Worldwide”, apanhou um voo de Nova Iorque para Bamako. Aguardava-o Djelimady Tounkara (líder da Super Rail Band e força motriz da música moderna maliana), com quem iria passar sete meses em aprendizagem. Foi um discipulado que revelou falta de vocação de ambas as partes, embora o relato da experiência (“In Griot Time”) seja de leitura obrigatória. Na véspera de regressar aos EUA, Eyre passou pelo complexo habitacional dos Tounkara, para o qual tinha convidado amigos de que se queria despedir. “Nessa noite sentia-se uma estranha turbulência pelo ar”, conta. “O vento soprava pó e detritos por todo o lado e poucos se aventuravam a sair de casa. Mas o Harouna [Samaké] apareceu, de kamalé ngoni na mão. Insisti para que ele e o Djelimady me tocassem qualquer coisa e eles assentiram, misteriosamente fluentes na linguagem musical um do outro. Ouvi-los cantar ‘Lamban’, um clássico griô, foi como uma recapitulação de tudo o que tinha aprendido. Se fosse produtor era isto que desejaria gravar: rompia com a tradição; não se encaixava em formato nenhum; era música radiosamente espontânea, o segredo mais bem guardado do Mali.” No dia seguinte começava a estação das chuvas e Eyre escrevia a última linha do seu livro rumo ao aeroporto: “Rios de lama levavam o entulho ressequido de uma estiagem de sete meses e séculos de canções ressoavam em mim.” Dez anos depois, em 2005, de volta a Bamako, viria a sentir tudo isto outra vez ao assistir a uma atuação do cego Noumoussa Soumaoro, ironicamente apelidado de “Vieux Kanté”, um fenómeno que ficou em trânsito para a história como o ‘Jimi Hendrix do kamalé ngoni’ (faleceu por essa altura, aos 31 anos). A par de “Sans Commentaire” (outra das suas alcunhas, pois era a única reação possível ao seu virtuosismo), editado em 2013, esta é única gravação sua que se conhece. E foi Eyre que a levou à Sterns. E, sim, chega com a força de uma monção.

17 de setembro de 2016

Allen Toussaint “American Tunes” (Nonesuch, 2016)



A propósito das Presidenciais norte-americanas, muito se tem falado da Estátua da Liberdade. Mas, inexplicavelmente, e quiçá pela imediata associação às eleições de 2008, quando a mesmíssima canção, num vídeo produzido pelo grupo de pressão Progressive Future, serviu para potenciar anúncios pró-Obama, não voltou a ser notícia ‘American Tune’, de Paul Simon, aquela balada em que o narrador é um emigrante entregue à sua sorte, resignado, confuso, esquecido, “cansado até ao osso”, capaz de hospedar uma culpa qualquer saída do discurso do “viver acima das possibilidades” e de, em simultâneo, cantar “E sonhei que morria/ E sonhei que, aos céus, a minha alma ascendia// Sonhei que estava a voar/ E que lá do alto via/ A Estátua da Liberdade/ A fazer-se ao mar”. Curiosamente, neste álbum, quem a relembra é Allen Toussaint, compositor, produtor e pianista, um dos artífices da modernidade mestiça em Nova Orleães e, como o emigrante de Simon – no caso, por via da força destrutiva do furacão Katrina –, também ele instruído na arte de recuperar de adversidades. Nesse capítulo, como é costume dizer-se, não há maior do que a morte, mas Toussaint, que faleceu em novembro passado, em digressão, vítima de enfarte do miocárdio, munido de uma simplicidade e insaciedade praticamente evangélicas, até essa dá mostras de desafiar por intermédio de um disco que, em rigor, terá tanto de póstumo quanto de póstero. Além de Simon, Toussaint toca Fats Waller, Professor Longhair, Billy Strayhorn, Duke Ellington, Louis Moreau Gottschalk, Earl Hines, Bill Evans, e só ele para desviar ‘Waltz for Debby’ da cadência da valsa. Tudo gente que sabia que, antes de ser cultural e, muito menos, nacional, a música é um fenómeno pessoal. Isto é, que a grande “canção americana” é aquela não exclui nada nem ninguém.

Frode Haltli "Air" (ECM, 2016)



Dir-se-ia mais um título na senda de “Lacrymae” ou “The Weeping White Room”. Mas, em nota introdutória, Bent Sorensen (n. 1958) explica como lhe chegou literalmente às mãos o batismo de “It is Pain Flowing Down Softly on a White Wall”, constituinte central deste programa concebido pelo acordeonista Frode Haltli, e que tem como complemento “Air” e “Three Little Nocturnes”, de Hans Abrahamsen (n. 1952): “Este título deu-mo uma senhora húngara, em agosto de 2008, após o festival Arcus Temporum, em Pannonhalma. Colocou-me na mão um papel com a frase, dizendo que era um verso de um poeta húngaro de que se tinha recordado ao escutar peças minhas. Decidi logo que poderia servir para designar uma obra”. Agora, ao apresentar o disco, Paul Griffiths sugere que não se encontra equivalência direta entre a frase específica e o “corpus de poesia húngara” propriamente dito, apesar de Miklós Radnóti (de “Escorre uma agonia carmesim pelas paredes da casa/ que cintilam”) ou János Pilinszky (de “Eu mancho a parede com o meu choro”) dela se aproximarem. Mais do que concluir que alguma coisa se terá perdido, ou achado, na tradução, Griffiths deduz que, num processo que se assemelha à prática composicional de Sorensen, a espectadora terá estabelecido um vínculo entre duas imagens distintas que guardava na mente e que não possuíam qualquer relação entre si – que não pelo motivo comum da parede e da lamentação, e pelo modo em que na memória coletiva ressoa a justaposição desse par de elementos. 

Griffiths não o refere, mas tudo isto se avizinha daquela célebre declaração de Nordheim acerca da música de Sorensen (na foto, à esquerda): “Lembra-me qualquer coisa que nunca ouvi!” Outro impulso não o guiará. Numa entrevista ao site Bachtrack, quando o assunto chegou à questão das influências, o dinamarquês respondeu assim: “A influência não é coisa que se escolha. Pode afirmar-se até que eu e o conjunto das minhas influências nos escolhemos um ao outro. É sempre um enigma, mas não andarei longe da verdade se disser que nunca me deixo influenciar por algo que não pareça já, de alguma maneira, previamente influenciado por mim – pelo que faço, pelo que penso. Coisas que tocam os enigmas que tenho em mim e que neles se dissolvem.” Vive de encontros e desencontros desses, It is Pain Flowing Down Softly on a White Wall” (para acordeão e orquestra de cordas), onde, pelo ar, dançam partículas de ‘My One and Only Love’ (Wood/Mellin), de ‘Vuelvo al Sur’ (Piazzolla) ou de Haydn, mas em total desintegração, capazes de lembrar aquela frase de William Basinski: “O mundo acabou há 2000 anos – isto é só o pó a assentar”.

10 de setembro de 2016

Metá Metá “MM3” (Jazz Village, 2016)



Primeiro, em 2011, foi o afro-samba avessado, alforriado, acústico e nada abúlico da estreia homónima. Depois, em 2012, o capítulo do exulcerante choque elétrico, catártico e cataclísmico de “MetaL MetaL”. Agora, esses expressivos e contrastantes exercícios de Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França dir-se-iam coadunados, não tivesse o excesso de corrente desterritorializado a sua ação. Pois, por mais que preserve os aromas acres dos terreiros de candomblé, a verdade é que “MM3” surge embalado por modalismos levantinos, embora, em comunicado, o trio denuncie influências “de países como Marrocos, Etiópia, Níger e Mali”. Em termos estéticos e éticos há um precedente histórico para tamanha migração, no pós-punk britânico, quando o embrião dos 23 Skidoo identificou em si o protoplasma de Fela Kuti, quando os Rip Rig + Panic deram no seu ADN pelo free jazz, quando os African Head Charge apontaram a via de Tombuctu ou, como é óbvio, no instante em que os Pigbag de ‘Brazil Nuts’ cruzaram estruturas rítmicas potencialmente brasileiras com presumíveis escalas pentatónicas árabes.

Trata-se da adoção de uma nova identidade ou, quiçá, da aceitação de um exílio. O que é o mesmo que dizer que esta prática nasce da necessidade de contestar uma cultura. Mas se uns dirigiam sortilégios a Margaret Thatcher, os Metá Metá apontam as setas ao executivo de Michel Temer. Num clip promocional, Dinucci reconhece que o disco foi “gravado no olho do furacão” e que nele se “vai ouvindo um pouco dessa terra em transe, desse tempo político que a gente tá vivendo”. A referência ao “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, logo traz à memória aquele desabafo, no filme, que vai do “Não é mais possível esta festa de medalhas, este feliz aparato de glórias, esta esperança dourada nos planaltos, etc.” até ao “Até quando suportaremos? Até quando, além da fé e da esperança, suportaremos? Até quando, além da inconsciência do medo, suportaremos?”. Coisas que os Metá Metá dizem assim: “Uma esperança morta pra lá/ Uma ferida aberta pra cá/ Um carnaval onírico/ É, não deu, não dá” ou “Escuridão/ Oco voraz/ Vai engolir o mundo/ Regurgitar/ Boca funil/ Amanhã come o ontem”. E entre guinchos terebrantes ao saxofone, corais convulsos, estilhaçados acordes à guitarra, jogam um petardo às forças reacionárias.