26 de setembro de 2015

Mary Afi Usuah “Ekpenyong Abasi” (Voodoo Funk, 2015)



Está quem a ouviu a refazer-se do susto que foi descobrir de uma assentada a integral discográfica de Lijadu Sisters (na Knitting Factory) e William Onyeabor (na Luaka Bop) e eis que se anuncia nova revelação nigeriana. Logo quando, por aí, se diria reposta a normalidade, com a reedição de um álbum de Jake Sollo (na Africa Seven) a passar quase despercebida e com uma distinção congressional norte-americana a Fela Kuti, emitida em julho, a oficializar o processo de burocratização do afrobeat. Isto comparando a uma realidade muito recente, em que pelos escaparates se acotovelavam antologias com música desse tempo em que, como dizia a canção de Caetano, em Lagos custava tudo ‘Two Naira Fifty Kobo’. Mas entre dezenas de pletóricas compilações só numa se dá pelo nome de Mary Afi Usuah (que viria a falecer, algo esquecida, em 2013): na versão em vinil de “Nigeria Special: Modern Highlife, Afro Sounds & Nigerian Blues” que a Soundway lançou em 2010. Certo: colecionadores da Cinevox conhecê-la-ão por um punhado de temas que gravou em Roma, entre os anos 60 e 70, quando, estudando ópera na Accademia di Santa Cecilia, se entregava de dia ao sagrado e de noite ao profano, e cultores da ‘série b’ lembrá-la-ão como a voz de “Ed ora… Raccomanda l'anima a Dio”, de Demofilo Fidani, o “Ed Wood do spaghetti western”. Mas, enfim: soou o clarim da unificação nacional e Mary tornou a casa. Em 1975, já dedicada ao ensino e acompanhada pela banda de Dan Satch, deixou para a posteridade este irrepreensível e elegante LP em que leva para bem longe uma música habituada a uma visão regional do mundo.

“Figures of Harmony: Songs of Codex Chantilly c. 1390” (Arcana, 2015)




Ferrara Ensemble, Crawford Young (d)


Todo ele notável, Corps Femenin: Duke John of Berry’s Lyrical Avant-Garde”, o mais recente dos discos aqui coligidos, editado em 2010, possui notas de apresentação não menos célebres. Nelas, Crawford Young sugeria que se Dante tivesse começado a escrever a sua famosa descrição do inferno no início do século XV, i.e., 100 anos mais tarde, incluiria entre os seus residentes o ilustre João de Valois, Duque de Berry, amigo de Machaut e destacado patrono das artes, que para toda a parte se dirigia acompanhado por um casal de ursos e de quem aproveita, já agora, para esboçar um retrato entre o avaro e o voraz. A ideia é inspirada e serve para atalhar caminho, pois logo semeia expetativas quanto à música que semelhante figura permitiria que se escutasse nos seus castelos. Grosso modo, a de Trebor, Solage, Senleches e daqueles, como Grimace, Ciconia ou Philipoctus de Caserta, que praticavam a Ars subtilior (a “arte mais refinada”, conforme a caracterizou a musicóloga Ursula Günther, distante desse tempo de pragas, pestes, tumultos e tributos sem fim) e que viram muita da sua obra reunida no Códice de Chantilly. E é uma música inimaginavelmente complicada, cifrada, ambígua, simbólica e alegórica, embora a sua construção seja continuamente charmosa e a sua configuração canónica. E, entre 1995 e 1998, em “Balades a III Chans”, “Fleurs de Vertus” e “En Doulz Chastel de Pavia”, com um invejável critério estilístico e uma conjunção sentimental e corporal inigualável, já Young e o Ferrara Ensemble a tinham posto a pairar definitivamente a vários milímetros do mundo real, rumo ao paraíso.

Fred Hersch “Solo” (Palmetto, 2015)



Toca Fred Hersch e vem à lembrança um velho truísmo que costuma acompanhar os pianistas de jazz em contacto com o cânone: aquele que mede o sucesso de cada um pelo efeito transfigurador da sua ação. Isto é, quão mais fragmentária e dispersa parecer a sua relação com os materiais originais mais reconhecida será. E é verdade que Hersch prefere a distorção à decoração, nessa perspetiva destacando-se aqui um ‘Caravan’ em ritmo de tango e um Monk apropriadamente manco. Mas, de tudo isto, sucede que o seu inverso também não é mentira nenhuma. Com frequência, quem o ouve é levado a crer que Hersch aprecia testar um tema para ver o quanto ele resiste a um tratamento obsessivo às suas mãos. Talvez por isso termine este recital a solo, captado em agosto de 2014 e editado a tempo de assinalar o seu sexagésimo aniversário, com uma sensível, e jamais sentimental, evocação de ‘Both Sides Now’, a canção que Joni Mitchell compôs a partir de uma frase achada num romance de Saul Bellow para explicar que há mais de uma forma de se olhar para cada coisa e para os demais. Sabe-o bem Hersch, que já viu a vida dos dois lados. E, do mesmo modo, não ignora que, por vezes, como afiançava Bill Evans numa entrevista a Marian McPartland, gosta-se tanto de uma melodia que não se consegue fazer melhor do que tocá-la tal como ela é. Conceda-se: Hersch é mais elíptico que Evans (que em 1975 gravou ‘People’ durante cerca de 13 minutos sem improvisar um único segundo), mas há algo dessa asserção na maneira em como, de Jobim, enuncia ‘Olha Maria’ ou ‘O Grande Amor’. É o que normalmente se chama de fidelidade.

19 de setembro de 2015

Amara Touré “1973-1980” (Analog Africa, 2015)



Atribuída a Amara Touré, surge num livro do etnomusicólogo Wolfgang Bender esta interrogação: “Para nós, africanos, será a música latino-americana um conceito assim tão estranho? Creio que não. Atente-se ao samba brasileiro, à percussão, aos ritmos da bateria. Sinto-o como parte da nossa cultura.” Podia estar a referir-se ao “fluxo e refluxo” entre o golfo do Benim e a baía de Todos-os-Santos, mas o seu campo de ação foi mais amplo. Nasceu na Guiné, cresceu no Senegal e, no fecho da década de 50, como timbaleiro, ingressou na Star Band de Dakar com o gambiano Laba Sosseh, o nigeriano Dexter Johnson e o cabo-verdiano José Ramos. Como Amadou Balaké em relação aos Ambassadeurs, o seu conhecimento do vernáculo rítmico afro-cubano facilitou-lhe a promoção a vocalista, ainda que só foneticamente dominasse o espanhol. Nas lascas saídas da Star Band, acompanhou Sosseh na Super International e Johnson na Super Star. Em “Afrolatin: Via Dakar” (Syllart, 2011) estão três temas por si cantados, provenientes de sessões em Iaundé, nos Camarões, quando tocava no Ensemble Black & White, e fica claro que ninguém, nem mesmo Laye Mboup e Thione Seck na Orchestra Baobab, se adaptou como ele à languidez desse repertório. Solta a voz e imaginam-se pares tão agarrados, e de movimentos tão lentos, que se diria estarem a dançar num campo minado. Esta antologia, que se reputa integral, revela mais três canções desse período, além do LP que, em 1980, gravou em Libreville com o conjunto Massako, em cujas fileiras havia sido admitido. Desapareceu sem deixar rasto em meados de 90. Permanece inesquecível.