26 de fevereiro de 2021

Alexander Hawkins “Togetherness Music” (Intakt, 2021)

No início deste prodigioso “Togetherness Music” não está bem o verbo mas, sim, o sibilante soprano de Evan Parker – lá está ele, algo solipso, cicioso, elíptico e fechado sobre si mesmo, fluente na língua dos encantadores de serpentes. Seja como for, no tema (‘Indistinguishable from Magic’, chama-se), porque “nele estava a vida”, pode dizer-se que “tudo foi feito por ele” e que “nada do que tem sido feito foi feito sem ele”, tal como nos versículos iniciais de João – não é por acaso que aos três minutos dessa sua improvisação a solo entra em cena um clangoroso e demiúrgico tutti, logo escoltado por aparatosos glissandi, com violinos, violas, violoncelos e contrabaixos a testar motores de arranque. Claro que, com Parker, será tudo relativamente mais ambíguo – neste contexto, como se diz dos cientistas, ele é tanto o criador quanto o destruidor de mundos – e, nessa perspetiva, se estivéssemos no Paraíso, o seu papel seria o daquela genesíaca e astuta nutricionista que desejava à força toda que Adão e Eva incluíssem mais fruta nas respetivas dietas. A metáfora não é completamente gratuita: há 20 anos, num expoente do género, o momento mais transcendente do já de si inteiramente sublime “Strings With Evan Parker” chamava-se ‘Double Headed Serpent’, título que Parker sacou a um dos seus passeios pelo British Museum – “Não há melhor forma de lidar com bloqueios criativos do que visitar um museu”, disse-me há um punhado de anos no Jardim das Esculturas do Museu do Chiado, muito apropriadamente. Aí, deu com essa escultura em madeira com turquesa incrustada de origem misteca ou asteca, símbolo de renovação, sim, mas também dos mundos terreno e subterrâneo, perfeitamente aplicável ao binómio composição-improvisação. Por intermédio do pianista Alexander Hawkins, é de certa forma a esse universo que Parker regressa, embora não se dê por si em ‘Ecstatic Baobabs’, por exemplo: um quinteto de cordas fractal com sons que mais parecem raios de luz. Particularmente policéfalo, com uma pequena secção de metais e madeiras, e com gente como Percy Pursglove na trompete, Matthew Wright na eletrónica ou Mark Sanders no contrabaixo, este “Togetherness Music (For Sixteen Musicians Feat. Evan Parker + Riot Ensemble” – no qual se dá, em ‘Ensemble Equals Together’, com uma outra formulação muitíssimo sugestiva – é a nova charneira desse binómio, simultaneamente generativo e degenerativo, como todos os monstros, em radiante (des)contínuo com aquela música feita de transparências e assombrada por espectros mais leves que o ar com a qual sonham sopradores, cientistas e serpentes desde que o mundo é mundo.

19 de fevereiro de 2021

Zanzibara 10: Taarab Vibes From Mombasa & Tanga, 1970-1990 (Buda, 2021)

Em 1982, nas notas de apresentação de “Songs The Swahili Sing”, John Storm Roberts deliciava-se com o paradoxo: “O taarab é o reflexo das qualidades cosmopolitas de um povo multirracial há muito virado para o mar. Aliás, à primeira vista, dir-se-ia que o único ingrediente que efetivamente falta à música da região é precisamente o africano.” O etnomusicólogo britânico passava da teoria à prática: em 1972, na introdução do seminal “Black Music of Two Worlds”, havia revelado uma opinião contrária à comum ao explicar que, sim, antes de mais, neste contexto, se teria de abandonar aquela ideia peregrina de que a “música africana esteve larguíssimos séculos isolada do mundo”; que vivia numa “espécie de Jardim do Éden, imaculada” e, pelo menos até à era colonial, imune a influências exteriores. Na realidade, o inverso era verdadeiro: “Um cronista da Grécia Antiga escreveu sobre a costa leste africana, em ‘Périplo do Mar Eritreu’, no século I, e instrumentos musicais gregos foram descobertos perto de Cartum. Do mesmo modo, achou-se cerâmica chinesa do século XIII em Mombaça, uma zona a que, antes ainda da música árabe, com os seus elementos cópticos, sírios, egípcios e persas, chegavam ecos de música fenícia, romana, bizantina e europeia.” Estes últimos, crê-se, por via lusa, o que permitiria traçar uma linha direta entre as Cantigas de Amor e ‘Binti’, de Matano Juma com o conjunto Morning Star, um tema que só por acidente não surge cantado em galaico-português. Bem, face à corte do período Taishô, no seu país, um japonês diria o mesmo das canções de Zuhura Swaleh que se socorrem do taishogoto, e um indiano não ficaria propriamente indiferente ao harmónio e às tablas nas de Malika. Nada que se escutasse no Sultanato de Zanzibar, claro, onde o taarab nasceu, em finais do século XIX, mas tudo coisas que se ouviam nos filmes de Bollywood que chegavam regularmente a Mombaça, Tanga ou Dar es Salaam, um mundo de fantasia para o qual se evadiram os que o fecho de fronteiras entre Quénia e Tanzânia encarcerou. Felizmente havia alguém para carregar no botão do gravador.

Munktell: Violin Sonata; Dix Mélodies; Piano Trio (Bis, 2021)

Em “Sounds and Sweet Airs: The Forgotten Women of Classical Music”, em jeito de síntese, e após 325 páginas, Anna Beer regressa à casa de partida: “O que define um grande compositor?”, interroga-se retoricamente a autora. “Ser dotado de génio é essencial, claro. Depois, seja na corte ou no conservatório, um grande compositor requer algum tipo de cargo oficial, bem como a autoridade, a anuidade e as oportunidades que daí advêm. E, seja na pauta, no paço ou na ópera, precisa de ter acesso aos espaços em que a música circula e se afirma. E de amantes, musas e de uma esposa dedicada que lhe garantam estímulo e inspiração. Em resumo: um grande compositor tem de ser homem.” Ou seja, mais ou menos o estado de coisas que conduziu a sueca Helena Munktell (1852-1919) à seguinte conclusão: “Mais vale lutar por um lugar no estrangeiro do que aceitar ficar em casa por caridade. Isto já não é sítio para mim!” Em pleno fin de siècle, parecia uma verdadeira milenarista: mais que aguardar pelo inevitável, desejava precipitá-lo. O desabafo surge numa carta endereçada à cantora Esther Sidner (também ela sueca e ela própria discípula de Jules Massenet no Conservatório de Paris), em que Helena revelava o interesse de Vincent d’Indy nas suas composições. Vinha recomendada por Émile Durand e Benjamin Godard, figuras influentes no Conservatório, mas, mais do que galgar as defesas do patriarcado, teria de se afirmar no seio de uma entidade organizada sob a divisa da ars gallica, não obstante esta “Sonata para Violino e Piano” – uma revelação – provar que não ia à Societé Nationale de Musique para eriçar os bigodes de Saint-Saëns, Fauré e Dubois, ou as suíças de Franck, cujo modelo composicional decalcava. Seja como for, hoje, como numas canções em que cada melodia é como o canto do passarinho que ruma a novas latitudes, o pouco que se afasta do estilo francês é mais significativo do que o muito que dele se acerca. Um achado.

5 de fevereiro de 2021

Joe Lovano – Trio Tapestry “Garden of Expression” (ECM, 2021)

No livreto, umas linhas, que começam: “A música da vida é repleta de momentos preciosos no jardim da expressão.” De facto, no jazz, não havia um disco tão exposto a ervas aromáticas desde que Cecil Taylor gravou “Chinampas”, palavra nauatle que remetia para a técnica de cultivo dos “jardins flutuantes” nas áreas lacustres do Vale do México. Aí, o pianista abdicava do piano, recitava poemas, acumulava espuma esotérica nos cantos da boca e a sua voz ia sendo pontuada pelos ding, plim, blong e dong dos sinos e gongos, mais ou menos o que aqui faz Carmen Castaldi – alguém que, cercado de chapas circulares suspensas, como móbiles, sabe reter a mais extraordinária espontaneidade. Em temas abertos, soltos, marcados por estruturas vaporosas e andamentos vagarosos, também Joe Lovano e Marilyn Crispell parecem reagir à complexidade da música que sempre praticaram buscando abrigo num corpo hermético, num metafórico jardim – e, tal como o Mal Waldron de ‘The Stone Garden of Ryoanji’, por exemplo, vêm dar expressão àquela ideia batida de que a infinitude do universo se vê amiúde reproduzida no mais ínfimo dos espaços. Ao mesmo tempo, dir-se-ia quererem acercar-se o mais possível do som – ‘Chapel Song’, ‘Sacred Chant’, ‘Zen Like’, o ponto em que equilibram fórmulas altamente concentradas, como se descobrissem uma música dentro de outra. Nessa perspetiva, “Garden of Expression” é mais ecuménico do que evangélico, ao invés de ‘The Garden of Souls’, de Ornette, digamos, embora tenha presente que mesmo a mais serena das preces pode servir de arma de arremesso. Aliás, como quem se retira para um jardim de pedras japonês com o livrinho dos pensamentos de Musô Soseki debaixo do braço, o Trio Tapestry relembra que originalmente não há grandeza nem pequenez nas coisas do universo, que o árido não tem de ser sinónimo de estéril, que o espiritual não equivale obrigatoriamente ao transcendental. Tocam, e o que vem à memória é um haiku, de Bashô: “Silêncio:/ As cigarras escutam/ O canto das rochas.”