30 de outubro de 2010

D.O. Misiani and Shirati Jazz "The King of History: Classic 1970s Benga Beats from Kenya"

Coincidiu com a ascensão do jungle nas pistas de dança um efémero revivalismo do benga nos mercados discográficos. E embora, que se saiba, nunca tenha sido um associado ao outro, a verdade é que não perderia em ‘batidas por minuto’ o ousado DJ que na altura saltasse entre géneros. O que, para além da concórdia rítmica, é apenas outra forma de dizer que tudo nesta explosiva antologia é sobre velocidade e permanência: baixos cuspidos como dardos numa zarabatana, guitarras em incessante chilreio metalizado, harmonias a duas vozes disparadas em campos de tiro, baquetas metralhadas sem piedade metronómica no aro das tarolas, epilépticos pratos de choque… Por vezes, seguir-lhes a cadência é como tentar medir o pulso a uma máquina de pinball. Aliás, o esforço de concentração que estes temas exigem – estrutura em instabilidade tectónica, graves com a maleabilidade da borracha e vulcânicos agudos – implica que seja efectivamente na ‘batida’ que se fixem atenções. Até porque, no seu melhor, a experiência conduz a um estado de imersão sensorial. Talvez por isso se tenha Daniel Owino Misiani coroado enquanto ‘Rei da História’ – como se ao ouvinte devessem interessar exclusivamente os fenómenos intrínsecos à sua produção dentro do estilo de que se tornou o principal propulsor. O que não significa que não se lhe detecte elasticidade capaz de assimilar traços do soukous – nomeadamente na maneira em que colocava as secções instrumentais no fim das canções – ou, num arrítmico carrossel eléctrico que gira em torno das melodias, do kamba (Misiani, que faleceu em 2006, era, como Barack Obama, descendente dos Luo). Ainda assim, como aqui se comprova, nada contaminava a soberba de um discurso que tinha como único senão a inevitabilidade de se ver conduzido até ao limite das suas próprias possibilidades. Só que, como se diz, o que interessa é a viagem.

23 de outubro de 2010

Seu Jorge and Almaz

Almaz, em russo, quer dizer diamante – o que, despertando uma certa perplexidade idiomática, explicará a capa. Já a opção por um tema de abertura (‘Errare Humanum Est’, de Jorge Ben) inspirado por escritos alquímicos que, segundo mitologia greco-egípcia, foram gravados precisamente por uma ponta de diamante fará que se pressuponha um arremesso conceptual. Mas, na verdade, jamais se chega a impor tal ordem de trabalhos. E a sincrética ‘ideia forte’ que quase se adivinha é, pelo contrário, diluída numa aleatoriedade digna de um motor de pesquisa que fixa repertório sem aparente razão. Dir-se-á que Seu Jorge, António Pinto (compositor da música para “Central do Brasil” ou “Cidade de Deus”), Lúcio Maia e Pupillo (estes, activistas na Nação Zumbi) se deixaram, como o Caetano Veloso recente, guiar pelo prazer de aplicar uma dimensão sonora ‘de banda’ a canções que mais ninguém – ou, no limite, um número infinito de macacos experimentando indefinidamente no iTunes – alinharia da mesma maneira. Mas a monotonia do exercício nega-o. Porque raramente se desviam os arranjos da construção de uma narcótica nebulosa em que respire tranquilamente o ‘barítono de baseado’ de Seu Jorge, contrariando a natureza de matéria-prima tão expansível quanto ‘Cristina’ (Tim Maia), ‘Saudosa Bahia’ (Noriel Vilela) ou ‘Tempo de Amor’ (Baden Powell e Vinicius de Moraes). Indistintas pela submissão a uma fórmula que garante aceitação contemporânea, estas versões – também de ‘The Model’ (Kraftwerk), ‘Cala a Boca, Menino’ (Dorival Caymmi para João Donato), ‘Everybody Loves the Sunshine’ (Roy Ayers), ‘Rock with You’ (Rod Temperton para Michael Jackson), ‘Girl You Move Me’ (Cane and Able), ‘Pae João’ (Tribo Massáhi), ‘Cirandar’ (Martinho da Vila) e ‘Juízo Final’ (Nelson Cavaquinho) – reflectem, isso sim, um tempo em que a mera citação se manifesta como um sintoma de profundidade

16 de outubro de 2010

Lobi Traoré "Rainy Season Blues"

Será um caso entre muitos, mas tornou-se a certa altura claro que Lobi Traoré era traído pela sua discografia. Não se deverá, aliás, a um erro de cálculo o baptismo do seu quinto álbum como “The Lobi Traoré Group” (2005). Porque se “Bambara Blues” (1992), “Bamako” (1994), “Ségou” (1996) e “Duga” (1999), ainda que progressivamente mais consistentes e libertos de constrangimentos mediáticos, possuíam como maior fraqueza a facilidade com que se adaptavam ao nicho de mercado criado pela ‘descoberta’ de Ali Farka Touré, não se lhes detectava, no entanto, matéria capaz de originar uma explosão de energia como aquela há cinco anos revelada pela Honest Jon’s. De súbito, de um Mali que tinha já o ‘seu’ John Lee Hooker chegava um Jimi Hendrix – ou pelo menos um Jeff Beck. E Traoré, embora no papel não se esgotasse, encarnou a personagem num feérico teatro de estilística à guitarra que noite após noite levou à cena nos bares de Bamako. Alguns (Banning Eyre, editor no afropop.org, Oz Fritz, engenheiro de som associado a Bill Laswell, Damian Rafferty, editor no flyglobalmusic.com ou Damon Albarn, que o chamou para “Mali Music”) presenciaram esses concertos e pareceu-lhes ouvir concentrada numa actuação a história inteira do blues rock. Mas foi pela mão de Chris Eckman, o outrora lisboeta líder dos Walkabouts então na cidade a gravar o grupo tuaregue Tamikrest, que acedeu a uma derradeira entrada em estúdio. E não se supondo sequer que sobre o seu espírito pairasse o espectro da morte – viria a falecer dez meses depois – não se vislumbra mais virtuosa manifestação de ideias no mais calculado dos epitáfios. Meditativo e sereno, deixou para trás canções que se lêem como um testamento afectivo e moral. E sozinho, à guitarra acústica, fez descer à terra uma noite mais escura em que o seu uivo se afundou no Níger para enfim despontar no Mississippi.

9 de outubro de 2010

Wilson das Neves "Pra Gente Fazer Mais Um Samba"

Abre de forma programática com a frase “pra gente fazer mais um samba/ precisa, meu bem, quase nada/ às vezes um vago desejo/ de alguma paixão já passada/ às vezes um breve perfume/ de alguém que passou na calçada”. E esta ideia de que a música é mais um acto de tradução do que de criação – o que de certa maneira a torna divina e por isso independente do destino dos homens – representa um traço essencial na identidade sambista de Wilson das Neves. Mas porque o samba, para o baterista de 74 anos hoje militante na Orquestra Imperial e nos Ipanemas, é também a própria vida, muitas das canções deste seu terceiro disco de originais – longe dos datados exercícios instrumentais em torno de êxitos internacionais e brasileiros que concentrou em quatro álbuns entre 1968 e 1976 – apontam agora para uma idealização do tempo histórico. Nessa perspectiva, distingue-se no elenco de letristas – que conta ainda com Nelson Rufino, Roque Ferreira, Arlindo Cruz, Nei Lopes, Délcio Carvalho e Vitor Pessoa – a figura tutelar de Paulo César Pinheiro, que tantas vezes sublimou a condição humana e que aqui, em sete temas, vem introduzir características fundamentalmente nostálgicas, como a que em ‘Outono Chegou’ torna a deriva sentimental indistinta dos ciclos da natureza (“o Outono chegou/ no meu peito o arvoredo secou/ já murchou cada ramo de flor/ e a folhagem amarelou”). O conservadorismo da parceria, responsável já por treze sambas em “O Som Sagrado de Wilson das Neves” (1996) e oito em “Brasão de Orfeu” (2004), reforça uma ilusão revisionista da mais dramática beleza: a que integra a voz de Wilson das Neves no primeiro plano de um imaginário que ao longo dos anos ajudou a construir calado e sentado à bateria atrás de Chico Buarque, Clara Nunes, Beth Carvalho ou Elza Soares. Talvez por tudo isso assuma contornos de futuro clássico.

2 de outubro de 2010

"The Roots of Chicha 2 – Psychedelic Cumbias From Peru"

As cordas são titiladas como se queimassem e imagina-se uma colagem tropicalista com ondas a avançar por entre bananeiras. Também na chicha – como no ié-ié mal-amanhado ou no rock dos anos 70 na Indochina – se eleva na mistura uma surf guitar que sacode areia californiana a cada nota. Tal facto, num período anti-imperialista, não deixará de sugerir uma leitura política mas a verdade é que se trata aqui de música ignorada pelas elites. Por isso – ou por efeitos melhor apreciados por estudos de psicofarmacologia – não convence nenhum destes temas quando fala do voo livre dos pássaros ou do esperançoso raiar do sol. O impulso de fuga nas suas melodias andinas – traduzido num aberrante exotismo que requer exclamativas madeiras, uivos elétricos carregados de estrogénio, teclados demonistas e espaciais baixos pendulares – não apaga da memória a sua razão de ser e confirma a evidência de que o Homem procura outra identidade sempre que de pouco lhe serve aquela com que nasce. A chicha – o nome deriva de uma bebida com propriedades talismânicas – espelha o processo. E, ao reunir gravações fixadas entre 1968 e 1981 – isto é, nos anos das ditaduras militares de Juan Velasco Alvarado e Francisco Morales Bermúdez – esta antologia determina-lhe origem numa subcultura marginal da sociedade peruana: a dos ameríndios dos bairros de lata de Lima. Grupos como Los Destellos, Los Shapis ou Manzanita y su Conjunto cantaram em transe, entregaram-se à mais licenciosa metafísica de bailarico, britaram influências (do pop psicadélico à cumbia colombiana) e colocaram-se no exterior de todas as tradições porque pretendiam exclusivamente excarcerar uma cultura. A revolução nunca lhes bateu à porta. Mas Olivier Conan – proprietário do bar e da editora Barbès em Brooklyn e activista nos Chicha Libre – insiste em corrigir a História.

Trailer de "Los Shapis en el Mundo de los Pobres", filme de 1986. É seguir para o YouTube que o dito cujo é genuinamente imperdível.