25 de setembro de 2010

Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim "The Complete Reprise Recordings"

"Um infeliz paralisado num quarto de Hotel, naquela astenia física que precede os grandes acontecimentos, vendo televisão sem parar e cheio de barrigose”, escreveu das profundezas Tom Jobim numa carta de Janeiro de 1967, endereçada a Vinicius, a poucos dias de completar 40 anos e a outros tantos de entrar em estúdio com Frank Sinatra. E não se vislumbra que um único filamento do seu corpo tenha deixado de estremecer desde aquela tarde de Dezembro em que no bar Veloso em Ipanema lhe gritaram “Tom, ligação dos Estados Unidos!”, passando-lhe um dos seus letristas, Ray Gilbert, que lhe disse estar com alguém que lhe queria falar. É difícil imaginar a cena, até porque o filme está por fazer, mas supõe-se que Jobim tenha esboçado um reverente, mudo e afirmativo aceno à sugestão de Sinatra (de que iriam gravar juntos no mês seguinte, que o disco sairia na sua editora, que as canções estavam escolhidas e que as orquestrações seriam de Claus Ogerman) e, após ingestão de um indeterminado número de espíritos, executado a única tarefa ao seu alcance: ir para casa fazer as malas.


Sinatra chegou tarde à bossa nova mas foi a tempo de lhe reformar o molde. Esse era, aliás, o único desafio que enfrentava: imprimir a sua marca num distinto repertório que funcionava há anos como um colorido pano de fundo para as excentricidades da cultura popular norte-americana dos anos 60. Na verdade, entre 62 e 63, uma obra-prima como ‘Desafinado’, ainda que apresentada pelo próprio Jobim, soprada por Stan Getz ou Coleman Hawkins ou vibrando nas cordas vocais de Blossom Dearie ou Julie London, repetia pouco mais que a morada do exótico da qual tinham sido projectados cachos de fruta para a cabeça de Carmen Miranda. E qualquer hipótese de dignidade para o género se esfumava sempre que na rádio Eydie Gormé cantava ‘Blame it on the Bossa Nova’ e Elvis se declarava à ‘Bossa Nova Baby’. Por isso Sinatra esperou. E foi preciso a acção de Sérgio Mendes (lançando ‘Mas que Nada’), Walter Wanderley (com ‘Samba de Verão’) ou João Gilberto (conquistando um Grammy com um “Getz/Gilberto” guiado por Tom) para que sentisse a maré a mudar.
À distância de mais de quatro décadas estas gravações não parecem vir do mesmo planeta – quanto mais do mesmo período – que consagrou Beatles, Doors, Cream, Stones, Who ou Hendrix. O que se encontra nos dez temas de “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim” é o eminentemente novo transmitido por aquele que representa o firmemente antigo. E que essa colisão de valores seja tão subtil, definitiva e afectada por um agente de nostalgia, imprime-lhe um carácter único num contexto musical profundamente revolucionário. Isso, e a confirmação a cada ano que passou que aí se ouvia o estertor do maior cantor do século. Descontando o assassínio da poesia e da métrica (o balanço da ‘Garota de Ipanema’ na silabação de “olha que coisa mais linda mais cheia de graça” bocejado num “tall and tan and young and lovely”, por exemplo), tudo aqui é gracioso e paradigmático. De tal ordem que se repetiu a dose. Mas um “Sinatra-Jobim” com mão sinfónica de Eumir Deodato nos arranjos, gravado e planeado dois anos (que mais parecem duas vidas) depois, nunca haveria de, por ordem de ‘A Voz’, ver integralmente, e até hoje, a luz do dia – as suas 10 canções saíram a conta-gotas em “Sinatra & Company” (71), “Portrait of Sinatra” (77) e “Complete Reprise Studio Recordings” (95). Tudo porque mudou o mundo e porque nessa altura – também por culpa de Sinatra – já a bossa nova tinha morrido e ressuscitado em cruzeiros, casinos, elevadores e esplanadas. Triste é dizer pouco.

18 de setembro de 2010

Toquinho "Seu Violão e Suas Canções, 1" e "2"

Vinicius de Moraes, o “poetinha” que bebendo “uisquinho” tantas vezes cantou sobre “barquinhos” e “prainhas” à “tardinha”, carregou apenas uma mágoa ao longo da década em que fez dupla com Toquinho: ter perdido para a mãe do seu mais íntimo colaborador a possibilidade de lhe encontrar alcunha ou hipocorístico. A tendência para o uso do diminutivo na música popular brasileira – que contribuiu significativamente para a poética da bossa nova – permanece generalizada, mas empregue pela dupla assumiu contornos identitários. Por exemplo, Lorenzo Mammi, o teórico italiano há anos docente na Universidade de São Paulo, sugeriu num ensaio que essa exagerada demonstração de afecto indicava uma resistência em reconhecer a produção artística enquanto trabalho, privilegiando antes relações de amizade. Por sua vez, José Estevam Gava, no livro “A Linguagem Harmônica da Bossa Nova”, sugere que o emprego do sufixo realiza “no âmbito das letras das canções, o mesmo que se pretendia em termos musicais: reduzir, abrandar, subtrair, acalmar… para, com efeito, obter-se a ideia de superlativo” – isto é, trata-se de um diminutivo quanto à forma e de um aumentativo quanto ao significado. Mas ouvindo frases como “se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel” (em ‘Aquarela’), “quando um velhinho com uma flor assim falou” (em ‘O Velho e a Flor), “na emoção desse chorinho carinhoso te pede uma bênção” (em ‘Chorando para Pixinguinha’) ou “enquanto o mar inaugura um verde novinho em folha” (em ‘Tarde em Itapoã), outra hipótese ganhará sustentabilidade: que, em muitas das suas canções, Vinicius e Toquinho ensaiaram uma contínua aproximação ao universo infantil que Vinicius concretizaria só no seu último ano de vida (em 1980, com os dois volumes de “Arca de Noé”) e ao qual Toquinho, desde então, frequentemente regressou (de “Casa de Brinquedos”, em 1983, até “Canção dos Direitos da Criança”, em 1997). E, de certa forma, as interpretações incluídas nestes dois discos – que reeditam agora em separado o que em 1996 a Paradoxx lançou no duplo “Toquinho e Suas Canções Preferidas”, e que além de dezoito parcerias com Moraes incluem obras partilhadas com Jorge Ben, Chico Buarque ou Mutinho – confirmam esta impressão, centrando-se numa submissa e branda missão melódica e rítmica que, para o bem e para o mal, e embora exclusivamente dependente da destreza ao violão, nunca se desvia da sua matriz. Mas é também pela humildade e quase programática clareza com que o fazem que se adivinham os traços de carácter de alguém que – sendo autor – delas nunca se quis pôr à frente. E essa é uma invulgar lição que poucos conseguirão dar.

11 de setembro de 2010

Ney Matogrosso "Beijo Bandido"

Retiradas de ‘Invento’, a canção de Vitor Ramil que diz “Vento (…) / leva um beijo perdido / um verso bandido / um sonho refém”, as palavras que dão título a este disco (no Brasil editado em 2009 mas este ano lançado em Portugal) enunciam um programa eminentemente matogrossiano. E evocar a sombra da traição no mais íntimo dos gestos públicos serve, obliquamente, para que Ney se debruce novamente sobre a impossibilidade do amor – ou melhor, sobre o seu fim. Porque repetidamente se manifestam irrealizáveis as suas promessas, não se pode dizer que lhe falte – o cantor torna a revelar-se um exemplar curador de canções – matéria-prima para o desenvolvimento de um discurso que mesmo nas suas insignificâncias identifica o substancial (em ‘De Cigarro em Cigarro’, de Luiz Bonfá, declama “outra noite esperei / outra noite sem fim, aumentou meu sofrer / de cigarro em cigarro / olhando a fumaça no ar se perder”, enquanto que em ‘Nada por Mim’, dos Kid Abelha, esclarece que “você me diz o que fazer / mas não procura entender / que eu faço só pra te agradar / me diz até o que vestir / com quem andar, onde ir / mas não me pede pra voltar”). A unidade temática num repertório que atravessa décadas – incluindo ‘Medo de Amar’, de Vinicius de Moraes, ‘A Bela e a Fera’, de Chico Buarque e Edu Lobo, ‘À Distância’, de Roberto e Erasmo Carlos ou ‘Doce de Coco’ de Hermínio Bello de Carvalho e Jacob do Bandolim – implica o reconhecimento deste ideário que desfia paixão e desejo. Também os arranjos, escritos por Leandro Braga para piano, violoncelo, violino e percussão, e que aproximam este de álbuns como “Estava Escrito”, “As Aparências Enganam” ou “Pescador de Pérolas”, o sublinham. Mas mais importante será comprovar como a voz do quase septuagenário se adequa a minúcias interpretativas que só aí ganham plena expressão. Porque, em Ney, é frequente cumprirem-se as canções.

4 de setembro de 2010

"Roots of OK Jazz: Congo Classics 1955-1956"

Não se tratará de uma revolução – mas, essa, sem este combustível não seria a mesma. Porque as consequências da entrada em estúdio representariam para um punhado de rebeldes o acto inaugural de um discurso que viria a mudar a música moderna do Congo Belga e de grande parte das nações africanas pós-independentistas. E se a receita parece conhecida – comprovando o fascínio da época pelas formas cubanas, por uma certa ideia de jazz descoberta nos discos de Louis Armstrong ou da orquestra de Duke Ellington, pelas baladas mediterrânicas de Tino Rossi ou por aquilo que no mundo despontava colado à etiqueta rock – a verdade é que raramente se deu a provar tão crua. No fundo, testemunha também outra transformação quase tão significativa – que se deu antes do baptismo da O.K. Jazz, quando em 1953 Bill Alexandre emigrou para Léopoldville de Gibson debaixo do braço – ao documentar os primeiros temas à guitarra eléctrica daquele que viria a ser aclamado como o seu feiticeiro. François Luambo, ou Franco, tinha então dezasseis anos e acompanhava vocalistas no estúdio Loningisa ao lado de outros ‘músicos de sessão’, como o guitarrista Dewayon, os cantores Vicky Longomba e Philippe Rossignol Lalande, o percussionista Saturnin Pandi, o contrabaixista De La Lune, o clarinetista Jean Serge Essous e o saxofonista Nino Malapet. Ganhando nome a 6 de Junho de 1956, ao conseguirem uma actuação no OK Bar (graças à popularidade da African Jazz o apelido era obrigatório), dariam os primeiros passos num caminho bem conhecido e que conduziria ao impacto planetário do soukous. Mas estas vinte canções que o precederam, equilibradas entre a mais desarmante ingenuidade e a uma inesperada maturidade, espelham ainda a sociedade colonial de que dependiam e da qual com todas as forças tentavam escapar. Nessa perspectiva, são uma inesquecível crónica de juventude.