30 de dezembro de 2010

Melhores do Ano

Na edição de hoje do Expresso publica-se uma versão concentrada desta lista (afectiva essa, alfabética esta), muito dependente do acompanhamento que para o jornal faço das antologias de música africana (e não só) lançadas ao longo do ano. No pequeno texto que a complementa faço referência aos discos de jazz aqui incluídos - e que resultam de uma inédita fragmentação da cena internacional - e por razões de espaço omito a produção brasileira de que são insignes representantes Marcelo Jeneci, Mauricio Takara e Wilson das Neves. (Nota: em virtude de um licenciamento europeu chegou às lojas portuguesas o álbum do veterano baterista da Orquestra Imperial e dos Ipanemas, mas, na verdade, e sem que alguém pareça dar-lhes pela falta, nunca como no último par de anos - a que não será indiferente a sangria artística nas multinacionais - esteve este mercado tão alheio às novidades que pelo Brasil vão sendo editadas, com todo o lento mas inevitável arrastar para a extinção cultural que o facto encerra. É mais um).

Ali Farka Touré & Toumani Diabaté “Ali and Toumani” (World Circuit)
Atomic “Theather Tilters Vol. 1” (Jazzland)
Best Coast “Crazy For You” (Mexican Summer)
Bola Johnson “Man No Die” (Vampisoul)
Bonnie 'Prince' Billy & The Cairo Gang “The Wonder Show of the World” (Drag City)
D.O. Misiani and Shirati Jazz “The King of History: Classic 1970s Benga Beats From Kenya” (Sterns)
Emeralds “Does it Look Like I’m Here?” (Mego)
Issa Juma and Super Wanyika Stars “World Defeats the Grandfathers: Swinging Swahili Rumba 1982-1986” (Sterns)
Jean-Marc Foltz, Matt Turner & Bill Carrothers “To the Moon” (Ayler)
Jeb Bishop Trio “2009” (Better Animal)
Jim O’Rourke “All Kinds of People ~ Love Burt Bacharach” (AWDR/LR2)
Jon Irabagon “Foxy” (Hot Cup)
Julian Lynch “Mare” (Old English Spelling Bee)
Konono Nº1 “Assume Crash Position – Congotronics 4” (Crammed)
Lobi Traoré “Rainy Season Blues” (Glitterhouse)
M. Takara 3 “Sobre Todas e Qualquer Coisa” (Desmonta)
Marcelo Jeneci “Feito Pra Acabar” (Slap)
Nate Wooley & Paul Lytton “Creak Above 33” (Psi)
Oneohtrix Point Never “Returnal” (Mego)
Psychedelic Aliens “Psycho African Beat” (Academy LPs)
Ray Anderson-Marty Ehrlich Quartet “Hear You Say” (Intuition)
Rodrigo Amado, Taylor Ho Bynum, John Hébert & Gerald Cleaver “Searching for Adam” (Not Two)
Schlippenbach Trio “Bauhaus Dessau” (Intakt)
Sun Araw “On Patrol” (Not Not Fun)
Tabu Ley Rochereau “The Voice of Lightness Vol. 2: Congo Classics 1977-1993” (Sterns)
Tomas Fujiwara & Taylor Ho Bynum “Stepwise” (Not Two)
Wadada Leo Smith & Ed Blackwell “The Blue Mountain’s Sun Drummer” (Kabell)
Wilson das Neves “Pra Gente Fazer Mais Um Samba” (Totolo)
Vários “Lagos Disco Inferno” (Academy LPs)
Vários “To Scratch Your Heart: Early Recordings from Istanbul” (Honest Jon’s)

Há uma razoável dose de arbitrariedade na selecção indiegena e, ao contrário daquilo que poderia à primeira vista parecer (porque as compilações quenianas, nigerianas, etc, quase só me trazem novidades), é precisamente nessa que soçobro à nostalgia: Best Coast projectando a reunião de Throwing Muses/Belly com Phil Spector, e Emeralds e Oneohtrix Point Never a dispararem flashes hipnagógico-decadente-oitentistas para o "Risky Business" (Tangerine Dream), "Blade Runner" (Vangelis) ou "Sex, Lies & Videotape" (Cliff Martinez).

23 de dezembro de 2010

Arthur Verocai “Mochilla Presents Timeless”

Há grandes discos editados no Brasil em 1972. E, talvez, daqueles que equilibram energia cumulativa e independência de espírito, se entendam hoje como clássicos “Se o Caso É Chorar” de Tom Zé, “Dança da Solidão” de Paulinho da Viola, “Elis” de Elis Regina, “Ben” de Jorge Ben, “Quem Sou Eu?” de Ivan Lins, “Expresso 2222” de Gilberto Gil, “Acabou Chorare” dos Novos Baianos e o álbum homónimo de Amado Maita. Mas há nesse ano mais dois casos que são como a agulha que une todos os outros: “Clube da Esquina” de Milton Nascimento, Lô Borges et al. e a estreia de Arthur Verocai, há muito perdida na poeira do tempo apesar da reedição pela Ubiquity em 2003. Em comum possuem uma atmosfera de desencanto sublimada pela evocação do país rural e a capacidade de logo transformar o sentimento em manifesto. E, sobretudo, elasticidade rítmica, urgência melódica, precisão orquestral, vanguardista sentido de risco, intenção política ou engenho na escrita. Tudo guiado pelo sopro da liberdade e animado pela imaginação de quem sabe converter meia dúzia de metros quadrados de estúdio num palco para o passeio inaugural da humanidade. Quanto muito, diferem ao concentrar-se o segundo na ignorada revelação ao mundo de um autor total (que marcou com os seus arranjos canções de “Índia” de Gal Costa, de “Nós” de Johnny Alf, de “Negro é Lindo” de Jorge Ben, de “Carlos, Erasmo” de Erasmo Carlos” ou do LP de 76 de Tim Maia). Isso e quadrantes estéticos que, ao contrário de Milton, não visitam a nueva trova ou África mas se instalam no coração da América de Miles, Gaye, Zappa, ou Crosby, Stills & Nash. A 15 de Março de 2009, em Los Angeles, foi pela primeira vez possível a Verocai mostrá-lo ao vivo – aumentado com temas mais recentes e apoiado numa constelação de convidados – acabando assim com a mais longa noite da história da música popular brasileira.

11 de dezembro de 2010

Sugestões de Natal


Vários “Roberto Carlos – Emoções Sertanejas”

Lágrima fácil, maquilhagem brilhante, muita bota de camurça e um mar de chapéus stetson: a nação sertaneja paga a dízima. Destacam-se a viola caipira de Almir Sater em ‘O Quintal do Vizinho’, Chitãozinho & Xororó babando as sílabas de ‘Eu Preciso de Você’, Elba Ramalho estremecendo cada nota de ‘Esqueça’ e Dominguinhos e Paula Fernandes fazendo de ‘Caminhoneiro’ uma obra-prima por uma noite.

Cheikh Lô “Jamm”

Lô desenvolveu uma identidade global (há cinco anos andava pela Bahia) entretanto valorizada pela multiplicação no mercado de títulos provenientes da costa ocidental africana. Agora, ao evocar música da Guiné, do Mali, da Costa do Marfim e do Senegal, aproxima-se de um contemplativo estado de graça firmemente ancorado na sua voz e no discernimento com que envolve convidados como Tony Allen ou Pee Wee Ellis.

Tom Zé & Banda Ao Vivo “O Pirulito da Ciência”

Suspeitava-se que a coisa não andaria longe da adaptação teatral do “Super Mario Bros” por um escrupuloso discípulo de Brecht. E, sim, este espectáculo retrospectivo é um épico pós-materialista sobre as conquistas de um operário do samba que sintetiza 40 anos de canções, enquadra impulsos populistas numa estética de vanguarda, faz do palco uma experiência sociológica e de Tom Zé nada menos que um povo.

Dave Holland / Pepe Habichuela “Hands”

O contrabaixista ruma para águas desconhecidas e – ao contrário da experiência de Charlie Haden com Carlos Paredes – não perde o norte. O que não impede que os seus dois originais sejam consequências menores da feliz exposição aos Habichuela – clã central à história do flamenco com abrangente impacto através dos Ketama – e que esteja no seu melhor apenas quando se cola às guitarras como uma sétima corda.

Vários “Palenque Palenque: Champeta Criolla & Afro Roots In Colombia 1975-1991”

Coloque-se um destes 21 temas num alinhamento de afrobeat, highlife e soukous e dificilmente se dará pelo salto geográfico. Claro que a ideia era precisamente essa quando pelas cidades costeiras colombianas nomes como Wganda Kenya, Aberlado Carbono ou Son Palenque competiam com a música que chegava de África tendo como única arma a marijuana. O resultado é uma moca bizarro-tropical que bate até hoje.

4 de dezembro de 2010

Asmara All Stars "Eritrea's Got Soul"

A origem – Asmara, a ‘piccola roma’ da ex-colónia italiana – é o programa. Já o ‘got soul’ soa a informação privilegiada. Só que a enigmática justaposição de tão extraordinária procedência com um postulado de múltiplas manifestações na história da música popular – da ‘Woman’s Got Soul’ dos Impressions à ‘Reggae Got Soul’ dos Toots and the Maytals – funciona como uma suspensão da realidade. E nem mesmo calculadas declarações do responsável pelo projecto antecipam o espanto com que se descobre o que em parte permanecia oculto desde o início dos tempos. Que assim seja, se o preço a pagar pela restituição da dignidade a uma cultura é o leve franzir de sobrolho que motivam frases (de Bruno Blum, ilustrador francês, activista do tipo foice-em-seara-alheia e famoso autor de versões em ‘dub style’ do Serge Gainsbourg pós-“Aux Armes et Caetera”) como “juntos, criámos um novo som eritreu: místico, espiritual, excitante, carregado de tradição, uma mistura original”. Porque é fácil verificar a justeza dos adjectivos e sentir que ainda assim fica tudo por dizer. Por exemplo, que, apesar da vizinhança, são oblíquas na Eritreia as aproximações ao jazz etíope ou a ritmos somali, que são autóctones técnicas de produção que em Kingston se tomariam pelas de Niney the Observer, que se relacionam com a de outros nómadas a milhares de quilómetros (Tinariwen, etc) as melodias das suas tribos do Sahel, que nada explica o aventureiro espírito de instrumentistas como Noah Hailemelekot ao piano elétrico e de Aron Berhe ao saxofone ou que esta étnica manta de retalhos que combina nove obscuros dialectos jamais se perde na tradução. Até, por fim, abrir a sua audição as portas ao sonho e se vislumbrar o momento em que se soltará de vez um país com menos de vinte anos de independência e que em índices de direitos humanos e liberdade de imprensa surge depois da Coreia do Norte.