A origem – Asmara, a ‘piccola roma’ da ex-colónia italiana – é o programa. Já o ‘got soul’ soa a informação privilegiada. Só que a enigmática justaposição de tão extraordinária procedência com um postulado de múltiplas manifestações na história da música popular – da ‘Woman’s Got Soul’ dos Impressions à ‘Reggae Got Soul’ dos Toots and the Maytals – funciona como uma suspensão da realidade. E nem mesmo calculadas declarações do responsável pelo projecto antecipam o espanto com que se descobre o que em parte permanecia oculto desde o início dos tempos. Que assim seja, se o preço a pagar pela restituição da dignidade a uma cultura é o leve franzir de sobrolho que motivam frases (de Bruno Blum, ilustrador francês, activista do tipo foice-em-seara-alheia e famoso autor de versões em ‘dub style’ do Serge Gainsbourg pós-“Aux Armes et Caetera”) como “juntos, criámos um novo som eritreu: místico, espiritual, excitante, carregado de tradição, uma mistura original”. Porque é fácil verificar a justeza dos adjectivos e sentir que ainda assim fica tudo por dizer. Por exemplo, que, apesar da vizinhança, são oblíquas na Eritreia as aproximações ao jazz etíope ou a ritmos somali, que são autóctones técnicas de produção que em Kingston se tomariam pelas de Niney the Observer, que se relacionam com a de outros nómadas a milhares de quilómetros (Tinariwen, etc) as melodias das suas tribos do Sahel, que nada explica o aventureiro espírito de instrumentistas como Noah Hailemelekot ao piano elétrico e de Aron Berhe ao saxofone ou que esta étnica manta de retalhos que combina nove obscuros dialectos jamais se perde na tradução. Até, por fim, abrir a sua audição as portas ao sonho e se vislumbrar o momento em que se soltará de vez um país com menos de vinte anos de independência e que em índices de direitos humanos e liberdade de imprensa surge depois da Coreia do Norte.
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