27 de junho de 2020

Sorensen: Concertos (Dacapo, 2020)

É uma obra marcada pela alusão, pela elisão, pela ilusão, tão simples e complicada quanto aprender a dizer as vogais. Às vezes põe-se quieta, e parece esconder-se ou, então, que dorme e sonha com sons distantes num canto qualquer. Terá sido como reação a conclusões destas que, em entrevista à “Seismograf”, em 2018, Bent Sorensen disse assim: “É verdade que a minha música do século XX passa frequentemente por pianissimos e registos agudos. Mas sinto que estou a fazê-la aproximar-se mais do registo grave e dos fortissimos. Se calhar tinha medo que desaparecesse de vez!” Pois: é o dilema de todo o eremita que se preze, quando se apercebe que alhear-se dos outros, perder-se do mundo e perder-se para o mundo, na prática, serve mais para esbulhar o humanismo do que propriamente para o engrandecer. “Certa vez compus uma peça chamada ‘Cortejo Fúnebre’”, continuava o dinamarquês. “A combinação desse título com uma música muito suave fez com que na cabeça de muita gente ela se tornasse uma espécie de assinatura minha. Mas eu não estava deprimido quando a escrevi. Nunca fui um desses compositores de romantismo do adro da igreja!” Seja como for, há seguramente quem tenha a tendência de falar em voz baixa nas imediações das suas partituras. Escutando “La Mattina”, “Serenidad” e “Trumpet Concerto”, que, em estreia, Leif Ove Andsnes (piano), Martin Fröst (clarinete) e Tine Thing Helseth (trompete) respetivamente nos trazem (o primeiro e a última com a Orquestra de Câmara Norueguesa e o maestro Per Kristian Skalstad; o do meio com a Orquestra Sinfónica Dinamarquesa dirigida por Thomas Sondergard), até se aconselha a circunspeção, não se vá perder tudo aquilo que entre parênteses, sussurros e surdinas têm para nos dizer – por outro lado, confirma-se que estas já não são bem aquelas típicas pautas de Sorensen que se diriam entremeadas por páginas de pergaminho medieval, emaciadas pela gordura dos dedos, embaciadas pela cera derretida, com a luz de lamparinas de azeite a projetar fantasmas de eras remotas nas paredes. Aliás, o concerto para piano teve a sua génese num bar chamado Broadway e podia chamar-se ‘In the Wee Small Hours of the Morning’. Fica a dica!

John Scofield, Bill Stewart, Steve Swallow “Swallow Tales” (ECM, 2020)


Na sua antologia de poesia grega clássica, Yourcenar chama-lhe “Chanson de Rhodes”, mas no Egeu é conhecida como “Canção da Andorinha” e acaba assim: “Abre, abre a porta à andorinha/ Não somos velhacos, somos meninos!” Tal a diabrura destas pautas, bem podia ser o mote desta homenagem de Scofield a um velho mentor: Steve Swallow – e só não lhe deu o título de “Swallow Songs”, presume-se, porque a Bohuslän Big Band se lhe antecipou, em 2008. Seja como for, o ponto é esse: associar esta música ao despertar da primavera (em inglês – relembre-se – swallow traduz-se por andorinha), coisa que não se via esta gente a fazer (Bill Stewart que nos perdoe) desde que em “This Meets That” (EmArcy, 2007) teve a infeliz ideia de tocar ‘House of the Rising Sun’ e ‘(I Can’t Get No) Satisfaction’. Mas nada disso importa muito, quando se faz música assim – aliás, tivéssemos em mãos um disco póstumo, já nos estava a ver a fazer coro com Carlos do Carmo e a cantar: “Por morrer uma andorinha/ Não acaba a primavera”. Além de que é Scofield quem traz o assunto à baila: “Conheço grande parte destas canções há uns bons 40 anos,” diz. Em notas de apresentação, refere-se ao tempo em que estudava em Berklee, quando o “Real Book” (com standards e peças de Swallow, Paul Bley, Chick Corea, Pat Metheny ou Steve Kuhn) andava de mão em mão entre os alunos (ou de fotocopiadora em fotocopiadora, para ser exato), “nerds do jazz que tentavam aprender a todo o custo”, recorda. Trata-se de uma maneira de ver as coisas – outra, não menos fundamental, e inúmeras vezes comprovada no passado, é que, neste contexto, o mentor não possui menor fascínio e admiração pelas capacidades expressivas do mentorado. Num depoimento incluído em materiais promocionais da ECM, eles sintetizam-no de modo perfeitamente osmótico: “Por vezes, quando tocamos em conjunto, parece que temos em mãos um só instrumento”, uma guitarra aumentada. Em versões definitivas de ‘Falling Grace’, ‘Portsmouth Figurations’, ‘Eiderdown’ ou ‘Hullo, Bolinas’, anteriormente imortalizados por Gary Burton ou Bill Evans, é desta que, como a andorinha de “O Príncipe Feliz”, de Oscar Wilde, Swallow vai parar ao paraíso.

20 de junho de 2020

Gesualdo: Tenebrae (Glossa, 2020)


Em notas de apresentação, o esloveno Mladen Dolar relembra que há algo de “profundamente perturbador e inescrutável” na música de Carlo Gesualdo (1566-1613), e nestes “Responsórios para o Ofício de Trevas da Semana Santa” em particular: “É como se a sua obra, perfeitamente integrada no quadro litúrgico [do seu tempo], e derivada do canto gregoriano, fosse impelida a ultrapassar as suas fronteiras e a transgredir a sua época e o seu contexto,” diz. Depois, claro está, em breves traços biográficos, defende aquela espécie de desígnio penitencial que a enquadra, e o que salta à memória é o gótico sotaque de Werner Herzog, nos comentários de “Death for Five Voices” (1995): “Gesualdo viveu os seus últimos 16 anos de vida neste castelo, isolado, atormentado, dilacerado, perseguido por demónios. Os seus madrigais são a expressão de um mundo espiritual mergulhado em loucura”. Parece Bram Stoker. Tudo, conforme formulou Julio Cortázar, porque “encontrou a sua mulher na cama com outro homem e os matou” – bom, também os mutilou, é certo, o que na altura, no mínimo, teria sido razão para uma equipa da CMTV ir ao local. Mas, não importa – ao descrever as ousadias formais de Gesualdo, aquela espécie de cromatismo em estado gasoso de que se socorria, o seu tratamento do texto, que obriga a instalar uma máquina de criptografia nos ouvidos, a pulverização da consonância, mais esgarçada que as calças de ganga de adolescentes, etc., Dolar, Herzog e Cortázar convocam toda e qualquer futilidade ao seu alcance para fazer de Hamlet e exclamar: “O mundo está fora dos eixos!” Em “As Portas da Percepção”, de Huxley, que nenhum deles citou, tudo isto é fruto da psicose da contrarreforma: “Mas pouco importa que [seja uma obra] em pedaços. O conjunto pode ser caótico, mas cada fragmento individual está no sítio certo, em representação de uma Ordem Superior, que prevalece.” Coincidentia oppositorum, dizia-se. “Portanto, a desintegração pode ter as suas vantagens. Mas é perigosa. E se não encontramos o caminho de volta?” Pois, após decompor a obra de Gesualdo em finas partículas, o Graindelavoix volta a aglomerá-la num sinal de Saída.