27 de setembro de 2014

“I Love Kuduro”, de Mário Patrocínio


Amplamente sugestivo, o plano inicial de “I Love Kuduro”, ao largo da baía de Luanda, é, também, o mais conscientemente cinematográfico e historiográfico entre os que o documentário possui. Mas qualquer perturbação narrativa se desfaz logo que Mário Patrocínio tira o foco das costas de um remador em tronco nu para de seguida o ajustar aos contornos de uma cidade com mais gruas do que prédios. Nesse segundo, o que o realizador dá a conhecer é uma realidade que, minutos depois, se manifesta deste modo na boca de Shunnoz Fiel: “Eu estou aqui e sou Angola”. E é dessa curta introdução, ou melhor, do sigiloso murmúrio das águas que lhe perfaz a banda-sonora, que vai emergindo um espaço urbano que se diria ter escapado ao apocalipse por um triz. É apropriado que assim seja, pois, de facto, sem Guerra Civil não teria havido kuduro. E é nessa evidência que, de maneira mais ou menos eufemística, se vai tropeçando a cada capítulo do filme. Fiel fala do conflito enquanto ‘o grande formador’; Francis Boy relata uma fuga em família do Malanje; Nagrelha diz “Nossos avós já sofreram muito”; Manda Chuva, dançarino, conclui “A guerra é que nos faz fazer tudo o que você costuma ver”. Só Eduardo Paim não vislumbra a incongruência de analisar o kuduro à luz do passado. Mas é nesse inultrapassável paradoxo – o de que, tendo tudo a ver com a cultura angolana de hoje, quase nenhum ponto de contacto mantém com a música angolana de ontem – que, para o bem e para o mal, reside o busílis. E será isso o que permitiu que a ordem pimba internacional (de Don Omar e Shakira a Pitbull) e lusófona (de Emanuel e José Malhoa a Adriana Lua) o tenha prontamente liofilizado. Este extraordinário objeto devolve-lhe a vida.

Elia y Elizabeth “La Onda de Elia y Elizabeth” (Vampisoul, 2014)



Não se pode dizer que tivessem nascido em berço de ouro. Mas duvida-se igualmente que gozassem de qualquer intimidade com ambientes mais favoráveis à dissensão política. E, no entanto, na Colômbia de inícios de 70, ao cantarem “Com o pôr-do-sol tudo termina/ Deves ser forte e não morrer tu também/ Forte e resistir”, não se vislumbrava mensagem mais adversa aos interesses da Frente Nacional. Isto numa melodia cuja ambição última parecia ser a de se tornar suave como a brisa (pense-se no que, em Portugal, faziam contemporaneamente Mini Pop, Irmãs Muge ou Techa). E tudo porque, lá está, Elia Fleta Mallol, uma jovem de 19 anos, coadjuvada por Elizabeth, sua irmã, de 18, encontrou no mais cativo da sua existência matéria para reescrever o livro da vida e negociar com o que possuem os outros de mais arbitrário. Escutando hoje, nesta antologia, as canções que gravaram entre 1972 e 1973, extraídas ao seu único par de LP, em que as acompanhava o conjunto Onda Tres, de Jimmy Salcedo, esbarra-se num gesto tão irredutível que se diria derivar da ação de quem desvendou os mistérios do mundo mal abriu os olhos pela primeira vez, quando, na realidade, é o inverso disso mesmo o que aqui se celebra. Pois é o resíduo de insubmissão que ainda se deteta no espírito humano quando nada mais o anima aquilo que esta música enforma. Talvez por isso, desde então, em campos de refugiados, em focos de miséria, alienação e junto dos que sofrem à mão da tirania, se tenha Elia dedicado a administrar cuidados paliativos a um planeta em extinção. Há 40 anos, ao precocemente compor ‘En los días en que era demasiado joven’, não estava a fazer outra coisa.

Nicola Benedetti “Homecoming: A Scottish Fantasy” (Decca, 2014)


O vínculo não podia ser mais institucional. Mas o impulso, esse, vem de há muito. Afinal, Benedetti, membro da Mui Excelente Ordem do Império Britânico, crê que mostrar a sua herança cultural possui “uma relevância inata para tudo aquilo que se é”. Afirma-o numa cuidada apresentação de “Homecoming” em que, às tantas, como os políticos, fica sem saber a quem se dirigir. Isto porque, mais que diminuir o fosso entre independentistas e unionistas, a natural do Ayrshire com perfumada ascendência italiana ambiciona algo à primeira vista ainda mais imprudente: aproximar o que há muito existindo em simultâneo nunca se provou propriamente conciliável, isto é, “música clássica e folclore escocês”. A coincidência dessa imperiosa necessidade com o intervalo de tempo em que o referendo era o único assunto em cima da mesa não terá sido calculada. Nem poderá ser lida à luz de factos recentes a escolha de indumentária para a foto de capa: um vestido em xadrez concebido por Vivienne-“Odeio Inglaterra”-Westwood. Dado que, de facto, a violinista comporta-se aqui um pouco à semelhança da protagonista de “Outlander” – série televisiva que decorre em parte no período da Guerra Jacobita e que permanece conspirativamente por estrear no Reino Unido –, vagueando por um tempo que não é seu numa terra que não é inteiramente sua, mistificada por um tumulto alimentado a história e fantasia. Na peça titular de Bruch, Benedetti está bem-comportada. Nas restantes, um vendaval de rabecas, pífaros, acordeões e baladas em gaélico, está como uma menina de boas famílias cuja tendência para o palavrão leva a que toda a gente pense: ora aí está um espírito independente.

Sérgio Mendes & Brasil ’66 “Stillness” (Soul Jazz, 2014)



A sensação era de déjà vu. A propósito, atentando à capa, dir-se-ia até que se transplantavam Crosby, Stills, Nash & Young para a colina em que John Lennon e Yoko Ono inocentemente repousavam em “Plastic Ono Band”. Ou seja, não sem ironia, “Stillness” restabelecia a ordem natural das coisas – afinal de contas, a mudança – sob o signo da quietude. Nada de estranho naquele que, tendo já saboreado como poucos o sucesso, havia há muito convertido errância em identidade e transformação interior em destino. Aliás, só a camisa às cornucópias de Sérgio Mendes, prontamente coberta no verso do LP por um invernoso casaco de peles, denuncia a época de que o disco provém. Por isso, talvez, uma seleção de repertório que aponta para um plácido Laurel Canyon em que Joni Mitchell, Gram Parsons, Jackson Browne ou Richie Furay tinham domesticado questões mais prosaicas, de corações partidos à febre dos fenos. Mas, também, pois não se fala aqui propriamente de seitas, para algo que terá ficado da década de 60: saber escutar os outros. Combinadas com testemunhos de independência espiritual chegados do Brasil, eis ‘Chelsea Morning’, com letra escrita pelo trânsito que passava junto à janela de Mitchell, ou ‘For What It’s Worth’, em que Stills observava o impacto das forças de repressão na ‘verdade das ruas’. Tudo isto o proverbial passo atrás para que depois se dessem dois à frente? Nem por sombras. Mas, quiçá, nesse 1970, a necessária pausa para respirar de que precisa a música sempre que se prepara para um recuo ainda maior. Ouça-se, já sem Lani Hall e assinados por Brasil ’77, “País Tropical” ou “Primal Roots”, os tomos que se lhe seguiram.

20 de setembro de 2014

Rodrigo Amado Motion Trio & Peter Evans "Live in Lisbon" & "The Freedom Principle" (NoBusiness, 2014); Rodrigo Amado "Wire Quartet" (Clean Feed, 2014)



Peter Evans goza de tão privilegiada relação com Portugal que este nem é o seu primeiro “Live in Lisbon”. Esse gravou-o em 2009, ao longo de uma atuação em quarteto no Jazz em Agosto. E pela sua discografia, de modo mais ou menos nominal, encontra-se o enigmático “Scenes in the House of Music”, registado na Casa da Música, e o elucidativo “The Coimbra Concert”, captado no Salão Brazil. Em maio deste ano tocou no Panteão Nacional, em Lisboa, e na Culturgest, no Porto. E daqui a duas semanas estará no Barreiro para um concerto em quinteto e uma master class no mesmíssimo festival, o Out.Fest, a que Rodrigo Amado conduzirá o Wire Quartet. De tudo isto – e porque Evans se revelou uma força decisiva na criação de formas contemporâneas de expressão para trompete – tem ficado um balanço algo hagiográfico. Mas instantes há em que a prevalência do seu modelo comunicacional se prova eminentemente corruptora. Atente-se ao que se passou a 16 de março de 2013, no Teatro Maria Matos, durante uma reunião com Amado, Miguel Mira e Gabriel Ferrandini – o Motion Trio. Aí estiveram as cifradas figuras sinusoidais de que é intérprete exclusivo, a tradução musical da dispneia de que é praticante único, o retrato em pessoa da higidez e uns hálitos e humores tão voláteis que roçavam a bipolaridade, arsenais de grasnidos, guinchos e grunhidos. Um idioma tão invulgar, indecente e ilícito que, por vezes, quem consigo dividia o palco parecia estar a participar numa sessão de terapia da fala após um trauma. Daí resultava também a impressão de se fazerem ouvir, de uma só vez, dois discos em diferentes rotações. Coisa que a imagem parcial dessa noite, “Live in Lisbon”, ameniza num par de temas. Escalpelam-se aqui ritmos e timbres de maneira mais democrática e dispersa-se a tendência para a anulação mútua. Evans não é só um R2-D2 com mau génio, mas é óbvio que Amado lhe traz ao de cima o que de mais perverso possui e, por momentos, o que se examina é um dueto entre o saxofonista e um mimus polyglottos. Já com Mira, no fim de ‘Conflict is Intimacy’, o norte-americano rebenta plástico-bolha e joga ténis de mesa, deliciado com as múltiplas heresias que o seu instrumento lhe coloca à disposição. ‘Music is the Music Language’ é mais axiológico. E dir-se-ia, até, que se aceita o que Evans produz enquanto ficção, não tanto como realidade, ainda que se contrarie assim uma prática – a da música improvisada – em que normalmente sobressaem aspetos coletivistas. Amado convoca um tom mais inerte e tolhido do que o habitual, torna-se rugoso e rigoroso, morde notas e dissipa o manto de futilidade que o envolve com o mesmo esforço com que os restantes elementos do trio se tentam livrar das receitas que Evans lhes prescreve. Já este tem vagar para tudo – ora ameaça tocar o “Concerto para Trompete em Mi maior”, de Hummel, ora se propõe a anunciar uma tourada – e recorda o relato daqueles que, implicados num acidente de viação, asseguram ter assistido em câmara lenta ao desenrolar dos acontecimentos.
Passados dois dias, curiosamente, o grupo entrava em estúdio. E “The Freedom Principle” documenta esse encontro em que Evans se declarou um pivô cultural mais sutil e menos autónomo, não obstante permanecer antitético e contaminado por uma mentalidade de trincheira. A abrir o CD, no tema titular, a bateria de Ferrandini movimenta tropas agitadamente, no violoncelo de Mira atropelam-se as vozes dos inocentes e esquadrinha os céus o saxofone de Amado à medida que Evans solta o aviso de ataque aéreo. Pouco depois, o trompete é uma viatura a rasgar chuva miudinha encosta acima e dá-se uma cena de perseguição com dois competidores a ultrapassarem-se em curvas escorregadias e apertadas. É um espaço de improvisação simultânea em que não é apenas Evans que vai sem piedade no encalço das suas ideias. A estrada, junto ao mar, aparenta levar a um cemitério de navios: um zéfiro dirige gaivotas, respondem sirenes de nevoeiro, o ar salgado inquieta campainhas e afrouxa o chiar de roldanas enferrujadas, ondulam chapas. Rodrigo identifica o tom queixoso de que comungaram quer os saxofonistas de hard bop quer os de free jazz e sonda a paisagem. De um farol entrevê-se a promessa de bom tempo e talvez seja por isto que se promoveu esta viagem. A sensação desfaz-se com um solo de Evans em que derrapam pneus, estalam elásticos, travam sapatilhas num campo de basquetebol, não se calam os vizinhos nem aquele tipo chato numa festa, sintetizam-se uns 200 anos de música para trompete e dá-se mostras de se vislumbrarem outros 200. Em ‘Shadows’ trata-se de ciclos: num filme com fotogramas acelerados, Evans é um miúdo a fazer barulhos de motor com a boca enquanto brinca com carrinhos, depois é um adolescente a dar beijinhos e logo de seguida resmunga como um velho rabugento. O escopo de Amado é menor e mais alheado da ação: pinta um episódio da vida doméstica em que as personagens se diriam saídas do teatro cabúqui. E sempre que se suspendem os sopros dão-se surpresas: o baterista e o violoncelista vêm ver a obra, cercam-na de andaimes e cobrem-na de outra cor. A sua forma de agir é tão contrária à comum que se caracteriza com frequência em termos negativos, mas naquelas ocasiões em que se confundiria o que aqui se passa com a representação de um quarteto de jazz particularmente desalinhado descrever-se-ia uma secção rítmica que vem mais de dentro da música do que de baixo. Fechando o álbum, em ‘Pepper Packed’ soa a corneta de caça que larga os beagles atrás da raposa e um epigramático solo de Evans, em que só faltou o “Voo do Moscardo”, de Rimsky-Korsakov, simboliza perfeitamente a facilidade do seu autor em acumular informação superficial e o delinquente deleite que tem em divulgá-la. Alienado, Amado estende notas como um saxofonista a tocar debaixo de uma ponte e Evans corre poeticamente até si. Enleiam-se instantaneamente numa linha melódica e lança-se a dúvida se não haveria, então, uma peça a passar para o papel. Aliás, a questão é: sentir-se-iam mais ou menos orgulhosos se o fizessem?
Verifica-se tanto de revogatório na experiência de Rodrigo Amado com Peter Evans que se tomaria “Wire Quartet” – Amado, Ferrandini, Hernâni Faustino e Manuel Mota – por um regresso a prazeres mais caseiros. Mas, antecedendo-a, remonta a janeiro de 2011 esta elementar combinação de biografia e fantasia, utópica parábola para uma arte que se quer movida segundo a lógica e a precisão da consciência e na qual se anseia detetar o capricho e o poder de invenção do instinto. Começa e, aos acordes inaugurais, parece trazer versões muito oblíquas de canções como ‘My Old Flame’ ou ‘You Don’t Know What Love Is’ que imediatamente leva a passear de dimensão em dimensão. Ferrandini lembra os tempos em que batalhões de escriturários martelavam coreograficamente em máquinas de escrever os guiões das suas sofisticadas existências e Mota, à guitarra elétrica, assemelha-se a um pescador a desemaranhar redes, ignorante de qualquer outro grau de delicadeza na sua vida. Aos 10 minutos estão no topo de um edifício ou de uma falésia olhando os seus instrumentos do alto. Amado ataca conjuntos de 4 ou 5 notas e é como se uma verdade universal ficasse promulgada a cada modulação. Há uníssonos como flores murchas a indicar a entrada de um templo abandonado. E ainda se ouve um blues exequial eticamente cadenciado por Faustino no contrabaixo. E escuta-se uma estória dúctil como a memória, que vem de perto e chega tão longe.