29 de janeiro de 2011

WITCH “Introduction”

Não será fácil encontrar tão perfeito exemplo de um objecto cultural compreendido apenas no acto da subtracção quanto este álbum de estreia dos WITCH (acrónimo para “We Intend To Cause Havoc”). É evidente que numa aproximação aos Slade tenta manifestar total cedência aos mais libertários impulsos mas que lhe falta real insolência; e de nada adianta inspirar-se na incendiária crueza dos MC5 se carece de retórica revolucionária; nem o gosto por devaneios hedonistas na órbita dos Faces servirá de muito quando não se opera na gestão do próprio mito. Porque, de facto, o mundo em 1973 não precisava da repetição do processo vulcânico de Jimi Hendrix sem uma exuberante erupção pirotécnica, da aplicação da misantropia dos Black Sabbath a uma cultura de carência em vez de abundância, dos Rolling Stones sem o propulsivo priapismo ou da evocação dos Cream sem idêntica combinação de fármacos. Por tudo isso parecerá absurdo afirmar que, no período, não se vislumbra mais comovente – ainda que anémica – representação dos fundamentos do rock psicadélico do que esta. E, no entanto, é precisamente isso que proclama a oportuna reedição da banda que, a par de Ngozi Family, Peace, Amanaz ou Musi-O-Tunya, definiu o panorama artístico subterrâneo da Zâmbia na primeira metade da década de 70. E parece um milagre – pressentindo-os a rasgar o ar para se fazerem ouvir – que até hoje tenham chegado estes sons então abafados pela pobreza (com a queda do preço do cobre), pela guerra (através do apoio estatal às acções de FRELIMO, UNITA, ZAPU ou ANC em países vizinhos) e pela tirania (Kenneth Kaunda havia instaurado um ano antes o unipartidarismo), mesmo que seja só para roubar os poucos raios de sol ao mais sombrio dos invernos e lembrar que muita da história da música africana se escreveu enquanto se planeava a fuga do continente.

22 de janeiro de 2011

The Psychedelic Aliens “Psycho African Beat”

Pode um contacto inicial com estas gravações lembrar o conceito do ‘eterno retorno’ ou conduzir à suspeita de um ‘universo paralelo’. Mas a verdade é bem mais simples: sem porventura nisso repararem, os Psychedelic Aliens traduziram com a sua música um movimento circular que, no Gana, tinha precedente no percurso político de Kwame Nkrumah. Porque se foi nos Estados Unidos e Inglaterra, ao cruzar-se com intelectuais da estirpe de Marcus Garvey, W. E. B. Du Bois ou George Padmore, que encontrou a razão de ser do Pan-Africanismo o primeiro líder do seu país após a conquista da independência, também este pioneiro grupo de Accra começou por se especializar na obra de Shadows, Animals, Booker T. & the M.G.’s ou Jimi Hendrix antes de avançar com a sua versão dos acontecimentos. E, sem que nunca daí tenha saído, deveu o definitivo regresso a casa ao contacto directo com aqueles – Santana, Roberta Flack ou Wilson Pickett – que até à capital ganesa se deslocaram em 1971 para o concerto “Soul to Soul”. Tal como sugere no texto de apresentação desta antologia Ricky Telfer (principal compositor da banda e hoje técnico informático e organista numa igreja dos arredores de Toronto, no Canadá), comprovar em primeira mão que quem lhe servia de exemplo procurava, por sua vez, inspiração em solo africano implicou uma inversão de poder no seu diálogo com a produção ocidental. Há, por isso, além da leveza de espírito que vem com o orgulho recuperado e a liberdade de acção que conhecem os que só dependem de si próprios, um continente de distância entre o antes (um EP com quatro temas de 1970) e o depois (dois singles de 1971) dessa tomada de consciência. E, ainda que não represente o nascimento do afro-rock psicadélico, que tudo não tenha sido mais que um forte clarão que logo se extinguiu – assim permanecendo durante 40 anos – é já da ordem do mito.

15 de janeiro de 2011

Tabu Ley Rochereau “The Voice of Lightness Vol. 2: Congo Classics 1977-1993”


Há muitas formas de o recordar e dificilmente se encontra outro que, como ele, tenha deixado tão indelével marca no património criativo de um continente inteiro. Porque, apesar de altos e baixos na sua relação com Mobutu, da acumulação de rivalidades pessoais e das indiscrições que acompanham os verdadeiramente poderosos, nunca deixou Tabu Ley Rochereau de traduzir o sinal dos tempos mantendo a ilusão de o determinar. E do galante vocalista dos Rock’a Mambo na época colonial ao orgulhoso narrador da independência com a African Jazz, do emancipado cronista de uma nova Kinshasa ao lado de Dr. Nico na African Fiesta ao exuberante intérprete que com a sua Afrisa tomou de assalto o palco do “Rumble in the Jungle” (o combate de 74 entre Foreman e Ali na capital zairense) ou do triunfante delegado na extravagância pretrolífera-pan-africana que foi o FESTAC ’77 (o Festival Mundial de Arte e Cultura Negras que em Lagos, na Nigéria, somou os nomes de Stevie Wonder ou Gilberto Gil a um cartaz de milhares de participantes) ao impulsionador da carreira de M’bilia Bel, lêem-se os seus traços biográficos à luz de uma permanente relevância cultural. Por isso – e também por níveis hemorrágicos de produção com anos sucessivos a lançar álbuns aos pares – se torna impossível ajuizar em definitivo a pertinência do antologista que lhe deite mão. Aliás, quando há três anos editou um primeiro volume lamentava já Ken Braun, responsável pelo projecto, as 600 canções que ficaram de fora. Não admira então que se mantenha mais fiel à história do que à estética, privilegiando momentos – a colaboração com Franco e as gravações na Costa do Marfim ou em Paris – que no seu pior são um som demasiado grande para um homem só, o som do dinheiro e da megalomania, e no seu melhor representam a máxima exactidão neste domínio em que a ciência não entra.

8 de janeiro de 2011

Bola Johnson "Man no Die"

Pode “Fela!”, a peça na Broadway, transformar o legado criativo da sua fonte de inspiração numa narrativa de coragem e paixão que não lhe apagará do carácter a jactância que advinha da dominação social da mulher. E num tempo em que arte e política eram um pretexto para contagens públicas de testosterona interessará lembrá-lo nem que seja para do seu exemplo distanciar Bola Johnson – que numa canção como ‘Lagos Sisi’ aplicava com ironia os códigos marciais do afrobeat para prevenir jovens nigerianas em vez de as subjugar. É certo que não servirá a diferença para questionar os impulsos libertários de Fela Kuti ou para lhe eclipsar um milímetro de pertinência artística – e é sabido que alardear valentias amorosas concentra matéria infinitamente mais sumarenta para a pop do que salvar a honra de virgens em perigo – mas o ponto é que num terreno onomástica e onanisticamente dado à demonstração de poder, tal como praticada por Chief Commander Ebenezer Obey, Sir Victor Uwaifo, King Sunny Ade, Prince Nico Mbarga ou Dr. Victor Olaiya, observar a produção deste secundarizado cantor e trompetista de Lagos implicará rever aquilo que tem chegado como uma ‘verdade histórica’. E compreender que numa área dada a titânicos confrontos ideológicos houve quem preferisse a arma da subtileza dando uso a uma radiante voz – capaz de trazer à memória a de Mighty Sparrow – que nos infortúnios sentimentais encontrava consolo enquanto cruzava com invejável sentido de oportunidade elementos caricaturais de highlife, calipso, folclore ou funk. Mas pela dureza dos tempos (com o advento da Guerra do Biafra), e por se ver ingenuidade onde só havia engenho, logo lhe faltaram as hipóteses de gravar. Bola ganhou segunda vida no teatro radiofónico mas esperou quatro décadas para ser celebrado como um elo perdido na evolução da música popular da Nigéria. Até hoje.