25 de agosto de 2018

"Jazz Loves Bernstein" (Decca, 2018)


Mergulhada em escuridão, antes de subida a cortina, a sala ouve o canto da sereia saído de uma jukebox – depois, claro, começa a ação propriamente dita e três marinheiros cuspidos das profundezas aterram numa esquina de Nova Iorque, a horizontalidade do mar trocada enfim pela verticalidade dos arranha-céus. Trata-se da cena inicial de “Fancy Free”, o bailado de Jerome Robbins com música de Leonard Bernstein. Crucial para esta história, e a razão pela qual facilmente se explica que em relação ao título da compilação o recíproco é verdadeiro, será lembrar que a voz que Bernstein mais queria a abrir era a de Billie Holiday. “Adoro jazz porque é um modo completamente original de expressar emoções, na medida em que nunca é inteiramente triste, nem inteiramente feliz”, disse um dia o compositor, maestro e pedagogo, avesso, como de costume, ao maniqueísmo, mas tentado, como era também usual, por pensamentos algo simplistas. Seja como for, praticamente a dar-lhe razão, eis, então, Billie em ‘Big Stuff’, o primeiro tema de um panorâmico “Jazz Loves Bernstein” que, como não poderia deixar de ser, se concentra em páginas extraídas aos grandes musicais das décadas de 40 e 50, como “On the Town”, “Wonderful Town” e “West Side Story”. 

Não se trata de uma ideia peregrina. Aliás, a fechar a caixa “The Composer” (Sony, 2017) surge uma antologia dupla chamada “Bernstein in Jazz” de intuito semelhante, embora convocando outros ativos. Aqui, mais importante que a questão do elenco principal será, antes, a da relativa escassez das fontes: é redundante ir buscar doze temas a discos de Bobby Scott, Oscar Peterson e Bill Charlap, bem como três ao pioneiro “Manny Albam and his Jazz Greats Play Music from the Broadway Musical West Side Story” (Coral, 1957), quando, tudo em editoras controladas pela Universal, se ignoram Sinatra, Blossom Dearie, Tommy Flanagan, Stan Kenton, Jazz Crusaders, Buddy Rich, Jason Moran e aquele momento irrepetível em que Shirley Horn cantou ‘Lonely Town’ ao lado do quarteto de Charlie Haden. Irresistível e incorrigível, Bernstein dizia que o jazz é “o denominador comum da música americana”, mas, por vezes, parecia mais que ele é que o era. Nasceu faz hoje 100 anos.

Chopin: Late Works (Warner, 2018)

Não sendo novel, o argumento é convincente: dá-se por uma certa maturação formal nos derradeiros opúsculos de Chopin, por inovadoras conceções harmónicas, por um sentido polifónico mais apurado. Mas, como sempre, claro, a dificuldade é conciliar o que se pode fazer com aquilo que se deseja fazer. Kenner, comparando com revelações recentes, como Yundi ou Anna Gourari, ainda assim distantes do elísio onde repousam Rubinstein ou Arrau, possui, aqui, um tom menos ambarado, o que lhe permite reagir num instante à vertigem de estados de espírito da “Sonata Nº 3 em Si menor”, por exemplo, sem ter de abdicar da perspetiva algo misericordiosa que normalmente se tem da melodia no terceiro andamento. Pois, independentemente de leituras mais ou menos tridimensionais, quando, no caso de Chopin, se lê “Late Works”, o que vem à ideia é que, na altura, entre 1844 e 1849, digamos, o compositor não podia estar menos preocupado com o futuro, provando-se uma e outra vez atraído mais pelo princípio das histórias do que pelo seu fim, preso àquele lugar da sua mente em que tristeza e destino se confundiam. 

Nem seria o período de doença e desilusão que o acompanhou até à morte a fazê-lo renunciar à subtileza, apesar da preocupação por toda e qualquer patologia se ter tornado praticamente epistolar, como é óbvio. Conforme o relato de Adam Zamoyski em “Chopin: Prince of the Romantics”, em 46 veio “Lucrezia Floriani”, a novela de George Sand que fez correr muita tinta entre os amigos do casal, da fase, antes de romperem, em que a escritora se refere a Chopin como “adorável cadaverzinho”. Depois, durante a sua última viagem a Inglaterra e à Escócia, em 48, a propósito de rumores que o ligavam romanticamente a Jane Stirling, sua mecenas, Chopin disse por carta a Albert Grzymala que estava mais próximo da cova do que do casamento – por sinal, redigiu o seu testamento antes ainda de voltar a Paris. Como tudo isto invade as “Mazurcas” do Op. 58 e 63, a “Barcarola” do Op. 60 ou o “Noturno” do Op. 62 será um mistério, mas que polui a intuição de Kenner é evidente – como um véu que cai sobre outro.

18 de agosto de 2018

Barre Phillips “End to End” (ECM, 2018)

Isto é o “fim de um ciclo”, explica Barre Phillips, em notas de apresentação: “Não tanto um resumo quanto efetivamente o derradeiro capítulo de um diário que começou a ser escrito há cinquenta anos.” Como é óbvio, trata-se de uma referência a “Unaccompanied Barre”, o seu primeiro disco, gravado em Londres, numa igreja, em novembro de 1968 (nos EUA foi editado como “Journal Violone”), registo que se tem comummente como o mais antigo de todos no contexto da improvisação livre em contrabaixo solo. Nessa medida, Phillips está para o instrumento como Douglas Engelbart – que no mesmo ano organizou a demonstração inicial do ‘rato’, da videoconferência ou do processador de texto – está para a informática, sendo que de certo modo especularam ambos sobre os limites da competência intelectual do ser humano. É um aspeto algo desacorçoante na produção de Phillips, não obstante a capacidade de invenção que sempre demonstrou, e um que se associa com frequência a quem, como ele, vive em zonas de fronteira. 

Aliás, principalmente desde que veio para a Europa a sua área de ação tem sido exatamente essa que se encontra para lá de toda a superfície explorada – na contracapa de um dos seus melhores álbuns, “Call Me When You Get There”, está um mapa desenhado à mão em que as indicações servem de título aos temas, mas a reprodução de um contrabaixo e de uma seta a apontar para a expressão hic sunt dracones (usada pela cartografia para designar territórios desconhecidos) traduziria bem melhor o seu conteúdo. Diga-se de passagem, por vezes, Barre até dá mostras de fazer música para dragões – e nenhum maior que o protagonista de “Doc’s Kingdom”, o filme que Robert Kramer veio há 30 anos filmar a uma Lisboa entretanto mais desaparecida do que a de Marina Tavares Dias, e que Phillips musicou, com aquelas personagens estranhamente sedutoras mas capazes de temperar a carência com o vinagre da hostilidade. Foi também em Lisboa, em 2008, numa mesa-redonda promovida pelo festival Jazz em Agosto, que resumiu o sentimento que este seu belo disco a solo (que pretende final) traduz: “Isto é trabalho para uma vida inteira. Até que alguém pega nele e lhe põe outra vida em cima.” Está feito o testamento.

"Black Man’s Pride 2" (Soul Jazz, 2018)

Afinal, não tinha ficado tudo dito, longe disso, pese embora se prossiga pelo caminho indicado por Alton Ellis em ‘Black Man’s Pride’ precisamente, há coisa de um ano incluído no primeiro volume desta série. Aí, escutava-se a sua voz e o que saltava à memória era o canto do rouxinol em “A Terra Devastada”, de Eliot, basicamente a pregar no deserto, distante do mundo dos homens, inviolável mas incompreensível. Trata-se de um sentimento extensível a muitos dos que aqui se ouvem, a tradução de uma monstruosidade literalmente tatuada na pele (“Oh, eu não nasci para vencer / Pois sou um homem negro”, lamentava-se Ellis): de que viver tão longe do sítio de onde se veio é o mesmo que morrer no meio de lugar nenhum. Daí, quiçá, para cobrir tal distância, esta arregimentação sem precedentes entre os desapossados de Kingston, parte de uma tribo em tudo periférica – que não invisível – ao planeamento urbano: os rastafári. Ou seja, regressa a Soul Jazz ao Studio One como terreno fértil para analisar o impacto da modernização nas estruturas sociais jamaicanas, espécie de balão-de-ensaio para as experiências mais dissociativas, através de gente como Ellis, novamente, Horace Andy, Heptones, Gladiators, Ernest Wilson, Prince Lincoln ou Count Ossie, à frente de um pelotão de desconhecidos que, não obstante, soube reclamar a sua quota-parte neste ato de imaginação coletivo: o da cidade enquanto centro cívico, comercial e cultural. Por enquanto, claro, ali entre os anos 60 e 70, entrincheirada em bairros de lata, estava longe de o ser – mesmo se o planeta inteiro começava a mostrar-se sensível às palavras de Bob Marley, Bunny Wailer ou Peter Tosh, cronistas da desigualdade social com sede nas barracas de Trench Town. Aliás, volta-se à compilação e percebe-se que, conquanto nada peregrina, a verdadeira questão, aqui, é: como é que o lugar a partir do qual se lança a semente da transformação no mundo é o mesmo que resiste mais a qualquer mudança? É essa a tragédia da Jamaica. E a nossa.

11 de agosto de 2018

Fred Hersch Trio “Live In Europe” (Palmetto, 2018)

Como disse um dia Tom Piazza acerca dos habitantes de Nova Orleães (em “City of Refuge”), Fred Hersch insistiu em prevalecer – ou seja, foi capaz de transformar as suas muitas privações em ativos. Aliás, é nesses termos que o novelista resume o livro de memórias que Hersch publicou no ano passado: como uma história de superação. E também Jason Moran escrevinhou qualquer coisa do estilo, referindo os obstáculos com que Hersch lidou dentro e fora do palco, em relações amorosas ou na sua recuperação: “No jazz, um intérprete partilha tanto as suas virtudes quanto as suas falhas – é como o reflexo do mundo; e ao improvisar – o princípio elementar [do género] – é capaz de fazer do infortúnio fonte de inspiração.” Enfim, Hersch é defumado com incensos desde que vive com a síndrome da imunodeficiência adquirida. Mas muito de vez em quando somos relembrados que ele nunca foi propriamente um moralista.

Numa entrevista recente (na edição do mês passado da revista “The New York City Jazz Record”), observe-se com atenção o modo como se refere a Cecil Taylor: “[Um pianista] brilhante, muitíssimo organizado, e uma enorme influência em músicos como Craig Taborn ou Jason Moran. Uma figura imponente que soube fazer as coisas à sua maneira. O facto de ser gay foi uma mera nota de rodapé. Por sinal, ele soube contradizer exemplarmente aquela ideia feita de que se és gay, então, tens de tocar música bonitinha.” Pois bem, não se podendo, por um segundo, afirmar que se trata do contrário de bonito, este “Live in Europe” (registado em Bruxelas, em novembro último, na reta final de uma digressão de três semanas com John Hébert na bateria e Eric McPherson no contrabaixo) será igualmente a tentativa de Hersch tornar claro que a presença do HIV na sua vida nunca poderá deixar de se confundir com um mau augúrio, negro catalisador do caos emocional e psicológico, origem de um ubíquo receio de alienação. São originais de irreconciliáveis tensões (dedicados a John Taylor, Sonny Rollins ou, lá está, Tom Piazza), e que obrigam quem os escuta a partilhar de uma responsabilidade algo esmagadora. Pelo meio, como se fosse possível recomeçar do zero, temas de Monk e Shorter. E Hersch a vender saúde.