29 de dezembro de 2018

Michael Formanek Elusion Quartet “Time Like This” (Intakt, 2018)

Mal começa, com o elusivo ‘Down 8 Up 5’ (e, sim, o título da peça descreve exatamente o movimento descendente e ascendente do seu principal motivo melódico e rítmico), é no narrador de “O Expulso”, de Beckett, em que se pensa, incapaz de uma coisa tão simples quanto contar os degraus de uma escadaria. Principalmente, ali umas linhas mais à frente, quando se dá com uma frase destas: “As memórias matam. Por isso mais vale nem pensarmos em certas coisas (…), quer dizer, é melhor pensarmos nelas, sim, todos os dias, várias vezes ao dia, ou senão corremos o risco de as ver despontar uma a uma na nossa cabeça.” Agora, é Michael Formanek que nos vem falar de um tempo permanentemente poluído pela memória – ou, se possível, e de modo muito paradoxal, da necessidade de blindar a sua música à involuntariedade. Isto é, como insinuaria Beckett ao escrever sobre Proust, de ser preferível cultivar-se o esquecimento. Uma ideia francamente absurda, claro. E sobe e desce mais desconcertante do que o deste seu tema só mesmo no Bucha e Estica de “Dois Músicos Desafinados”, em que Stan e Ollie tentam carregar um piano escada acima e, também eles, como o protagonista do conto de Beckett, se vêem aflitos com os degraus. Aqui, é com ‘A Fine Mess’ (“Another Fine Mess” ou, em português, “Proprietário à Força”, chamava-se outra curta-metragem da dupla) que se invoca essa forma cómica de lidar com a aleatoriedade do mundo que, quer em Beckett quer em Laurel & Hardy, serve igualmente para sublinhar toda a tragédia da inação. 

Porque, de forma mais ou menos metafórica, nesta música não deixa de estar presente… Isso, o presente. Aquilo, por exemplo, a que Formanek se poderá estar a referir com ‘The New Normal’, que é uma daquelas expressões que passam subitamente a contaminar o chorume da linguagem jornalística no seu país (algumas manchetes da semana passada: “The New Normal isn’t normal at all” in “The Washington Post”; “Jailing Hundreds of Journalists Worldwide is the New Normal” in “The New York Times”; “Is Tear Gas at the Border the New Normal?” in “The New Yorker”). O que só por si serve para explicar o batismo do quarteto que formou com Tony Malaby, Kris Davis e Ches Smith, um que não só evita a prisão ideológica deste tempo como em termos de andamento a das próprias composições, ficando tudo fora dos eixos, a abrir a sutura da partitura. Como a grande música de qualquer era, aliás.

Scodanibbio: Alisei (ECM, 2018)

Conta Daniele Roccato, em notas de apresentação: “Numa chamada de Cuernavaca, em setembro de 2010, o Stefano deu-me a terrível notícia de que sofria de esclerose lateral amiotrófica em estado avançado e que [por isso] já não conseguia tocar contrabaixo. A sua voz revelava uma determinação extraordinária e pressenti que desejava aproveitar o tempo que lhe restava a passar ideias para o papel.” Roccato fez as malas, partiu para o México e encontrou o colega e amigo a trabalhar em “Ottetto”, uma obra que sintetizava aquilo que ao longo de décadas fez pelo instrumento a que havia dedicado a vida e que transformaria numa espécie de “herança espiritual”. Stefano residia numa “esplêndida casa, cercada de vegetação”. Passava os dias no pátio acompanhado pela esperança, por papagaios e opossuns. Ao pequeno-almoço, o seu convidado geralmente tocava-lhe Bach. Depois, pela manhã, estudava e compunha qualquer coisa. Da parte da tarde reviam em conjunto certos aspectos técnicos da peça. “Ao anoitecer,” prossegue Daniele, “púnhamo-nos a escutar atentamente o meio em nosso redor, a transcrever o canto dos pássaros tropicais, a modular os sons espectrais dos insetos”. Tudo isso, como é óbvio, palmilha a partitura de “Ottetto” (para oito contrabaixos; obra central neste CD), coberta que está com as impressões digitais de milípedes e centípedes, escaravelhos e escorpiões, parasitas que escorregam pela sua superfície, que a atravessam e lhe colam as páginas com escamas.

Nem poderia ser de outra maneira: como um naturalista, Stefano Scodanibbio (1956-2012) foi sempre hábil a deslocar a atenção que recaía sobre o que quer que fizesse do panorâmico para o específico sem que isso comprometesse, trivializasse e sumariasse os mistérios da criação – ao invés, adensava-os, trazendo à memória Alexander von Humboldt, o explorador que viu o mundo como um grande organismo vivo e que postulou uma reação à natureza baseada em sensações e emoções (conforme enunciado em carta a Goethe) e que em finais do século dezoito apelidou Cuernavaca de “a cidade da eterna primavera” (e em “Six Duos” Scodanibbio tem uma peça intitulada “Humboldt”). Mas, acima de tudo, como tinha feito no magnífico “Voyage That Never Ends”, invoca aqui a Cuernavaca de “Debaixo do Vulcão”, de Malcolm Lowry, aquele romance que, como defendeu o seu autor, tem que ver com “a luta que o espírito humano trava quando ascende ao seu verdadeiro fim” e com “as forças que o obrigam a assustar-se consigo próprio” – isto, disse-o Lowry quando morava na Calle de Humboldt, pois claro. O destino é mesmo assim. Scodanibbio sabia-o bem.

22 de dezembro de 2018

Melhores do Ano [Best Classical, Jazz and World Music releases of 2018]


Graindelavoix “The Liberation Of The Gothic” (Glossa)
John Luther Adams “Everything That Rises” (Jack Quartet; Cold Blue Music)
Luca Marenzio “L'Amoroso & Crudo Stile” (RossoPorpora; Arcana)
Bent Sorensen “Pantomime” (Katrine Gislinge, Stenhammar Quartet, et al; Dacapo)
Binchois Consort “The Lily & The Rose” (Hyperion)
Peter Garland “The Landscape Scrolls” (John Lane; Starkland)
Gothic Voices “The Dufay Spectacle” (Linn)
Allan Pettersson “Symphonies Nos. 5 & 7” (Norrköping SO, Lindberg, et al; BIS)
Josquin Des Prez “Masses” (Tallis Schollars; Gimell)
Michael Gordon “Clouded Yellow” (Kronos Quartet; Cantaloupe)

Menções honrosas: Café Zimmermann nos “Concerti Grossi” de Geminiani (Alpha); Jordi Savall, Tembembe Ensamble Continuo et al em “Bailar Cantando – Fiesta Mestiza en el Perú” (Alia Vox); Patricia Kopatchinskaja no “Violin Concerto” de Michael Hersch (New Focus); Jon Hassell em “Listening to Pictures” (Ndeya); Claudio F Baroni em “Motum” (Unsounds); Catherine Lamb e Johnny Chang em “Viola Torros” (Another Timbre); Arooj Aftab em “Siren Islands” (New Amsterdam). Da gruta: “Cave Vaults of the Moon”, de Joanne Forman (Séance Centre); “Music and Poetry of the Kesh”, de Ursula K. Le Guin & Todd Barton (Freedom to Spend); “Electronic Music from the Eighties and Nineties”, de Carl Stone (Unseen Worlds); “Il Museo Selvatico”, de Massimo Toniutti (Black Truffle); “Al Di Là”, de Simone Forti (Saltern); “Simultan”, de Roland Kayn (Die Schachtel); “Grand Bruit/Stop! L’Horizon”, de Christian Zanési (Recollection GRM).

John Coltrane “Both Directions at Once: The Lost Album” (Impulse)
Henry Threadgill 14 or 15 Kestra: Agg “Dirt… And More Dirt” (Pi Recordings)
Wayne Shorter “Emanon” (Blue Note)
Myra Melford’s Snowy Egret “The Other Side of Air” (Firehouse 12)
Akira Sakata & Chikamorachi feat. Masahiko Satoh “Proton Pump” (Family Vineyard)
Tomeka Reid, Kyoko Kitamura, Taylor Ho Bynum, Joe Morris “Geometry of Caves” (Relative Pitch)
Michael Formanek Elusion Quartet “Time Like This” (Intakt)
Rodrigo Amado “A History of Nothing” (Trost)
Peter McEachern Trio “Bone Code” (Clean Feed)
Ivo Perelman/Matthew Shipp “Oneness” (Leo)

Ver Coltrane encabeçar uma lista destas, em 2018, com uma fita transviada de 1963, traz imediatamente à memória o que em agosto desse mesmo ano escrevia Harvey Pekar na “Down Beat” a propósito de “Impressions”: “Nem toda a música neste álbum é excelente (…), mas parte dela é mais que excelente.” O mesmo se poderia dizer de Fred Hersch em “Live in Europe” (Palmetto), de Anthony Braxton em “Eight Improvisations” (Tubapede), de Tim Daisy em “Animation” (Relay), de Peter Evans e Barry Guy em “Syllogistic Moments” (Maya) e de Peter Brötzmann e Heather Leigh em “Sparrow Nights” (Trost). Do baú: “Jazz in Detroit…”, de Charles Mingus (BBE); “Bäbi”, de Milford Graves (Corbett vs. Dempsey); “In Paris, Aries 1973”, do Black Artists Group (Aguirre); “The Haunt”, de Bobby Naughton, Wadada Leo Smith e Perry Robinson (NoBusiness); “End Starting”, do Dharma Quintet (SouffleContinu); “Valley of Search”, de Alan Braufman (Control Group).

V/A “Two Niles to Sing a Melody: The Violins & Synths of Sudan” (Ostinato) 
V/A “Gumba Fire: Bubblegum Soul & Synth​-​Boogie in 1980s South Africa(Soundway)
Dur-Dur Band “Dur-Dur of Somalia – Vols 1 & 2” (Analog Africa)
Troupe École Tudu “Oyiwane” (Sahel Sounds)
Stella Chiweshe “Kasahwa: Early Singles” (Glitterbeat)
Kamal Keila “Muslims and Christians” (Habibi Funk)
V/A “Listen All Around: The Golden Age of Central and East African Music” (Dust-to-Digital)
Jess Sah Bi & Peter One “Our Garden Needs Its Flowers” (Awesome Tapes From Africa)
V/A “Disques Debs International Volume 1 – An Island Story: Biguine, Afro Latin & Musique Antillaise 1960-1972” (Strut)
V/A “The Last LP: Unique Last Recordings of the Music of Ancient Cultures” (Song Cycle)

Dos arquivos: “Nouvelle Ambiance!!!” (Nouvelle Ambiance); “Zamaan Ya Sukkar: Exotic Love Songs and Instrumentals from the Egyptian 60’s” (Radio Martiko); “Crying Bamboos: Ceremonial Flute Music from New Guinea” (Ideologic Organ); “Turkish Ladies: Female Singers from Turkey 1974-1988” (Epic Istanbul); “Ernesto Chahoud Presents: Taitu! Soul​-​Fuelled Stompers from 1960s-1970s Ethiopia” (BBE); “Diew Sor Isan: The North East Thai Violin of…”, de Thonghuad Faited (EM);  “Cosmic Sounds”, de N’Draman Blintch (Hot Mule); “African Funk Experimentals: 1977-1979”, de J. M. Tim & Foty (Africa Seven); “Colourful Environment”, de Gboyega Adelaja (Odion Livingstone); “Sweet Music Volume I”, de Dizzy K. Falola (Sticky Buttons); “Ekuka”, de Ekuka Moriss Sirikiti (Nyege Nyege Tapes); “Homowo”, de Basa Basa (Vintage Voudou); “I’m in Love with a Dreadlocks: 1977-1980”, de Brown Sugar (Soul Jazz); “Le Troubadour de la Savane: 1978-1980”, de Pierre Sandwidi (Born Bad).

15 de dezembro de 2018

“The Art Ensemble of Chicago and Associated Ensembles” (ECM, 2018)


Mal começa, “Message to our Folks” vê-se envolto em volutas de fumo ao tratar de descrever o concerto do Art Ensemble of Chicago (AEC) no Festival de Blues e Jazz de Ann Arbor, em setembro de 1972. Queimam-se incensos no proscénio, membros do quinteto fazem olorosos turíbulos dos seus instrumentos e, nem por acaso, logo a abrir, explodem num ataque de tosse convulsa que toma a audiência de assalto. “Enquanto o Art Ensemble se move em palco tocando sinetas e entoando cânticos”, prossegue Paul Steinbeck nessa biografia do conjunto, “o público deixa-se maravilhar pelas suas indumentárias: pelo casaco com lapelas de seda e pelo chapéu de maquinista de Lester Bowie; pelas túnicas de Malachi Favors e Don Moye; pelo uniforme de artes marciais de Joseph Jarman; pelo hábito de Roscoe Mitchell.” Quem os vê sente-se de tal forma extasiado que Favors associa a ocasião a um sacramento: dito e feito, ficaria para a história como “Bap-tizum” (Atlantic, 1973).

Era uma reação muito diferente daquela a que o AEC se tinha habituado: de facto, no exílio a que se impôs quando emigrou para Paris, em maio de 1969, o assalto de que a propósito do grupo se falava era mais literal do que sensorial. “Atenção ao modo em que o Art Ensemble lhe vai ao bolso”, anunciava um folheto relativo a uma data na capital francesa: “Eles batem, roubam e despem quem os vê e põem toda a gente a correr para casa nua e de rabinho entre as pernas a chamar pela mãezinha”, pode ler-se em “A Power Stronger Than Itself: The AACM and American Experimental Music”, de George E. Lewis. Não só na arte, ensaiava-se um período de transformação sistemática, de radical reorientação de prioridades e contínua insurreição: todo o conceito era posto do avesso, todo o ideal disputado, todo o formalismo denunciado, todo o protocolo de rutura imediatamente adotado, toda a herança criativa prontamente recusada. Esta era a banda de ‘Jazz Death?’, um tema de “Congliptious” (Nessa, 1968): a que traduzia em espetáculos o indecifrável “espaço multidimensional” mencionado por Barthes em “A Morte do Autor”. Em reportagem, jornalistas de “Jazz Hot” e “Jazz Magazine” faziam o relato de um “psicodrama ambíguo e violento” e de “altares de tortura e sacrifício” e o “Nouvel Observateur” descortinava uma “escultura viva”. Na mesma altura em que Beuys produzia “escultura social” e se comparava a um xamã, isto levou ingénuos intelectuais parisienses que dormiam com o Livrinho Vermelho na mesa-de-cabeceira a escalpelar heraldicamente o brasão do grupo – “Great Black Music - Ancient to the Future” – à luz do que liam em “Arqueologia do Saber” (Foucault), “Gramatologia” (Derrida) ou “Mitológicas” (Lévi-Strauss).

Mas, na Europa, havia igualmente quem entendesse de outra maneira o estatuto marginal do coletivo. Conforme explica na introdução ao livro de 300 páginas que acompanha esta edição, Manfred Eicher, o fundador da ECM, achava que o AEC propunha “um novo modelo para música de câmara improvisada, inaugurando-lhe mais um capítulo após o impacto sísmico de Coltrane, Ornette ou Cecil Taylor”. Teria embrião em teatrais atuações ao vivo, é certo, não obstante a mais-valia gerada em discos lançados pelas gaulesas Pathé, BYG ou America entre 1969 e 1971 (como “People in Sorrow”, “Les Stances à Sophie”, acabado de reeditar pela Soul Jazz, “Message to our Folks” ou “Phase One”) – e talvez por isso, aliás, em virtude do quão avesso se revelava às condições laboratoriais de estúdio, sugira Bill Shoemaker em “Jazz in the Seventies” que o AEC parecia a “última banda do mundo que a ECM pudesse vir um dia a gravar”. Mas veio, como é óbvio, colocando no mercado “Nice Guys”, “Full Force”, “Urban Bushmen” e “The Third Decade” entre 1979 e 1984 e, depois, já com o AEC reduzido a trio, “Tribute to Lester” em 2003. Está tudo nesta caixa, além dos outros álbuns do catálogo da ECM em que até à data se incluíram os seus membros: quatro discos a solo de Bowie e outros tantos de Mitchell; “Divine Love”, de Leo Smith (a obra-prima da coleção), e “New Directions”, de Jack DeJohnette, em que Bowie entra; “Made in Chicago”, também de DeJohnette, e “Boustrophedon”, de Evan Parker, em que Mitchell participa. 

Eicher falava em abstrato, mas poderia estar a referir-se ao AEC quando em “Horizons Touched” disse: “Quem é sério em relação à cultura posiciona-se na periferia.” Ou seja, não seria ele a assombrar em exclusivo a ação do AEC com o espectro do nacionalismo negro norte-americano. Para mais quando ouvia Don Moye, em entrevista a “Modern Drummer”, declarar que o AEC “pensava na música como um espaço sagrado no qual ressoavam todos os elementos da existência”. A contribuição de Eicher terá sido precisamente essa: tornar esse espaço eminentemente dúctil. A ponto de, agora, num depoimento reproduzido em notas de apresentação, Craig Taborn insinuar que as melodias do AEC davam mostras de “atravessar um meio ambiente específico, uma paisagem palpável e a fervilhar de vida”, que tinham uma “aura única”. O que traz à memória que, em 1989, numa conversa reproduzida no livreto da compilação “ECM New Series”, Eicher dizia-se “fascinado pela aura do espaço, pelas ondas sonoras que fazem um tom efetivamente ressoar”. Tão pouco capaz de se dissociar da sua linhagem teórica como os críticos franceses do pós-Maio de 1968, Eicher passava por um ventríloquo que tivesse em cima do joelho “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, de Walter Benjamin: “Aura”, definia o filósofo, “é a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja”. Ou “Ancient to the Future”. Por entre as muitas emancipações que o AEC articulou na aura do jazz, então, fica a que, por vezes, para a despertar basta um apito, um guizo, um gongo ou uma campainha – por outras, como resumiu Jarman na contracapa de “Urban Bushmen”, é preciso focar a espécie inteira na única coisa que realmente interessa: “A dança de estar aqui”. Nunca tão bem quanto nestes discos.