27 de dezembro de 2014

Melhores do Ano (Best Classical, Jazz and World Music releases of 2014)



Clássica
ADAMS, J. L.: Become Ocean (Seattle Symphony Orchestra, Morlot; Cantaloupe)
BACH, C. P. E.: Magnificat; Eilig ist Gott (Watts, Lehmkuhl, Odinius, Eiche, RIAS Kammerchor, Akademie für Alte Musik Berlin, Rademann; Harmonia Mundi)
CHIN: 3 Concertos (Kim, Gerhardt, Wei, Seoul Philharmonic Orchestra, Chung; Deutsche Grammophon)
MONTEVERDI: Vespri di San Marco (Concerto Italiano, Alessandrini; Naïve)
WEINBERG: Sonata Nº. 3; Trio; Sonatina; Concertino; Sym. Nº. 10 (Kremerata Baltica, Kremer; ECM)
POULENC: Sept Repons de Tenebres; Stabat Mater (Sampson, Cappella Amsterdam, Estonian Philharmonic Chamber Choir, Estonian National Symphony Orchestra, Reuss; Harmonia Mundi)
BIRTWISTLE: The Moth Requiem (Nash Ensemble, BBC Singers, Kok; Signum)
KEISER: Brockes-Passion (Vox Luminis, Les Muffatti; Ramée)
RAVEL: Valses; SCRIABIN: Sonatas (HJ Lim; Warner)
BRAHMS: String Quintets (Takács Quartet, Power; Hyperion)

Menções honrosas: obras de Hafez Modirzadeh liquefazendo mapas e calendários na Pi; reedições de Pauline Oliveros e Else Marie Pade na Important; a descoberta de Teletopa na Splitrec; na Delphian, a pretexto da revelação de “La Fauvette Passerinette”, de Messiaen, Peter Hill leva Murail ou Ravel para um aviário; os quartetos de Lachenmann na Mode; Philip Thomas a interpretar Christian Wolff na Sub Rosa e, com John Tilbury, et al., em “Two Pianos and Other Pieces 1953-1969”, de Feldman, na Another Timbre; Ann Crumb e Patrick Mason cantando George Crumb na Bridge; Iain Burnside, ao piano, e meia-dúzia de vozes nas canções de Rachmaninov (Delphian); na Hyperion, o coro da Catedral de Westminster nas Missas de Byrd, o Cinquecento em “Amorosi Pensieri” e Alina Ibragimova e Steven Osborne às voltas com Prokofiev; na Harmonia Mundi, Anonymous 4 em “Marie et Marion” e Ensemble Correspondances em “Meslanges”.

Jazz
Peter Evans Quintet “Destination : Void” (More is More)
Ivo Perelman “The Other Edge” (Leo)
Ken Vandermark, Havard Wiik, Chad Taylor “In the Abstract” (Not Two)
Jemeel Moondoc “The Zookeeper’s House” (Relative Pitch)
RED Trio & Mattias Stahl “North and the Red Stream” (NoBusiness)
Brötzmann/Edwards/Noble “Soulfood Available” (Clean Feed)
Fred Hersch Trio “Floating” (Palmetto)
Joe Morris Quartet “Balance” (Clean Feed)
John Taylor “In Two Minds” (Cam Jazz)
Tony Malaby’s Tamarindo “Somos Agua” (Clean Feed)

Numa lista de 20 títulos repetir-se-iam nomes. O de Malaby, por exemplo, que tem em “Scorpion Eater” outro título essencial. Mas também os de Vandermark, Perelman ou Brötzmann, a par dos de Matthew Shipp ou Barry Guy, que aí ao lado nem figuram. Mas mais ainda se notaria a reincidência em editoras: na Clean Feed do Wire Quartet, de Michael Dessen ou Eric Revis; na Pi de Steve Lehman, Marc Ribot ou Tyshawn Sorey; na Improvised Beings de François Tusques, Linda Sharrock ou Sonny Simmons. Em tempo de vacas magras a sua consistência traz à memória os resultados eleitorais do PCP: quanto menor o número de pessoas a votar, maior a sua percentagem. Dos arquivos vieram horas de material inédito e histórico de Miles, Coltrane, Giuffre ou Lloyd. Mas também álbuns de Carlos Garnett na Muse, de Horace Tapscott e George Russell na Flying Dutchman ou de Roy Haynes, Harold Land ou Hadley Caliman na Mainstream.


World
Verckys & L’Orchestre Vévé “Congolese Funk, Afrobeat & Psychedelic Rumba 1969-1978” (Analog Africa)
Elia y Elizabeth “La Onda de Elia y Elizabeth” (Vampisoul)
Francis Bebey “Psychedelic Sanza 1982-1984” (Born Bad)
Juçara Marçal “Encarnado” (www.jucaramarcal.com)
Kassé Mady Diabaté “Kiriké” (No Format!)
Les Ambassadeurs “Les Ambassadeurs du Motel de Bamako” (Sterns)
Hailu Mergia and The Walias “Tche Belew” (Awesome Tapes From Africa)
V/A “Gipsy Rhumba: The Original Rhythm of Gipsy Rhumba in Spain 1965-74” (Soul Jazz)
Son Palenque “Afro-Colombian Sound Modernizers” (Vampisoul)
V/A “Indonésie: Chants d’Apaisement” (Ocora)

Ano de revelações menores mas, ainda assim, e como David Harrington, do Kronos Quartet, dizia em entrevista ao Expresso, suficientemente interessante para originar uns quantos “mas onde é que eu andei a vida toda?”. Nas expedições em busca de fonogramas pré-históricos, metade dos espeleólogos optou por avançar ainda mais nas cavernas, outro tanto fartou-se do escuro e, quase sempre com resultados comprometedores, tornou à superfície para transformar consumidores em produtores. Entre o trabalho de uns e outros há também a ressalvar: Acholi Machon na Irl, Noura Mint Seymali na Glitterbeat, Kasai Allstars na Crammed, Khun Narin na Innovative Leisure e antologias consagradas a Dexter Johnson (na Teranga Beat), Ngozi Family (Now-Again), Muyei Power (Soundway) e aos anos 60 e 70 peruanos (Tiger’s Milk), argelinos (Sublime Frequencies) e sul-africanos (Strut). No Brasil: o Negro Leo de “Ilhas de Calor”.

“Black Fire! New Spirits!” (Soul Jazz, 2014)



“Black Fire! New Spirits! Images of a Revolution: Radical Jazz in the USA 1960-75” 
“Black Fire! New Spirits! Radical and Revolutionary Jazz in the USA 1957-82”


Foi há 50 anos. E, em retrospetiva, na década de 90, num artigo para a JazzTimes, o crítico Bill Shoemaker caracterizou-a como “a mais seminal série de concertos de jazz jamais organizada”. Durou poucas noites, teve como palco o modesto Cellar Café, em Nova Iorque, e adotou a designação de “Revolução de Outubro no Jazz”, confortável com o bolchevismo e a hipérbole. Para muitos, entre dezenas de intervenientes, foi a primeira oportunidade para assistir a atuações de Archie Shepp, Andrew Hill, Sun Ra, Cecil Taylor ou Ornette Coleman com plena consciência de que estavam em marcha eventos capaz de radicalizar em definitivo a desobediência às estruturas de dominação na sociedade norte-americana, ou seja, a emergência de uma música de caráter inovador que de imediato “adquiriu o valor de um manifesto e o seu título o valor de um slogan”, conforme assinalaram Philippe Carles e Jean-Louis Comolli em “Free Jazz – Black Power”.

A memória dessa semana de outubro de 1964 assentaria que nem uma luva nestes livro e antologia da Soul Jazz em que se procura ilustrar reações em cadeia ao ideário da exclusão. Veja-se como muitos dos que nela participaram logo se constituíram em organismo através da Guilda dos Compositores de Jazz. E atente-se à declaração de intenções que fizeram: “Elevar o estatuto social da música. Despertar nas massas a ideia de que a música é essencial nas suas vidas. Proteger músicos e compositores das atuais forças de exploração. Facultar o acesso à música. Criar condições para que a música possa ser criada, ensaiada e apresentada.” Numa Down Beat de maio de 1965, citada por Valerie Wilmer em “As Serious As Your Life”, o principal ideólogo da Guilda, Bill Dixon, informava que recrutou músicos brancos, por exemplo, porque, a seu ver: “estão a ser discriminados pelo simples facto de tocarem jazz”.

Isto, porque há certamente maneiras mais apelativas e elegantes de representar toda esta problemática, e evocar o período em que cada ida a estúdio foi um comício em prol das lutas anti-imperialistas que grassavam pelo globo, do que aquela que o fundador da Soul Jazz elegeu, e que se parece resumir à evidência de que, para uns, enquanto estatuto, a diferença começa e acaba na invariável e instantânea realidade da cor da pele. O que não explica a omissão de Dixon das presentes edições, mas, ficando-nos pelos seus associados, esclarece as ausências de Michael Mantler, Burton Greene, Alan Silva, Roswell Rudd, John Tchicai ou Paul e Carla Bley. Sobra a complicada tarefa de vislumbrar, então, no contexto do livro, que outra coisa poderá em comum haver entre John Coltrane e George Benson, digamos, ou entre Don Cherry e Jimmy Smith ou o Art Ensemble of Chicago e George Duke. Talvez que uns tratavam de inúmeras solicitações às civilizações africanas para impor uma nova ordem espiritual no mundo e outros reforçavam a importância da independência económica dentro de fronteiras? Vá-se lá saber.

Ainda assim, embora recorrendo a fotos de uma agência – o que implica uma visão exterior ao próprio movimento, a partir de materiais encomendados por agentes ou departamentos de promoção – eis o retrato de um tempo em que o jazz pôs a descoberto aparelhos ideológicos de opressão, subverteu hierarquias estéticas e culturais, rompeu com os seus traços mais pesadamente carregados de injustiças e exprimiu algo tão próximo da vida quanto das aspirações dos seus executantes. E mesmo se a história lhes foi ingrata, esse é um sonho que não morreu ontem ou hoje, nem morrerá amanhã.

20 de dezembro de 2014

Son Palenque “Son Palenque: Afro-Colombian Sound Modernizers” (Vampisoul, 2014)



É fácil, na literatura: puxa-se do chavão do bildungsroman e todos sabem ao que vão. É como deitar uma página de um diário à rua: a moral pessoal ganha contornos didáticos, o mais íntimo anedotário prova-se pedagógico. Se necessário, exploram-se as reservas de emoção de um povo inteiro em proveito dos alegóricos êxtases formativos do indivíduo. No capítulo das antologias, não se pode dizer que outra coisa se tenha passado na música deste século. Ou seja, editoras como Vampisoul, Honest Jons, Soul Jazz, Soundway ou Analog Africa não estão mesmo a fomentar um encontro entre extraviados fonogramas e as mais avançadas técnicas de arquivologia empregues na sua conservação. Procedem de modo muito mais correto: sem camuflar assimetrias reais e dispensando a proteção da distância social, dedicam-se simplesmente à escuta daqueles que se tentam conhecer a si próprios dentro de um labirinto de vinil. É o caso de Lucas Silva, proponente da superação de anacronismos pela via dos colombianos Son Palenque. O seu esforço e desespero, mas também o seu oportunismo, sintetiza-se no subtítulo de uma compilação que organizou em 2002: “Visionary Black Music from Underground Colombiafrica”. Entretanto, já Palenque de San Basilio foi adotado pela UNESCO e já a Soundway editou “Palenque Palenque”. Mas só agora, recorrendo ao melhor de LP lançados entre 1983 e 1986, em que figuram Michi Sarmiento ou Abelardo Carbonó, se forma, com laivos de sessão espírita, uma memorável apresentação deste preclaro conjunto que anunciava de onde vinha antes ainda de se perceber ao que soava: ao abismo histórico que para sempre une e separa África e América do Sul.

Peter Evans Quintet “Destination : Void” (More is More, 2014)



Trata-se, à primeira vista, de uma tácita adesão de Evans ao universo da ficção científica, através da evocação da obra de Frank Herbert, autor de “Dune”. Publicado em 1966, esse “Destination: Void” original visava a controvérsia, prenhe de tentações prometeicas e alertas proféticos em polémicos temas como os da clonagem ou inteligência artificial que as suas personagens acareavam de modo complexo e dos quais sobressiam conceitos eminentemente comparáveis: conspiração e culpa, ética e experimentação, moralidade e mortalidade, senciência e sociobiologia, forma e função. Mas, neste caso, conquanto dessas problemáticas comungue, talvez se cuide antes de prevenir o ouvinte, asseverando que, por mais extraordinário que pareça, nada disto é absolutamente imune à lógica. E ainda que para o disco alguma coisa se tenha transferido da sensação de claustrofobia e catástrofe iminente que se imputa a Herbert, o interesse aparenta ser outro: propor um paradigma de sustentabilidade orgânica para o que se terá de apelidar como jazz eletroacústico. É, assim, tão fisiológico quão ontológico, o sucessor de “Ghosts”. É como a nave do “Alien”. E embora dependa de uma disposição de tal maneira augural que se diria transcender a própria compreensão, nele, Evans, Sam Pluta, Ron Stabinsky, Tom Blancarte e Jim Black tocam com tamanha exatidão que dão mostras de tudo tornar inteligível. É um paradoxo que percorre as criações do trompetista, aqui dado a uma congregadora visão de conjunto que o distancia de testemunhos deixados em palcos portugueses, onde se costuma comportar como aquele rapaz penteado de credencial ao peito que, na rua, pede uns minutos da nossa atenção. Por ora, volta a ser um estranho numa terra estranha. Bem como o queremos.