27 de junho de 2009

"Legends of Benin"

É da desilusão com as origens que trata quem longe de casa procura um sentido para a vida. Disso e, neste particular, do abraçar do antigo impulso que identifica o regresso a África como uma cura espiritual. E num tempo em que a armadilha socrática dos motores de pesquisa apaga mais realidade do que a que revela, não terá melhor missão o activista que ruma ao Velho Continente como quem remenda um coração partido. Assim chegou a Vampi Soul à Nigéria, a Soundway ao Gana, a Oriki ao Mali, a Sublime Frequencies ao Sara Ocidental ou a Analog Africa ao Benim. Numa acção editorial capaz de restabelecer a figura do DJ ao serviço da clarividência estética. E é apropriado que se imponha agora esta antologia que – evocando a obra de Gnonnas Pedro, El Rego, Honoré Avolonto e Antoine Dougbé gravada entre 1969 e 1981 com bandas como Poly-Rythmo, Black Santiago, Commandos ou Panchos – parte da região que assombrou as encruzilhadas da mais significativa música popular do século XX. Porque do Benim, com os princípios do vodun, seguiram os sons que se espalhariam pelo Delta do Mississippi na errância de Robert Johnson e nos ecos do primeiro jazz, mais tarde relembrados nas receitas de Dr. John, Jimi Hendrix ou Miles Davis (“Bitches Brew”). Aqui, testemunha-se o impacto dessa descoberta – também graças à popularidade de James Brown – numa produção local que havia já assimilado o highlife, o juju, o afro beat e a rumba congolesa. Ou seja, o funk enquanto abanão estrutural naquilo que pela vizinhança faziam Orchestra Baobab, King Sunny Ade, Super Rail Band, Ambassadeurs do Motel, Fela Kuti ou Franco. E, na fantasia de uns Meters entregues ao jazz etíope, dos Santana perdidos em Memphis ou de Ray Barretto ao lado de Sam Cooke, a própria matéria que renova o sonho.

20 de junho de 2009

Sublime Frequencies (Omar Souleyman e Group Doueh na Gulbenkian)

Que Marshall McLuhan não cunhou a expressão “aldeia global” para que volvidos 50 anos se vendessem entradas na Dubailand será um facto. Mas talvez tivesse deixado a teoria amadurecer na gaveta se supusesse que a grande questão sobre tecnologia na mente das crianças da Era-Magalhães viria a ser: ‘antes da Internet, como se procurava no Google?’. Terá de se lhe perdoar a católica tendência de aspirar ao infinito e nele identificar a bondade. Porque com maiores ou menores revoluções no acesso ao conhecimento e à informação, o Mundo, naquilo que realmente conta, não mudou muito desde que há um século Mark Twain seguiu a linha do Equador tropeçando em aforismos como o de que a verdade – por não ter de se limitar ao possível – é mais estranha que a ficção.

A Sublime Frequencies lembra isto e muito mais. O impacto daquilo que faz tem hoje o efeito de se sugerir que o Mundo real só começa depois de terminada a última página de resultados num motor de pesquisa. Isso, porque contraria o discurso de homogeneização cultural e determinismo antropológico tantas vezes coincidente entre os mais activos agentes na ‘música do mundo’ e qualquer campanha publicitária que garanta férias de sonho. Mais concretamente, descarta um trunfo que de tão jogado esgotou já a capacidade de surpreender: o da autenticidade. E assim traz à memória a declaração de Edgar Morin sobre o Cinéma Vérité, de que, das duas uma, através dele se pretende revelar a verdade ou colocar a problemática da verdade. É uma estratégia que evita categorizações de mercado sem se socorrer da ingenuidade optimista dos manifestos.

Desde 2003 que – estabelecida então por Alan Bishop com o seu irmão Richard Bishop e o videasta Hisham Mayet– desafia convenções. Mantendo-nos na metáfora do Cinema, poderíamos, para a qualificar, evocar as ‘etnoficções’ de Jean Rouch, mas, na prática, a editora encontrou um meio em tudo mais alegórico para a compreensão das suas construções: a rádio. No seu catálogo, encontramos em “Radio Java”, “Radio Morocco”, “Radio Palestine”, “Radio India” ou “Radio Thailand” uma série com a ambição de, numa concentração quase hiper-realista, representar um certo tempo e um certo espaço. São gravações in situ de transmissões em onda curta – algumas com mais de 20 anos e sofrendo todo o tipo de manipulações, cortes e colagens – pelas quais se adivinha um clamor de vozes, música, anúncios e estática na cacofonia própria do que vive em simultâneo. É uma apropriação de memórias tanto quanto a sua invenção e a sua partilha. E, no limite, uma alteração de paradigma na mediação etnomusicológica, capaz de mostrar culturas locais fervilhantes, em que acordes de uma canção dos Rolling Stones incluídos no repertório de uma banda de garagem tailandesa não causam mais espanto que uma batida de bossa nova evadindo-se do éter palestino. Daí que sugestões de imperialismo cultural na sua acção se remetam para a condição de preconceito de quem tem as lentes postas do avesso.

A sua perspectiva, como era a das bem-intencionadas Folkways, Nonesuch Explorer Series ou Chant du Monde, combina a diletante inclinação para o exótico do viajante com a propensão para o trabalho exaustivo do arquivista. E é inédito o propósito de preservar a diversidade num conjunto de manifestações artísticas muitas vezes contraditórias entre si e, regra geral, resultantes de embates estéticos com o Ocidente. Porque, sem condescendência moral, não hierarquiza a produção com que se cruza. Valida compilações como “Ethnic Minority Music of Northeast Cambodia” e antologias de características imprevisíveis como “Princess Nicotine: Folk and Pop Music of Myanmar (Burma)”. Pelo caminho, revela o que mais ninguém tem registado de forma abrangente e sistemática: a pop urbana do Iraque, da Birmânia, da Indonésia ou da Tailândia. A consequência da sua audição é devastadora e obriga a uma instantânea relativização da imagem tradicional de cada país. E não será por acaso que se sucederam volumes consagrados à Coreia do Norte, Iraque ou Síria no preciso momento em que o valor do ‘mal’ impregnava discursos políticos. Contrariar a engenharia social levada a cabo por governos e grupos de pressão evidencia ainda uma herética dimensão eminentemente biográfica: Alan e Richard são de origem libanesa e, durante mais de duas décadas, formaram, com o já falecido Charles Gocher, os Sun City Girls, banda capaz de reunir resíduos musicais de todo o Mundo numa actuação, num disco, num tema. Para alguns, a Sublime Frequencies servirá para revelar a fundação de um grupo que parecia saber tudo aquilo que aos seus fãs era interdito.

Seria uma questão de tempo até que a contemporaneidade se impusesse na agenda da editora. Fiel aos seus princípios, chega graças à descoberta de nomes tão fascinantes e enigmáticos quanto os que nesta sua digressão traz a Lisboa. O Group Doueh, proveniente do Sahara ocidental, evoca o funk e o rock psicadélico mas com instrumentos cheios de areia e história, crus, secos e fossilizados, sacudidos pelas vozes e pela guitarra num arremesso sensual que sintetiza devoção e irredutível independência desde a costa da Mauritânia até aos ecos de Hendrix pelas margens do Mississippi. Omar Souleyman é sírio e propõe algo de radicalmente diferente: entre percussionistas proto-Miami bass e um teclista a lembrar um Tomita-sob-ácidos, canta e fala em vertigem sobre um fundo sonoro pimbadélia-em-esteróides que faria os sonhos arábicos de Kanye West. A música do Mundo não fica mais estranha e real do que isto.

13 de junho de 2009

Martinho da Vila "O Pequeno Burguês!!"

Abre com um elegante inédito (‘Filosofia de Vida’) e diz logo ao que vem: “Meu destino eu moldei / Qualquer um pode moldar / Deixo o mundo me rumar / Para onde quero ir / Dor passada não me dói / E nem curto nostalgia / Eu só quero o que preciso / Pra viver meu dia a dia”. E se há tendência que sempre o definiu foi precisamente a que equilibrava razão e fé, e que Martinho cantou como “tenho fé na razão”. Esse diálogo entre determinismo e liberdade é, aliás, constante ao longo dos seus 40 anos de carreira. Por sinal, não se imagina nenhum outro sambista capaz de renunciar à nostalgia na noite em que comemora 70 anos de vida. O que é consequência de outro factor determinante na sua trajectória: o culto da fraternidade. Daí que, no samba, seja o maior dos estóicos. Nessa perspectiva, é natural que este concerto em 2008 gravado no Teatro Fecap, de São Paulo, inclua clássicos de 1969, 70 e 71 – como ‘Casa de Bamba’, ‘Pra Que Dinheiro’, ‘O Pequeno Burguês’, ‘Tom Maior’ ou ‘Menina Moça’ – em que celebrava sobretudo a comunidade, a família e a natureza. E é paradigmático que seja nos temas em que está só, cantando a capella, que, pelo coro do público, transpareça a verdade da voz da sua gente.

5 de junho de 2009

Carlos Martínez “Atahualpa Yupanqui – Obra Completa Para Guitarra (Composiciones Propias)”

Portugal percebeu-o bem. E não foi apenas para apadrinhar Abril que, um dia, don Ata ‘saudou’ Zeca Afonso evocando mais o sopro do vento do que a vontade dos homens. É que não será a distância a separar quem, em países cortados ao meio, soube ao verdugo responder com uma poética de flores de estio. E se, por vezes, a política mais não faz do que mistificar valores inscritos na terra, o que dizer de quem – na sua Argentina – soube reclamar um lugar no coração geográfico de um país de forma a melhor entender o que lhe ia na alma? E, para mais, criando um estilo que – como por cá o de Paredes – só não fez escola porque se revelou inimitável. Daí a impossível tarefa do guitarrista Carlos Martínez e o paradoxo em que assenta o seu absoluto triunfo. Pois constata que, mais do que a compreensão do tempo cronológico, em Yupanqui é necessário reconhecer aquilo que a filosofia apelida por ‘tempo oportuno’. Isso, e a aceitação de uma cumplicidade geográfica que – por entre sarças e canaviais, nas serranias e nos planaltos – se revela sempre que numa decantação folclórica o sangue se mistura com as cordas e a madeira. Do andino sonho de tocar a lua à descida da cruz de quem canta errando pela pampa, esta é a música enquanto metáfora de silêncios.