28 de julho de 2012

Omara Portuondo “Rompiendo La Rutina: Tributo A ‘La Emperatriz Del Danzonete’, Paulina Álvarez” (Egrem/Karonte, 2012)


Embora cientificamente pouco rigorosa, é a essência da ‘remistura’. E na primeira divisão da música popular abundam exemplos de obcecados pela última palavra que acorrem a estúdios de som para acrescentar novas pistas às antigas. Por perfeccionismo, funcionalismo, revisionismo ou, até, para corrigir imoderadas reconfigurações aplicadas ao longo do tempo – surgem neste particular um manancial de casos com origem no subsequente emprego do estéreo em gravações em mono. Mas no que diz respeito a ações comandadas por editoras há um singular modelo de bom gosto quando em 1979, na tecnicamente descritiva “Reconstituição com Orquestra e Coro em 16 Canais”, a Copacabana gravou modernos arranjos, lá está, orquestrais e corais, para acrescentar às pistas originais de voz registadas nos anos 50 por Dolores Duran. Agora, chega à europa uma variação sobre o conceito realizada pela cubana Egrem através de Omara Portuondo. Com ponto de partida nas sessões de 1964 da carismática Paulina Álvarez (morta em 65 e cujo centenário de nascimento se celebrou a 29 de Junho), cria-se o que à primeira vista parecem ser meros ‘duetos virtuais’ (praga industrial da última vintena de anos que o karaoke e os concursos televisivos de talentos exacerbaram mas que terá ainda como mais infame e necrófaga página a revisão de Kenny G à ‘What a Wonderful World’ cantada por Louis Armstrong), mas que uma segunda leitura tornada crucial pela presença em sete temas, dos doze, de Xiomara Valdés, uma das antigas companheiras de Portuondo no Cuarteto D’Aida, comprova tratar-se de um pungente regresso a uma Havana – dos anos que vão da sórdida elegância da ditadura de Batista aos da sombria esperança da revolução de Castro – em que as três vocalistas, quase meninas, se cruzavam por cafés, teatros e estações de rádio sonhando apenas com o futuro.

21 de julho de 2012

Vários “Jende Ri Palenge – People of Palenque” (Soul Jazz, 2012)


Seguindo preceitos mais romanescos do que historicistas, a Soul Jazz apresenta San Basilio de Palenque como um enclave afrocolombiano, no qual, pelo menos desde o século XVII, se fixaram escravos fugidos de Cartagena. Sugere-se que se tratará do primeiro quilombo e mais antiga cidade livre anteriores à abolição da escravatura em território americano, embora se deva, respetivamente, citar o Quilombo dos Palmares, na Capitania brasileira de Pernambuco, e Yanga, no estado mexicano de Veracruz, como precedentes. Seja como for, sob o véu de pretensiosismo vislumbram-se factos verdadeiramente importantes: nomeadamente, nos minutos do DVD (do mais frustrante naturalismo) em que se filmam danças com características eminentemente bacongas – movimentos rasteiros, afincamento de pés, genuflexão, meneios torçais ou poses rodadas – que, ainda mais do que no Reino do Kongo, situam abruptamente a ação no Recôncavo Baiano, em sessões de samba de roda; daqui está também ausente qualquer análise dos componentes religiosos e ritualistas que se suspeitam de enorme relevância na sua função performativa; nenhum esforço associa ainda esta música – a ligação é compreensível em padrões rítmicos e responsoriais – a formas há muito detetadas no Caribe; e, apesar de se proceder à salvaguarda de distinções dialetais, carece a sua exposição de uma contextualização etnolinguística no idioma banto ou em especificidades crioulas. Deslumbrados por aquilo que a antropologia apelida de ‘primeiro contacto’, os antologistas Santiago Posada e Simón Mejía (fundador dos Bomba Estéreo) têm o mérito de gravar pela primeira vez uma dezena de valiosas e arrebatadas formações a que, a convite da editora, estetas da música de dança como Osunlade, Matias Aguayo, Deadbeat ou Kalabrese, num segundo CD, impõem uma estilização normativa.

14 de julho de 2012

Sugestões de Verão


Renaud García-Fons “Solo: The Marcevol Concert” (Enja, 2012)
De múltiplo alcance, através de efeitos, pré-gravação de bases ou processamentos, a expressividade de García-Fons ao contrabaixo atinge porventura um dispersivo e caprichoso zénite, num universalista postulado de servência cumulativa em que o virtuoso vagueia pelo mundo com a contumácia do topógrafo original, evocando África, o Mediterrâneo, a coxilha argentina, a Andaluzia ou o Próximo Oriente.  


Arnaldo Antunes, Edgard Scandurra & Toumani Diabaté “A Curva da Cintura” (Mais Um Discos, 2012)
Apura-se o lúdico e o telúrico em Antunes na medida em que aumenta o grau de complexidade cultural das suas construções. Aliado de Scandurra, essoutro agente do BRock, nos IRA!, esboça agora o ex-Titãs um redentor estudo sobre a canção popular enquanto contingência do panafricanismo e do latinismo, coadjuvado em Bamako por Toumani e seu filho, Sidiki, em vésperas do caos político que tomou o Mali.
Caetano Veloso and David Byrne “Live at Carnegie Hall” (Nonesuch, 2012)
A apresentação é de 2004 – no âmbito da série Perspectives do Carnegie Hall – e pressupõe no seu figurino acústico a prevalência de um efeito de consagração. Mas o inesperado acanhamento dos protagonistas, reunidos apenas em três temas, diz mais sobre a natureza de um repertório (de ‘Sampa’, ‘Terra’ e ‘O Leãozinho’ a ‘And She Was’, ‘God’s Child’ ou ‘Road to Nowhere’) imune a qualquer desfiguração.
 
Vários “Cumbia Cumbia” (World Circuit, 2012)
Primeiro em 89 – o comboio na capa e a abertura com ‘La Colegiala’ testemunhavam o impacto de um anúncio da Nescafé de inícios da década – e depois em 93 com uma sequela, traçou a World Circuit um perfil da editora colombiana Discos Fuentes (alvo de subsequentes ações da Soundway ou da Vampisoul) que agora reedita num escopo vagamente caótico – de finais de 50 aos de 80 – mas não menos contagioso.

Vários “Skanish Sound” (Vampisoul, 2012)
São variações algo amorfas sobre ska e outras emergentes formas jamaicanas mas também o era o ‘Ob-La-Di, Ob-la-Da’, dos Beatles, sem metade da graça e, fundamentalmente, sem ter de arrostar a censura franquista. Numa espécie de banda sonora para sonhos dourados na Costa del Sol, eis 18 ensaios gravados em Espanha entre 64 e 72 sobre originais de Jimmy Cliff, Desmond Dekker, The Pioneers ou Millie.

7 de julho de 2012

Chavela Vargas “La Luna Grande” (Corasón/Karonte, 2012)


Numa invulgar combinação diegética, Chavela declama poemas e fragmentos da obra literária de Federico García Lorca – edificada entre meados dos anos 20 e 30 do século passado – enquanto os seus guitarristas, Juan Carlos Allende e Miguel Peña, a acompanham discorrendo sobre um cancioneiro que traça o essencial de uma biografia artística firmada nos anos 50 e 60. O anacronismo é ilusório, embora raras vezes coincidam temáticas: por exemplo, o verso “toda mi vida de sus labios suspendida”, extraído à operática farsa “Lola la comedianta”, ganha eco no desamor forçado de ‘Nosotros’, de Pedro Junco; da mesma maneira, estabelece-se um inesperado paralelismo entre o bolero ‘Luz de luna’, de Álvaro Carrillo, e a leitura de ‘Canción de Jinete’, história de sangue e contrabando banhada por uma lua negra; e é também na noite que se desencontram os amantes de ‘Soledad’ e os de ‘Gacela del amor desesperado’, coligido em 1934 no poemário “Diván del Tamarit”. Mas na maior parte dos casos, talvez por estarem juntos em pensamento, a embargada entoação da voz parece vir de um tempo contemporâneo ao da escrita. Nessa perspetiva, a evocação das inolvidáveis ‘Noche de ronda’, ‘Si no te vas’, ‘Se me hizo fácil’, ‘Macorina’, ‘La llorona’ ou ‘Cruz de olvido’ serve aqui um propósito confessional, em que, por anteposição, se credencia ao escritor uma dimensão fundadora na identidade da cantora. O que implica pensar-se em sexualidade (pagaram ambos por assumir a homossexualidade num meio discriminatório) e morte (o assassinato do granadino e a ‘morte em vida’ de Chavelas, de que nada se soube durante 15 miseráveis anos). É uma desapiedada catarse que deslumbra ao mergulhar no abismo mas que jamais concede ao martírio e, talvez por isso, uma derradeira afirmação de liberdade, rebeldia e romantismo.