27 de março de 2010

El Gran Fellove “Mango Mangüé”

“Ah Fellove estavam a tocar o teu Mango Mangué no rádio e a música e a velocidade e a noite envolviam-nos como se quisessem proteger-nos ou enlatar-nos no seu vazio e ela ia ao meu lado, a cantar…”, escreveu Guillermo Cabrera Infante em “Três Tristes Tigres”. E, porque ambos contribuíram para uma certa ideia de diáspora, parece apropriado evocar o nome de um através do outro. Ainda para mais quando representam também uma dimensão relativamente esquecida – senão subestimada – mas essencial na compreensão do sincretismo cubano: a da sátira. Esta antologia de Francisco Fellove Valdés poderá enfim contribuir para a alteração do estatuto do seu titular. Porque, injustamente, permanece uma nota de rodapé nos estudos sobre música latino-americana quem no seu tempo ganhou o epíteto de “El Gran” e, fundamentalmente, porque o que nela se ouve ilustra de forma exemplar décadas de transformação estética. Gravados para a RCA mexicana entre meados dos anos 50 e inícios de 60, estes 21 temas, talvez inadvertidamente, reavivam de forma exaltante velhos cismas nascidos no contínuo frenesi criativo de Havana. E derivam do fundamento rítmico afro-cubano para logo trazer à lembrança guarachas de antigas zarzuelas, combinam rumbas ouvidas nas docas com refinados arranjos para orquestra ao estilo dos espectáculos de Xavier Cugat no “Tropicana”, cruzam mambo e guaguancó, estilizam o bolero e o cubop (Fellove, antes de abandonar a ilha rumo ao México e Nova Iorque, participava nas famosas descargas organizadas por músicos como Israel ‘Cachao’ López), agilizam o son montuno de Septeto Habanero ou Sexteto Nacional, abrandam o cha cha cha e, precocemente, aceleram o boogaloo, ensaiam o doo wop ao jeito dos Zafiros e, essencialmente, servem um vocalista que – entre Louis Armstrong e Cab Calloway – se entregava ao scat como se o tivesse inventado. No mínimo, inesquecível.

20 de março de 2010

Ali Farka Touré & Toumani Diabaté “Ali and Toumani”

Se em vida Ali Farka Touré serviu as mais apócrifas especulações – e a maior, aquela parábola em que surgia como um ‘elo perdido’ entre qualquer coisa demasiado antiga para vir nos livros de História e o que pela América do Norte faziam bluesmen como John Lee Hooker ou Lightnin’ Hopkins, colou-se-lhe à pele desde a sua ‘descoberta’ – não será agora, ao cumprir-se o quarto aniversário da sua morte, que virá comprovar imperturbáveis axiomas. Mas não restarão dúvidas que, talvez por incapacidade em lidar com tão insular proposta, preferiram ignorá-lo (todos os que ‘o levaram’ ao ocidente) sempre que dizia, simplesmente, tocar “música africana”. Porque a verdade é que não há mais fiel expressão para o distinguir nem será outra – ainda que fiquem os momentos de maior notoriedade na sua biografia artística ligados a músicos de distinta proveniência – a fonte de que sempre bebeu. Para o entender basta voltar a “The Source” (1992), em que tudo depende da imanência musical de África.
Também “Ali & Toumani” se ouve como uma contínua balada. E, contrariamente a “Savane” (2006), que vinha sobretudo relembrar o que o seu autor fez em vida, aproxima-se este segundo título póstumo da ideia de testamento criativo. Porque se por um lado – frágil, brando, meditativo, de tempos lentos, cordas mal pisadas e guitarra amparada pelo diáfano rendilhado da kora de Toumani Diabaté – nele se reconhece um homem invadido pela leucemia, prudentemente resignado face ao seu destino, por outro, recorrendo com inesperada urgência a uma reserva de fantasia – a tradição mandinga – que há muito se provou inesgotável, permite imaginá-lo antes em eterno passeio pelas verdes margens do rio Níger, saudando com estas canções as blandícias da Primavera. E não se poderá pedir muito mais a um último álbum.

13 de março de 2010

Antônio Carlos Jobim "Minha Alma Canta"

Consumido por uma perene frustração, Almir Chediak desabafou um dia com o seu aluno Moreno, filho de Caetano, quanto à absurda desadequação dos livros de partituras para violão face ao real interesse dos seus executantes. E porque proficiência no “Concerto de Aranjuez” serviria saraus familiares mas dificilmente conquistaria corações impunha-se uma simples questão: porque não – passando canções ao papel – facilitar a vida aos fãs de Caetano, Chico, Gil, Djavan ou Vinicius? Entre 1989 e 2003, ano do seu assassinato, Chediak organizou esses “Songbook” criando a editora Lumiar e, a partir do volume dedicado a Noel Rosa, produzindo um CD em que cantores consagrados interpretavam temas dos homenageados. Jobim, na sua derradeira fase de absoluto sincronismo – em que cabiam samba, impressionismo, a Mata Atlântica bordejando o litoral e o Sabiá anunciando a Primavera, e em que perdia a voz à medida do desaparecimento da Amazónia – teve na série as catorze participações aqui reunidas. Apoiado na Banda Nova – dos jobins, morelenbaums e caymmis – e nas vozes de Chico, Leila Pinheiro e uma sublime Gal, torna suas páginas de Vinicius, Noel, Ary Barroso, Dorival Caymmi e Edu Lobo, aproveitando, como sempre, para relembrar a todos o que é ser-se brasileiro.

6 de março de 2010

“Éthiopiques 24: Golden Years of Modern Ethiopian Music 1969-1975” & “Éthiopiques 25: 1971-1975 Modern Roots”

E do baú não se vê o fundo. Porque, contrariando permanentes mistificações sobre a acessibilidade, a verdade é que o mundo continua cheio de histórias por contar. Outra coisa não motivou Francis Falceto quando, em 1997, iniciou a série que mais vezes desde o “Live Aid” levou o nome da Etiópia aos jornais. Que o tenha feito sem apelar a caridosos instintos ocidentais será, em si, um pequeno triunfo. E, ainda que assente em méritos artísticos individuais, desse esforço não foi consequência menor a chegada de Mulatu Astatke (vol. 4) ou Alému Aga (vol. 11) a palcos internacionais. Agora, torna ao catálogo de Ahma Eshèté, do qual havia já extraído material para os volumes 1 e 3, e, como duas faces de uma mesma moeda, representa estilos urbanos (vol. 24) e rurais (vol. 25). Como de costume, não sugere menos que a descoberta de uma realidade paralela em que toda a importante música moderna parece ter raiz na terra da australopiteca Lucy. Porque, já um antepassado nosso o sabia (Francisco Álvares, autor em 1540 de “Verdadeira Informação sobre a Terra do Preste João das Índias”), aí normalmente se confundem facto e fantasia.