26 de novembro de 2016

Alcides “Alcides” (Reed. de autor, 2016)


Estavam meia-dúzia de caras conhecidas no claustro do Palácio Almada-Carvalhais. Fazia-se conversa de circunstância e os mais ansiosos entretinham-se a observar colunas e capitéis, apontando uma caveira aqui, uma cabeça de cão acolá. Eram horas e o B.Leza continuava fechado. No primeiro andar desfazia-se um novelo de cadeiras, abastecia-se o bar, lavavam-se soalhos a meia-luz. Não fosse a ameaça de chuva nessa noite de outono de 1997 e o atraso ainda teria sido maior, mas a verdade é que já passava da uma quando Alcides subiu ao palco para apresentar “Pensamento”, um notável disco de estreia que a Áfrika Produções e a BMG tinham colocado no mercado antes do verão. Com quase dois metros, apequenava-se ao atuar, receoso de perder a afinação, jamais esforçando um timbre de que não se esfumariam a candura e a esperança. O público fazia coro em ‘Nho Manel’ e ‘Chica di Nha Maninha’ e dançava, apanhando Alcides de perfil, o ‘ouvido bom’ à coca do que a banda fazia. Sabia-se que lhe tinha sido diagnosticada neurofibromatose e que um punhado de tumores lhe tomava conta do aparelho auditivo mas não se podia crer que se pudesse doravante ficar sem a sua voz. O destino foi-lhe ingrato: totalmente surdo, Alcides não tornou a gravar, embora se mantenha ligado ao B.Leza. Pode ler-se algo da sua história em alcides-album.com e hoje, no CCB, recebe convidados dispostos a visitar esse repertório que começou a fixar em estúdio há 20 anos. Também o álbum foi reeditado, simplesmente como “Alcides”. Em parte devido ao génio de Paulino Vieira, que salta de instrumento pela mesma razão que um colibri muda de flor, e a par de “Miss Perfumado” (Cesária Évora), “Canta Eugénio Tavares” (Sãozinha), “Terra & Cretcheu” (Teófilo Chantre), “Nos Tradição” (Celina Pereira), “Raíz” (Simentera), “Reencontro” (Djurumani), “Graça de Tchega” (Tito Paris), “D’Zemcontre” (Maria Alice), “Nos Morna” (Ildo Lobo) e “Coraçon Leve” (Herminia), está entre as obras-primas da música vocal cabo-verdiana da era do CD.

Keith Jarrett “A Multitude Of Angels: Modena, Ferrara, Torino, Genova” (ECM, 2016)



Módena, Ferrara, Turim, Génova, outubro de 1996. Nas manchetes dos jornais sentiam-se as ondas de choque desencadeadas pela última provocação da Liga Norte mas também chegavam novas da campanha para as presidenciais norte-americanas, em que se discutia mais o financiamento dos partidos do que o mérito dos candidatos. Na rádio e televisão rodavam as canzoni de Lucio Dalla e nas salas de cinema estreava “Trainspotting”. Deitado num quarto de hotel ou debruçado da janela de um avião sobre o rio Pó imagina-se Keith Jarrett a interrogar-se: mas que faço eu aqui? Estava à beira da exaustão física e mental, consumido pela síndrome de fadiga crónica, aquilo a que se vai chamando doença sistémica de intolerância ao esforço. Em notas de apresentação brutalmente honestas, admite agora que se sentia entre a vida e a morte, a lutar com todas as forças para não sucumbir à enfermidade e a tentar reunir diariamente a coragem necessária para subir ao palco. Logo após estas quatro datas seria engolido pela depressão e pela debilidade, numa profunda agonia de que se soltaria aos poucos até à edição do fisioterapêutico “The Melody at Night With You”.

Curiosamente, ou, quiçá, em vista disto, considera estas gravações como o cume da sua carreira. Diz: “Estes foram os últimos concertos que dei sem intervalos entre sets. [i.e., com aqueles extensos e excêntricos arcos narrativos a rondar a meia hora cada um, mais imponentes que a pala do Siza]. Ontem, ao acabar de escutá-los, lembrei-me da razão de ser disto tudo: a capacidade de captar conscientemente cada momento.” Na realidade, estes 280 minutos são uma espécie de compêndio de um executante já de si enciclopédico. Ou melhor, são como um “Borda d’Água” do pianismo contemporâneo, ecumenicamente permeáveis ao conhecimento técnico mas também ao esotérico, abertos a todo o tipo de curiosidades. Do telúrico (Ferrara, “Part I”) ao celífluo (Turim, “Part I) será apenas incoerente para uns, indulgente para outros, indispensável para os demais.

19 de novembro de 2016

Berio: Sinfonia; 10 Frühe Lieder (Harmonia Mundi, 2016)



Na mais bem conseguida entre as “Fünf Frühe Lieder” e as “Sechs Frühe Lieder” – o conjunto das canções da juventude de Gustav Mahler orquestradas por Luciano Berio entre 1986 e 1987 e agora interpretadas por um Goerne em estado de graça – escuta-se o insistente telintar do relógio biológico: “De pé, dorminhoco! Toca a levantar!” É em “Frühlingsmorgen”, o momento em que, conforme caracterização sua, Berio invocava um “Mahler improvável”. Também em “Sinfonia”, mais concretamente no seu terceiro andamento, por intermédio de citações de “O Inominável”, de Samuel Beckett, se vai repetindo em refrão “Keep going” (“I have a present for you. Keep going, page after page. Keep going, going on”). E do mesmo modo era de Mahler que se falava, daquele que Berio via como um zelador da história da música. Aliás, o andamento, uma das obras-primas do século XX e a principal razão de ser deste extraordinário CD, assentava num decalque a papel vegetal do scherzo da segunda sinfonia de Mahler, a ‘Sinfonia da Ressurreição’. Por isso, antes de chegar ao fim, dá-se por esta frase: “E pronto, acabou, já tivemos a nossa oportunidade. Por um segundo, até, tivemos esperança na ressurreição.” Há dezenas de alusões musicais (a Berlioz, Beethoven, Berg, Boulez ou Brahms, para nos ficarmos por uma letra, como um jogo de majongue com o texto de Beckett) e Berio fala tanto de uma nova vida para a música quanto de uma repentina cura para a sociedade. “O inesperado está entre nós”, avisa. Como aqui? Nunca mais.

Bitori “Legend of Funaná” (Analog Africa, 2016)


Tem ganho novo fôlego, a concertina do septuagenário Bitori Nha Bibinha (Victor Tavares). E assim tem sido desde que o cantor Chando Graciosa o convenceu a entrar num avião em Cabo Verde para aterrar num estúdio de gravação na Holanda, em 1997. O resultado foi mais ou menos este – comparada ao lançamento de 1998 pela CDS Music Center dá-se pela falta de dois temas na presente reedição – e não se pode dizer que tenha envelhecido mal. Claro que, literalmente, anos a fio de eletrificação do funaná não permitiam que se levasse avante o plano de Graciosa: “A nossa ideia era gravar um som o mais cru e próximo possível do que é o registo original do funaná”, conta, agora, em notas de apresentação. Não, para tal teria de se ouvir “Cape-Vert”, o CD de Kodé Di Dona que a Ocora colocou no mercado em 1996. Mas, de certa forma, ainda bem que assim foi, pois só algo com este tipo de tração – para a qual contribuíram decisivamente Grace Évora e Danilo Tavares, instrumentistas que faziam na altura a transição dos Rabelados para os Splash – garantiria proteção contra as camadas de pretensão museológica que iniciativas destas têm tendência a acumular. Outra coisa, aliás, não terá atraído Samy Ben Redjeb (Analog Africa), que preferiu reeditar um álbum com quase vinte anos do que produzir um novo de raiz. Para mais quando terá escrito Bitori no Google e o Google lhe terá perguntado de volta se ele não quereria antes dizer bisturi. Porque a ideia com que se fica ao ler o livreto deste “Legend of Funaná” é que Redjeb é uma espécie de São Judas Tadeu da música africana. E é como se o funaná tivesse começado e acabado em Bitori e nunca tivessem havido uns Bulimundo ou uns Finaçon ou não existissem hoje os Ferro Gaita. Nem se refere que Bitori e Graciosa voltaram à carga em 2002 com “Más um Funaná”. Seja como for, foi Redjeb que permitiu uma segunda vida a Bitori. E, até em Lisboa, já vão Julinho da Concertina e Katuta Branca ao centro da cidade sem ser para tratar do cartão de cidadão.

12 de novembro de 2016

Barry Guy, Marilyn Crispell, Paul Lytton “Deep Memory” (Intakt, 2016)


É uma categoria, a da memória profunda, que se identifica ao nível da memória dos sentidos ou da memória involuntária. Nem por acaso, o primeiro tema deste novo CD de Guy, Crispell e Lytton, após “Odyssey” (2001) e “Ithaca” (2004), chama-se ‘Scent’ e surge informado por aquele tipo de repentismo capaz de alterar a direção do vento numa planície e polvilhado por melodias saídas de um lanho em terras andaluzas, quase se pressentindo pelo ar as fragrâncias da alcaravia, do alecrim, do cravo e da canela. De modo igualmente sugestivo, se de facto desviarmos as atenções de “Phases of the Night” (um disco que o trio viu ser lançado em 2008 e que, de certa forma, não se alinha com estes três), encontramos mais à frente ‘Return of Ulysses’, o que quer dizer que, mais do que a Homero, se dá mostras de regressar a Joyce, que em “Ulisses” disparava o gatilho do exotismo e do erotismo com uma canção como ‘In Old Madrid’, com andamento marcado a castanholas e aroma a Peau d’Espagne colado a cada palavra. 

Irlandês, como Joyce, o pintor Hughie O’Donoghue serviu de estro a Guy, que escreve: “[Os seus quadros] São um ato emocional sob uma perspetiva histórica”. Há, aliás, uma frase de O’Donoghue acerca do seu próprio trabalho que se poderia aplicar às composições de Guy: “Pintar é como fazer arqueologia ao contrário.” Numa entrevista ao site da Academia Real Inglesa, diz: “Na minha obra nunca há um motivo só para as coisas serem como são. Suponho que procuro a intensidade na cor para a fazer equivaler à intensidade do sentimento que a memória desperta.” É uma força de que Guy, Crispell e Lytton não abdicam. Escuta-se ‘Dark Days’, por exemplo, e imagina-se uma cidade reduzida a escombros, tiros e gritos, execuções e explosões. Quando O’Donoghue criou uma série de quadros inspirado pela Primeira Guerra Mundial, afirmou: “As pessoas pensam que a memória é estática, mas não é. Se não recordarmos estes acontecimentos de há 100 anos estamos fadados a repeti-los.” Também a música de Guy vem lembrar que do mundo não se espanta jamais a luta entre o bem e o mal – e que o mal às vezes vence.