30 de abril de 2011

Adriana Calcanhotto “O Micróbio do Samba” (Minha Música, 2011)

O caso de Adriana Calcanhotto aproxima-se daquilo que, num verbete do “Penguin Guide to Jazz”, Richard Cook e Brian Morton designavam como “síndrome de Rodin”: a tendência histórica de se salvaguardar como referência maior de um artista a sua obra menos representativa. De facto, só a sua trilogia inicial de álbuns relembra a relativa importância da sua produção e testemunha a invulgar combinação de astuta irreverência intelectual e ingénua vulnerabilidade emocional num quadro de cuidadosa transgressão pontuada por inesperadas rendições a fórmulas clássicas pela qual deverá ser relembrada. Esse impulso modernista tem vindo a diluir-se numa discografia que dissipa traços de identidade à medida que se vai tornando mais aclamada, privilegiando previsíveis colaborações, que implicam legitimações exteriores, e ‘projectos paralelos’ de irrelevância estética. Aqui, tal como a Marisa Monte de “Universo ao Meu Redor” ou o Caetano Veloso de “Zii e Zie”, pretende restaurar princípios autorais no seguimento/transgressão dos canónicos preceitos do samba. Mas perde-se numa estilização lassa, numa interpretação anémica, escrita trivial e fortitude ideológica colada a fita adesiva que só o engenho dos acólitos Domenico Lancellotti e Alberto Continentino resgata ao ridículo e protege da queda no absoluto vazio criativo.

23 de abril de 2011

Tulipa Ruiz “Efêmera” (Totolo, 2011)

Os miúdos continuam bem. E, por enquanto, resistem a levar-se demasiado a sério, embora Tulipa e o seu irmão e co-compositor Gustavo Ruiz – filhos de Luiz Chagas, antigo cúmplice de Itamar Assumpção nos Isca de Polícia e uma garantia de saudável inconformismo estético – andem, sem o querer, perto do manifesto geracional logo a abrir o álbum. Aí, acompanhada pelas vozes de Anelis Assumpção (filha de Itamar), Céu (filha de Edgard Poças) e Thalma de Freitas (filha de Laércio de Freitas), Tulipa canta uma tirada poética feita à medida das páginas de um diário – “hoje é o tempo pr’eu ficar devagarinho / com as coisas que eu gosto e que eu sei que são efémeras / e que passam perecíveis / e acabam, se despedem, mas eu nunca me esqueço” – mas que, aqui, à força do contexto genealógico e de um arranjo caribe-ó-havaiano que situa a acção entre a ‘Rainha do Mar’, de Gal Costa*, e a ‘Lenda das Sereias’, de Marisa Monte, parece conter tanto um impulso metamusical pronto a abranger universalmente a MPB quanto aquelas células de ironia com que os seus pais lhe desconstruíram as mais sufocantes formalidades. É, aliás, quando evoca directa ou indirectamente outras canções (‘Do Amor’ e ‘Sushi’ sugerem uma Alison Goldfrapp obcecada por Rita Lee e a guitarra de ‘A Ordem das Árvores’, por exemplo, tece a malha de ‘Ele Me Deu Um Beijo na Boca’, de Caetano Veloso, que, por sua vez, repetia já o padrão de ‘Love Rollercoaster’, dos Ohio Players) que se percebe claramente ao que vem a sua autora – o que remete para a tradição da Vanguarda Paulista (do Grupo Rumo, Premeditando o Breque, etc.) e contradiz o adjectivo com que intitulou a sua estreia em disco. Já os temas (‘Pedrinho’ ou ‘Brocal Dourado’) feitos à medida dos instintos e estratégias que movem as ‘redes sociais’ justificam plenamente a sua escolha.

* ou, já agora, 'Lua de Mel' (Lulu Santos), que Gal cantou em 87 no "Lua de Mel Como o Diabo Gosta"

2 de abril de 2011

Vitor Ramil “Délibáb” (Satolep, 2011)


Vitor Ramil canta dois poetas a duas vozes. Uma, segura de si, insinuante e incapaz de cortar o ar com um punhal mas certa de o carregar no bolso, dedica a Jorge Luis Borges. Outra, branda, singela e a tender para o infinito apenas por ansiar o regresso a casa, reserva para João da Cunha Vargas. A espelhar-lhe o movimento está a guitarra do argentino Carlos Moscardini, primeiro desenhando cornucópias por entre os desordenados arrabaldes de Buenos Aires e depois estendendo o passo pelos planaltos imensos do Rio Grande do Sul. Mas mais do que discutir literatura – nem este Borges das milongas reunidas em “Para las seis cuerdas” nem o Vargas de “Deixando o Pago”, que preferia declamar a escrever, o desejariam – está aqui a eleger um território comum tornado real pelos feitos dos homens e deixado mítico pelas palavras com que lhes traduzem os sonhos. Talvez por isso – por vaguear entre o verdadeiro e o imaginário – tenha Ramil encontrado no délibáb um pretexto de concentração teórica. É o que escreve na apresentação do disco: “não demorei a achar que a palavra húngara délibáb poderia dar nome a este trabalho. Trata-se de um fenômeno natural que é atração turística. A decisão só aconteceria depois que eu incorporasse uma das paixões borgeanas e partisse para o estudo etimológico. Foi quando descobri que délibáb, cujo significado é miragem, vem de déli (do sul) + báb (de bába: ilusão). Como não ficar maravilhado diante daquela “ilusão do sul”?”. Um sul que esteve sempre presente na sua obra, mas que pelo menos desde “Ramilonga”, de 1997, se tornou num ambicioso programa estético autoral que o distancia, por exemplo, da produção mais regionalista dos seus irmãos Kleiton e Kledir (insuperável desde os LPs dos Almôndegas na década de 70) e que só agora se consumou de forma clara.

[Vitor Ramil apresenta “Délibáb” no Grande Auditório da Culturgest, em Lisboa, na próxima segunda-feira, dia 4 de Abril]