26 de maio de 2018

Knaifel: Lukomoriye (ECM, 2018)

No âmbito de uma tese de doutoramento, em 2005, a investigadora Tara Jane Wilson falou com Alexander Knaifel. E quando abordou a questão do minimalismo ele reagiu imediatamente: “Definir aquilo que fazemos como minimalista significa passar ao lado do essencial. Na Rússia, somos antes considerados maximalistas – somos icebergues musicais”, concluía. Ou seja, Knaifel, ao referir-se conjuntamente à sua obra e à daqueles com que normalmente surge alinhado (gente da vanguarda soviética de 70, tão variada quanto Martynov, Korndorf, Pärt, Gubaidulina, Rabinovitch, Silvestrov ou Mansurian), admitia que, no geral, em termos de linguagem, seria menos importante o que revelavam do que o que muito propositadamente deixavam oculto. E não se referia apenas às vicissitudes da vida em ditadura, claro. A sua tomada de posição – como toda a grande arte russa, aliás – deverá mais à ética do que à estética. 

Aqui, seja como for, neste conjunto de singularíssimas obras para coro, para piano e para piano e voz, fica bem patente o que queria dizer. Repare-se em “Esta Criança” (a partir de salmos da liturgia ortodoxa), em “Confissão” ou em “Lukomoriye” (a partir de Pushkin, estes), em que ao intérprete é fornecida a partitura e o texto com a seguinte indicação: “Estes versos devem ser entoados mas jamais ouvidos [pela audiência, entenda-se].” A prática traz à memória o que o músico de jazz norte-americano Lester Young dizia acerca da necessidade de saber as letras das canções que tocava ao saxofone. Trata-se de uma experiência praticamente existencialista. Em 1984, noutra entrevista (citada por Svetlana Savenko num ensaio sobre o compositor, incluído em “Underground Music from the Former USSR”), Knaifel adiantava que “devemos ter consciência de que aquelas intensas sensações, tão difíceis de explicar, que no nosso âmago despontam e que de nós tomam conta, normalmente coincidem com as coisas simples da vida.” Dir-se-ia que a sua música corre para esse ponto, mesmo se pouco ou nada depende das convenções do seu tempo ou sequer das de tempo algum. Talvez por isso seja tão gravada em igrejas.

Debussy: Centenary Discoveries (Warner, 2018)

Como diz a certa altura a Diana de “Diane au bois”, de Théodore de Banville: “A música divina! A despeito de mim, atrai-me esse doce ruído. E eu sigo-o.” Trata-se de uma frase feita à medida de Claude Debussy, falecido há 100 anos. Quando a adaptou, na temporada passada na Villa Medici, em Roma, como bolseiro do Grand Prix de Rome, que conquistou em 1884, o compositor chegou a ponderar submetê-la à consideração da Academia de Belas Artes, uma das suas obrigações enquanto laureado. Como se sabe, ao invés, sujeitou à aprovação do júri “Zuleima”, “Printemps”, “La Damoiselle élue” e “Fantaisie”. O que não se sabe é se a reação que motivou o encheu de vergonha ou de vaidade: conforme se lê na biografia que lhe dedicou o musicólogo François Lesure, determinou-se após exame atento e demorado que “o artista em residência parece estar unicamente interessado em produzir uma obra estranha, bizarra, incompreensível e impossível de interpretar”. Pensando bem, na altura, envolvido que se via na autotélica conceção parnasiana da “arte pela arte”, terá encarado a resposta como um elogio. Apresentada como “Fragmento para soprano, tenor e piano”, respetivamente com Natalie Pérez, Cyrille Dubois e Jean-Pierre Armengaud, a “Diane au bois” de Debussy foi gravada entre julho e setembro de 2017 de modo a figurar, enfim, na integral “The Complete Works” (33 CD, Warner), lançada este ano. 

Agora, com “Centenary Discoveries”, a mesma editora passa esse e outros inéditos em disco pela peneira. Um dos achados principais é “Chanson des brises”, para soprano (Sabrine Revault d’Allonnes), coro feminino (Ensemble Les Essenti’elles) e piano a quatro mãos (Philippe Cassard - na foto - e Jonathan Fournel), composta imediatamente antes da sua partida para Itália, quando vivia sob o feitiço de Marie Vasnier. Outro, claro, o esqueleto de uma ambicionada ópera baseada em “A Queda da Casa de Usher”, de Poe, na qual, de forma intermitente, trabalhou durante dez anos sem jamais deixar de se identificar com o pobre Roderick – “Será possível que isto represente igualmente a queda de Debussy?”, escreveu a Paul Dukas. No fundo, encontra-se aqui um Debussy que não era bem ele nem outro qualquer. E a descoberta vale ouro.

19 de maio de 2018

Benoît Delbecq 4 “Spots on Stripes” (Clean Feed, 2018)

Há pianistas que pensam num instrumento melódico ao improvisar – num saxofone, por exemplo. E a ideia que fica é que têm um imenso horror ao vazio – que leram Aristóteles e Rabelais e Galileu Galilei. Uma frase que logo vem à memória é a de Tommy Flanagan: “[Depois de um solo] Fico sempre com a impressão que deixei muito espaço em branco – um espaço que poderia ter ocupado de outra maneira”, disse ele um dia a Whitney Balliett. Mas claro que o crítico da revista “The New Yorker” sabia que, no jazz, em termos geracionais, os músicos do bebop viam o silêncio como uma fraqueza. Pelo menos até ao momento em que se conseguiu apreciar inteiramente a figura de Thelonious Monk, que tocava já como um modernista quando à sua volta se parecia ter ainda a cabeça no barroco. Há uma dúzia de anos, Benoît Delbecq falava assim acerca de Monk numa entrevista concedida a Ethan Iverson, então pianista nos Bad Plus: “A conceção musical de Monk era praticamente africana, não só em termos melódicos mas também em termos harmónicos e rítmicos! Os seus acordes estão sempre a levar-nos para outras paragens.” 

Trata-se de um impulso nómada que se reconhece igualmente naquilo que Delbecq faz. Neste “Spots on Stripes”, para melhor o apreciar, basta passar os ouvidos por ‘Disparition du Si’ (a solo) ou ‘Dawn Sounds’ (em quarteto), um par de temas em que o seu piano evoca um conjunto de idiofones da áfrica oriental e um gamelão indonésio, música a que curiosamente foi dar por intermédio de Ligeti e de Cage – na mesma conversa com Iverson, o francês explicava como transformava o “espectro tonal do piano através de lascas de madeira e bocados de borracha das mais variadas origens” que recolhia em viagem. “Como num folclore imaginário”, dizia. Mas, aqui, na verdade, este elemento exótico é algo acessório: o quarteto anda às voltas com peças polirrítmicas (como um dervixe com muitas pernas), enfatiza oníricos ostinatos (a lembrar Coltrane), entrega-se a melodias cubistas (que nunca se viram para o lado que se espera), mas jamais se permite ferir pela história – vive no espaço em branco da imaginação.

Musica Nova: Harmonie des Nations, 1500-1700 (Alia Vox, 2018)

Jordi Savall vem de lançar “In Excelsis Deo”, consagrado a missas de Francesc Valls e Henry Desmaret do tempo da Guerra da Sucessão Espanhola – a primeira acarinhada pelos apoiantes da Casa de Habsburgo (e Valls foi Mestre de Capela da Catedral de Barcelona durante a regência de Carlos, Arquiduque da Áustria), a segunda fruto da passagem de Desmaret pela corte de Filipe V, em Madrid. Como de costume, é tudo imensamente trabalhoso. Mas para um moralista, como Savall, há que tornar o passado significativo – e o CD traz como complemento “El cant dels aucells”, “Catalunya triomfant” ou “Catalunya en altre temps”, canções nada imunes àquele tipo de etnocentrismo que Savall habitualmente denuncia mas que, agora, considera honrar a memória “daqueles homens e daquelas mulheres que arriscando a sua vida e os seus bens tiveram o grande mérito de defender a sua cultura e a sua liberdade”. No atual quadro de crise política na Catalunha, cuja independência advoga, percebe-se a quem se dirige. 

Já noutra edição recente, “Venezia Millenaria”, aplica o princípio da equidade: independentemente da queda do Império Bizantino, do Saque de Constantinopla, dos efeitos desastrosos das Cruzadas, das tensões com o Império Otomano ou da capitulação da República após a invasão das tropas napoleónicas, desta música que aqui reúne parece resultar sempre o princípio do mútuo reconhecimento das diferenças. É uma forma de pensamento histórico que aparenta reforçar a contingência, a rutura ou a descontinuidade de modo a permitir, apenas, a tomada de consciência de que a particularidade cultural é uma construção. Daí a “Musica Nova” é um passo. No momento em que tantas portas europeias se vêem reforçadas pela intolerância, Savall sublinha antes o que há em comum na especificidade de cada cultura: com ecos de rebab beduíno, rabeca trovadoresca ou alaúde mourisco, trata-se de peças renascentistas compostas para viola da gamba em Itália, Inglaterra, Alemanha, França e Península Ibérica. Ao mesmo tempo, ao revisitar este repertório pelo qual começou a ser conhecido, é uma forma de dizer que o seu projeto de vida nunca foi outro: a música como uma ponte suspensa sobre as encruzilhadas do bem e do mal.

12 de maio de 2018

Chet Baker “Portrait in Jazz by William Claxton” (Jazz Images, 2018)


Era noite cerrada e a casa estava escura. Não fazia ideia onde estava a mãe (a arrumar a cozinha, talvez), mas não se ouvia um pio. Ainda assim, não conseguia pegar no sono. Tinha percebido que o pai recebia gente na sala de estar e que tinha fechado a porta – o que nem era a primeira vez. Há muito que estava em pulgas para saber o que se passava lá dentro. Levantou-se da cama com cuidado, avançou devagar pelo corredor, aproximou-se com algum receio do buraco da fechadura e contou o que viu desta maneira: “O meu velho e os colegas dele estavam estendidos nas cadeiras, de olhos fechados. Adormeceram, pensei. Adormeceram e estão a ter uns sonhos estranhos, maravilhosos. A divisão estava cheia de fumo branco, de aroma intenso – quando me chegou ao nariz através da porta fiquei agoniado. Um dos homens estava com a cabeça para cima e de boca bem aberta, como que a aspirá-lo aos poucos. Estavam quase num estado de êxtase. A partir dessa noite, voltei a observar secretamente o meu pai e os seus amigos muitas vezes e fui ficando cada vez mais impressionado, cada vez mais assustado.” Sob o título “A Trompete e a Seringa”, este relato circulou na década de 60 pela imprensa sensacionalista norte-americana, quando poucos queriam saber já do seu autor. O subtítulo? “Confissões de Chet Baker”.

Se há coisa de que não se pode acusar Chet Baker é de ter sido um literato. Mas lendo-se esse artigo em que descreveu a hipotética origem da sua obsessão com drogas é impossível deixar de se pensar em “Entropia”, um conto de Thomas Pynchon publicado em 1960 na “Kenyon Review”, uma revista literária, em que os membros de um quarteto de jazz se munem de marijuana e se dedicam à experiência de tocar um tema do princípio ao fim sem produzir um único som, tentando inferir o que uns e outros estão a ouvir nas respetivas cabeças, em que tom, em que andamento, e que tipo de improvisações fazem. O seu modelo? O quarteto de Gerry Mulligan com Chet Baker. “Conseguíamos sempre antecipar o que é que o outro ia fazer”, disse Mulligan sobre a relação. Isto, quando a moderação emocional e dinâmica do som da trompete de Chet parecia um enigma criado para levar os seus admiradores a imaginar as razões pelas quais lhes seria vedado o acesso a sentimentos e reflexões a que desejavam aceder a todo o custo.

Na presente edição, no CD “Chet Baker-Gerry Mulligan Original Quartet”, também disponível individualmente e em LP (como todos os discos da caixa, aliás), fica bem retratado esse período em que Chet, à semelhança de Miles, parecia expressar-se num código de que só ele possuía a senha. Trata-se de gravações de 1952 e 1953 (envolvendo Bob Whitlock, Carson Smith, Chico Hamilton e Larry Bunker), ficando de fora as sessões de “Gerry Mulligan and his Ten-Tette” e as de “Lee Konitz Plays with the Gerry Mulligan Quartet”. Igualmente indispensável, aqui, é “Chet Baker & Russ Freeman Quartet”, que inclui as gravações do grupo em 1953 (com Smith e Bunker) mas também o prodigioso “Quartet: Russ Freeman Chet Baker”, de 1957 (com Leroy Vinnegar e Shelly Manne), em que Chet toca com uma entrega rara: solto, agressivo e a transbordar de intuição melódica. Este Chet, influenciado por Dizzy Gillespie, Kenny Dorham ou Clifford Brown, mas à frente deles todos nas preferências dos leitores da “Down Beat”, ouve-se ainda em “Chet Baker & Crew: The Forum Theatre Recordings”, que recupera os temas do LP homónimo de 1956 com um explosivo quinteto de neo-bop completado por Phil Urso, Bobby Timmons, Jimmy Bond e Peter Littman. Depois, claro, a coletânea abrange grandes sucessos de Baker como “Chet Baker & Strings”, de 1954, “Chet Baker Sings”, de 1954 e 1957 (quando foi no mercado relançado com extras) ou “Sings and Plays with Bud Shank, Russ Freeman and Strings”, de 1955 – satélites algo artificiais ao planeta do jazz. Como compensação, no CD “Strings & Ensemble”, este material mais inócuo possui como complemento “Chet Baker Sextet”, de 1954 (com Bob Brookmeyer, Shank, Smith, Manne e Freeman), “Chet Baker Ensemble”, do mesmo ano (com Herb Geller, Jack Montrose, Bob Gordon, Joe Mondragon e Manne), e parte de “Big Band”, de 1957, de que inexplicavelmente se excluem os temas com Conte Candoli, Frank Rosolino, Bill Perkins e Art Pepper. A expetativa era que surgissem no volume “Chet Baker & Art Pepper”, mas debalde – neste, está a sessão no Forum Theatre de julho de 1956, editada como “The Route”, e, com outra urgência, a ida a estúdio de agosto de 1956 que resultou em “Playboys”, com arranjos de Jimmy Heath. Destaque, ainda, para “Chet Baker in New York” (1958) e “Jazz at Ann Arbor” (1955). Já “For Lovers” traz algumas repetições e discos rotineiros como “It Could Happen to You” (1958) e “Chet” (1959), enquanto “My Funny Valentine” é absolutamente redundante no contexto desta antologia. 

Foi um período imortalizado pela câmara de William Claxton em capas para a Pacific Jazz ou fotos de promoção – em “Jazz Seen”, Claxton confessou ter descoberto o conceito de fotogenia ao ver aparecer do nada o rosto do trompetista na sua sala escura. Os discos deste “Portrait in Jazz” trazem fotos suas. As coisas podiam ter ficado por aí, mas, no caso de Chet, escorrega-se sempre do retrato para a caricatura: a caixa encerra com gravações em Roma e Milão, entre 1959 e 1962, entregues já à nostalgia, como “Chet Baker Sextet”, ou à música ligeira, como “Angel Eyes”, o que vai dar ao mesmo. Podia ter-se resolvido o assunto com o auspicioso “Chet is Back!”, mas é melhor assim, não fosse o caso de se criarem falsas esperanças: daí em diante, Chet levou uma existência peripatética, de pátria em pátria, de prisão em prisão, de pedra em pedra, de perda em perda, até ao dia em que lhe falhou o pé numa varanda do hotel Prins Hendrik, em Amesterdão. Foi numa sexta-feira treze. Faz amanhã 30 anos.