30 de novembro de 2013

Clarke-Boland Sextett “Marcel Marceau Präsentiert: Swing Im Bahnhof” & Francy Boland “Playing With The Trio” (Rearward, 2013)



 

Numa revisão de meados dos anos 70 de “The Jazz Book”, escrevia assim o alemão Joachim-Ernst Berendt: “Mesmo sem ceder ao zeitgeist, a Clarke-Boland Big Band prova o quão vital se mantém a tradição das big band. Com Clarke, patriarca da bateria, e Boland, pianista belga, como codiretores, notáveis expatriados norte-americanos – entre os quais Johnny Griffin, Art Farmer e Sahib Shihab – uniram esforços com instrumentistas europeus do calibre de Manfred Schoof, Ronnie Scott ou Tony Coe”. Parece digno de parangona e, principalmente entre 67 e 71, de facto, foi. No entanto, confira-se o extenso artigo sobre big band na Wikipedia de língua inglesa e é como se a fraternal formação nunca tivesse existido – o que justifica a adverbialidade de Doug Payne, que lhe traçou a evasiva discografia, quando a considera “criminalmente subestimada”. A Rearward – acedendo à herança de Gigi Campi, não só o antigo gerente da mais famosa gelataria de Colónia como ainda o administrador e ideólogo da bicéfala orquestra – corrige há quinze anos tanta desatenção. De uma assentada, recupera agora um curioso concerto em sexteto – sob a égide dos amigos da estação ferroviária alemã de Rolandseck – que torrou com latinismos uma amena noite de setembro de 65 junto ao Reno, e uma plasmática sessão, registada em 67, de Boland com Clarke e Jimmy Woode, em que se coloca em primeiro plano o que normalmente estava em segundo. De certa forma, era o adeus ao jazz enquanto música exótica.

“Orient-Occident II – Hommage a la Syrie” (Alia Vox, 2013)



Waed Bouhassoun (al, v), Hamam Khairy (perc, v), Oumeima Khalil (v), Hespèrion XXI, Jordi Savall (d)


No terreno, não obstante a chegada da “assistência letal” norte-americana aos “militantes moderados”, é a linha-dura islamita que se moraliza. E, de acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, o número de mortes ascende a 120.000, enquanto um boletim das Nações Unidas prevê que se ultrapassem em breve os oito milhões de refugiados na zona. Na sombra, divisões mais profundas – entre blocos sunita e xiita ou entre curdos e cristãos – somadas à tensão criada por décadas de Guerra Fria exacerbada pela mais fatídica engenharia social e pela crescente insanidade que – numa estratégia de dissuasão face à ameaça nuclear israelita – permitiu a proliferação de armas químicas. Por tudo isto, de facto, não se sabe o que vai ser do regime de Assad, ou se uma democracia ou uma teocracia o substituirá. Reagindo a tanta intolerância e carnificina, Savall lembra agora milhares de anos de História, deixando que a música renda a retórica. Tendo em “Jérusalem”, “Pro Pacem” ou “Balkan Spirit” transformado o Hespèrion XXI numa ‘sociedade das nações’, e porque tem consciência de que é mais fácil destruir sucessivas administrações parciais do que edificar uma perene e universalmente justa no seu lugar, presta assim – num balsâmico e ocasionalmente deslumbrante programa de “danças, orações, canções e lamentos” mergulhado em “séculos de tragédia, injustiça e fanatismo” – um “tributo ao povo sírio” com o objetivo de contrariar “esta amnésia que tanto nos desumaniza”. O que daí resulta – de cantos árabes a melopeias pré-islâmicas, de polifonia profana a melodias sefarditas, de ritmos do cristianismo primitivo a ecos em catedrais bizantinas – evoca o epigrama de Meleagro de Gadara que, há mais de dois mil anos, dizia ser a Síria “um país/ que é o mundo inteiro”.

23 de novembro de 2013

Hailu Mergia “Shemonmuanaye” (Awesome Tapes from Africa, 2013)



Tomar-se-á “Shemonmuanaye” por uma obra tão anacrónica na modernidade etíope quanto, por exemplo, “Lifespan”, de Terry Riley, em 1975, o foi no minimalismo norte-americano. O que, pese embora a sua inverosimilhança face a tudo o que se tem como certo, não quer dizer que se deva disputar a sua autenticidade. Tratar-se-á, ao invés, de mais uma correção aplicada à história da música por uma exceção ao cânone. Afinal, há algo de ilícito nestas quiméricas gravações caseiras com que Hailu Mergia – em tempos teclista e acordeonista na famosa Walias Band mas, em 1985, à data da edição desta cassete, e após deserção, já uma celebridade menor no seio da diáspora constituída no exílio – iludia a necessidade de se fazer acompanhar por instrumentistas. E esse impulso – um utópico recurso para, quiçá inadvertidamente, alterar de maneira substancial, e à distância, o dispositivo formal de que se socorriam valetudinários conjuntos em Adis Abeba – dá mostras de servir uma doutrina em tudo inversa àquela mais em voga na altura em que se produziam estes onze temas. Ou seja, contrariamente à ideia postulada em “We Are the World”, Mergia prometia aqui uma espécie de redenção à escala microscópica, dependente da noção de que o mundo é feito de pequenos mundos. E por ter preferido a fantasia – munido de sintetizador, piano elétrico e caixa de ritmos, e imbuído pelo espírito do jazz – arriscou a transcendência nos rigorosamente vigiados quadrantes das tradições tigrínia, amárica e oromo, assinando assim, presume-se, a sua obra-prima. E apesar de só agora, que se vê reintroduzida na era digital, se compreender o alcance dessa epifania, Mergia – hoje taxista na cidade de Washington – aí está para relembrar que, mais do que reescrevê-la, se pode sempre tornar a imaginar a narrativa do passado. Toca dia 5 de dezembro no Musicbox, em Lisboa.

Mostly Other People Do the Killing “Red Hot” (Hot Cup, 2013)

Um dos mais sugestivos álbuns de 2011 foi “Science of the Sea”, reedição da música criada, em 1979, pelo biólogo marinho Jürgen Müller para servir de banda-sonora em filmes com expedições subaquáticas. Numa diáfana tessitura tão sedante quão sujeita a espumosos arpejos, dir-se-ia a mais poética representação do mar desde Debussy. Mas tratava-se de uma efabulação, imputada, desde então, ao produtor contemporâneo Panabrite. O seu ato de imaginação – mas, mais ainda, uma receção que indicia que os melómanos preferem boas estórias a boa música – trazia à memória a frase com que, em 1935, Fritz Kreisler, após assunção de que tinha sido ele, de facto, o autor de peças atribuídas a Couperin ou Vivaldi, respondeu aos reclamantes: “podem mudar o nome que o valor se mantém o mesmo”. Ou seja, substituiu uma fabricação universal, reconhecida como autêntica, por outra particular, logo tida como falsa. Mas o que estes testemunhos apócrifos provam é que sem eles não se compreende totalmente o contexto histórico a que se referem, nem, muito menos, aquele em que são gerados – além de possuírem semelhante importância devocional à que se desenvolve na apreciação do dogma. Talvez por isso, inexcedíveis em vaidade e descaramento, reincidam uns ampliados MOPDtK (adicione-se Brandon Seabrook, Ron Stabinsky e David Taylor a Moppa Elliott, Kevin Shea, Jon Irabagon e Peter Evans) na ‘arquivologia mágica’, reavivando aqui a obra dos ficcionais Brimstone Corner Boys, cuja atividade escrutinam num livreto que cruza lendas da Grande Depressão com relatos de combustão humana espontânea e evocações das cidades-fantasma da Pensilvânia. O modelo – atente-se numa capa que mimetiza a da antologia “Birth of the Hot” – é o dos Red Hot Peppers, de Jelly Roll Morton, nivelados pelo rolo compressor de décadas de convulsões artísticas. Perfeitamente voltaico.