Há 20 anos que o priorado de Sankt Gerold, suspenso entre campos de golfe e pastos para vacas leiteiras nos Alpes,
tem observado um terror teológico na estética da ECM. Parece que, quanto mais
sagrado o espaço, mais Manfred Eicher nele promove o profano. Mas o registo de atos
tão singulares demonstra a autenticidade da sua vocação: a de messias, transgredindo
leis para denunciar a insensatez do sistema que as rege. No seu catálogo figuram
emblemáticas produções no mosteiro austríaco, inauguradas, em 1992, por
“Schattenwelt”, um ‘mundo de sombras’ evocado por Paul Giger, a que se seguiu “Officium”,
a reunião de Jan Garbarek com o Hilliard Ensemble. Mas, desde então, também Bryars, Kancheli, Saluzzi ou Pärt por lá passaram, sendo provável que as memórias de
tudo isso fiquem, como uma fatalidade, impressas na mente de Eicher, testemunha
de tanta transumância. “Night Sessions” será o documento que a sua vigília aí mais
povoou de espantos. E, agora que, através da publicação de “Facing the Other Way: The Story of 4AD”, um ensaio escrito por Martin Aston, se lembra a 4AD,
dir-se-á que, em certa medida, a iniciativa de Eicher recorda aquela posta em
prática por Ivo Watts-Russell na editora inglesa quando este se ocupou do
coletivo This Mortal Coil. Só que, aqui, Eicher escolheu o elenco mas não selecionou
repertório. Pelo contrário, numa noite de setembro de 2001 – tinham já os aviões ido de encontro às torres e fechado estava o álbum “Care-Charming Sleep”
– sugeriu que o Dowland Project (Potter com John Surman, Stephen Stubbs, Maya Homburger
e Barry Guy)
regressasse ao tenebroso convento e, por entre ecos de poesia trovadoresca e
páginas de códices, numa sessão fora de horas que ficou até hoje
na gaveta, tocasse,
antes, o que começa onde a pauta termina, concentrando tudo o
que a música antiga não é, e muito daquilo que deveria ser.
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