23 de novembro de 2013

Hailu Mergia “Shemonmuanaye” (Awesome Tapes from Africa, 2013)



Tomar-se-á “Shemonmuanaye” por uma obra tão anacrónica na modernidade etíope quanto, por exemplo, “Lifespan”, de Terry Riley, em 1975, o foi no minimalismo norte-americano. O que, pese embora a sua inverosimilhança face a tudo o que se tem como certo, não quer dizer que se deva disputar a sua autenticidade. Tratar-se-á, ao invés, de mais uma correção aplicada à história da música por uma exceção ao cânone. Afinal, há algo de ilícito nestas quiméricas gravações caseiras com que Hailu Mergia – em tempos teclista e acordeonista na famosa Walias Band mas, em 1985, à data da edição desta cassete, e após deserção, já uma celebridade menor no seio da diáspora constituída no exílio – iludia a necessidade de se fazer acompanhar por instrumentistas. E esse impulso – um utópico recurso para, quiçá inadvertidamente, alterar de maneira substancial, e à distância, o dispositivo formal de que se socorriam valetudinários conjuntos em Adis Abeba – dá mostras de servir uma doutrina em tudo inversa àquela mais em voga na altura em que se produziam estes onze temas. Ou seja, contrariamente à ideia postulada em “We Are the World”, Mergia prometia aqui uma espécie de redenção à escala microscópica, dependente da noção de que o mundo é feito de pequenos mundos. E por ter preferido a fantasia – munido de sintetizador, piano elétrico e caixa de ritmos, e imbuído pelo espírito do jazz – arriscou a transcendência nos rigorosamente vigiados quadrantes das tradições tigrínia, amárica e oromo, assinando assim, presume-se, a sua obra-prima. E apesar de só agora, que se vê reintroduzida na era digital, se compreender o alcance dessa epifania, Mergia – hoje taxista na cidade de Washington – aí está para relembrar que, mais do que reescrevê-la, se pode sempre tornar a imaginar a narrativa do passado. Toca dia 5 de dezembro no Musicbox, em Lisboa.

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