31 de outubro de 2015

“Songs from the Arc of Life” (Sony, 2015)




Yo-Yo Ma (vc), Kathryn Stott (p)
 

Começa com a de Bach/Gounod e termina com a de Schubert, e teme-se que, como fadou Pessoa, estas “duas Avé Marias” sejam as “dum rosário d’amarguras/ que eu rezo todos os dias.” Mas não, apesar de incluir ainda o beatífico “Louange à l'éternité de Jésus”, de Messiaen, “Songs from the Arc of Life” não é tão turibulário assim. Nem podia ser: afinal, celebra uma reunião que se realizou em circunstâncias muito pouco solenes. No verão de 78, em Londres, Yo-Yo e Jill Ma alugaram um apartamento a Nigel Kennedy que, por sua vez, se esqueceu de os prevenir que o dividia com outra inquilina, uma pianista, na altura de férias, que também não avisou quanto aos novos arrendatários; tratava-se de Kathryn Stott, que, mais tarde, relatou desta forma o encontro: “Volto a casa e dou de caras com um chinês de cuecas a tocar violoncelo e com a sua mulher a cirandar com o meu robe vestido – isto podia ter corrido mal.” Mas a verdade é que, como dizia Jobim (que Ma e Stott já tocaram juntos), “a vida tem sempre razão”. E neste programa que assinala muitas das emoções que lhe dão sal (e os anseios, receios, comédias e tragédias que a cercam), outra coisa não vêm lembrar, sensíveis ao que ela tem de mais previsível (representado por “Le cygne”, de Saint-Saëns, pela quarta “Wiegenlied”, de Brahms, ou pela “Valse sentimentale”, de Tchaikovsky) e mais inesperado (“Var det en dröm”, de Sibelius, “Herzwunden”, de Grieg, ou “Beau soir”, de Debussy, canção que faz uma pausa entre os versos “A onda corre para o mar/ Nós para o nosso túmulo”, e que este CD diz ser nossa para dela fazermos o que quisermos).

Céu "Ao Vivo" (Sony, 2015)



Entramos de mansinho no camarim e damos com Céu e Dustan Gallas a ensaiar ‘Palhaço’, clássico de Nelson Cavaquinho, Oswaldo Martins e Washington Fernandes da década de 50. “Sei que é doloroso um palhaço/ Se afastar do palco por alguém/ Volta, que a plateia te reclama”, canta ela, com voz de menina ensonada. Já ele, mal dá o último acorde na sua Rickenbacker, espanta-se por a versão ter saído tão bem. “É”, responde-lhe Céu, “a gente é foda.” Não estamos definitivamente nos anos 50. Mas o clima não será assim tão informal quanto isso: afinal, num programa que, em DVD, se estende por 100 minutos, só uma enorme coincidência contraporia a esses versos iniciais aqueloutros, de Bob Marley, com que a atuação termina: “Never known what happiness is/ I’ve never known what sweet caress is/ Still, I’ll be always laughing like a clown”. E é quando a ação se transfere para a sala do Centro Cultural Rio Verde, em São Paulo, que, prestando atenção aos adereços, se percebe até que ponto se acusa aqui a responsabilidade do teatro: há palmeiras, araras de porcelana, lustres e abajures de vime sintético, uma estátua de Iemanjá e, suspensas por detrás dos músicos, em néon, as palavras que dão o nome ao último CD de Céu, “Caravana Sereia Bloom”. Dos 24 temas no alinhamento, 11 provêm daí. Aliás, no filme, quiçá inadvertidamente, há um momento hilariante em que a banda discute se terá “deixado alguma coisa importante de fora”. Não, está cá tudo o que se precisa de saber sobre Céu e o seu conjunto, espécie de Bad Seeds consagrados à cumbia, ao bolero, à lambada, enfim, à grande música do inferno.

24 de outubro de 2015

Benoît Delbecq 3 “Ink” (Clean Feed, 2015)



Espera-se um piano e, de tantos zumbidos, é no Bartók de “Do Diário de Uma Mosca” em que se pensa. O efeito é passageiro, pois logo se percebe que Delbecq simula um daqueles idiofones africanos que se decoram com caricas. Estamos, então, no domínio do ritual, dos ciclos da vida, da evocação de antepassados (no alinhamento dá-se com uma ‘Family Tree’), aspetos mediúnicos que, como na música dos shonas, permitem que se fique capaz de sonhar mais profundamente. É um mecanismo a que o francês recorre com frequência. Numa nota sobre “Nancali”, um antigo disco seu com François Houle, lê-se no guia Penguin: “Delbecq transforma o seu instrumento num simples ‘piano de polegar’ e pressente-se uma dança beduína.” Definitivamente, sim, há aqui algum do ecletismo desses bacharéis em antropologia que decompõem a luz do exílio ao volante de um VW pão-de-forma. Mas além de se salvaguardar o espírito de aventura também se cultiva uma identidade própria. Nessa perspetiva, Delbecq sintetiza um interesse expressado quer por Herbie Nichols quer por György Ligeti numa África esquecida e enferrujada. Por outro lado, “Ink” indicia um impulso de adesão às poéticas visuais – e, a espaços, os seus temas liquefazem-se nos tons pastel de um diário de viagens –, o que, pelo menos em termos de premeditação concetual, lembra o Ran Blake de “Painted Rhythms”. Poderia falar-se ainda em acordes como tambores a retumbar pela noite ou em arpejos que soam a espanta-espíritos, mas isto não é Dollar Brand. É Delbecq – e Miles Perkin e Emile Biayenda – a promover um raro tipo de fusão que não requer representações indignas.

17 de outubro de 2015

Stephen Kovacevich “The Complete Philips Recordings” (Decca, 2015)



Deu-se a conhecer como Bishop, depois passou a Bishop-Kovacevich, até que, por fim, só lhe restou o apelido croata e, no trato, pouco sobrou de uma vergonha qualquer que o parecia perseguir. Íntimos seus, referindo-se à questão, dizem coisas como: “Stephen pôde então ser quem era”. É um detalhe biográfico que amiúde se repete, embora, em rigor, não possua toda a equivalência artística que se lhe pretende imputar: ao piano, Stephen Kovacevich nunca deu mostras de ser menos que si. Cumpre hoje os 75 anos e, nas lojas, comprova-o esta integral para a Philips (gravações entre 1968 e 1983). Faz-se a convocação do insólito (um “Jazz Calendar”, de Rodney Bennett, que colocava solistas como Tony Coe ou Kenny Wheeler ao serviço de uma peça a emular o cool jazz), mas sobressaem mais velhos cavalos de batalha (o K. 467 ou o K. 488, de Mozart, algo refreados; o concerto de Grieg, invulgarmente dedutivo, com a Sinfónica da BBC e Colin Davis praticamente aborígenes; ou o de Schumann, cujo Intermezzo, de tão empático, é quase coloquial). Mediu-se ainda espaço para revelações (o sexto volume de “Mikrokosmos”, de Bartók, inédito em CD e, às suas mãos, habitado por húmidas criaturas, rastejantes e noturnas) e curiosidades várias (o seu Chopin, inesperadamente varonil; o Brahms, mergulhado em incensos, como um brâmane; ou um disco de duetos com Martha Argerich, então sua companheira doméstica). Acima de tudo, está cá Beethoven, a que deve a fama e que punha a discursar sobre o transcendentalismo numa pronúncia rigorosamente prussiana, conjugando todo o gosto da arte e todo o desgosto da vida.